terça-feira, 3 de março de 2015

Da vida das marionetas.

 
 
 
Anna Duritskaya



 

Pesa-me na consciência ter em atraso de leitura, a olharem para mim com ar acusador, dois livros de memórias da Rússia soviética: de Gary Shteyngart, Little Failure, e de Orlando Figes, Just Send Me Word (ainda merece crédito, o Figes, apesar disto ). Um outro, já lido há muitos anos, ficará para sempre na minha lembrança, dos livros mais impressionantes que li, Man is Wolf to Man: Surviving the Gulag, de Janusz Bardach (resumo aqui).  
          Não é fácil a leitura quando, por via da Internet, tanta realidade se interpõe no caminho. Há dias falei aqui de Ruslana, a modelo que se suicidou em Nova Iorque. Agora, outra modelo, a ucraniana Anna Duritskaya, está no epicentro da morte policiária de Boris Nemtsov, o oposicionista a Putin que engrossou a lista dos assassinados do regime (aqui). Boris namorava Anna, a manequim da Ucrânia. Um dia, daqui a uns anos, quando se fizer a história do Leste dos nossos dias, um capítulo terá de ser dedicado aos modelos, e ao papel – até político – que desempenham na Rússia contemporânea.
          Os livros de que falei tratam de campos de concentração, do gulag e doutras desgraças. Mas pensemos em Valentina Zelyaeva. Como ela, há milhares. Os pais eram um jovem casal de 21 anos: ele servia no Exército Vermelho; ela sonhava vir a ser professora. Foram da Sibéria até Ula-Ude, uma aldeiazinha na URSS, local de nascimento de Valentina, corria o ano de 1982. De Ula-Ude, os progenitores da menina foram para Leninegrado e, depois, para Moscovo, tinha Valentina sete anos de vida. Aos 16, quando pensava ingressar na universidade, um agente abordou-a para ser modelo. Valentina declinou, mas não resistiria ao apelo radiofónico da agência Elite. Esperou cinco horas à porta da agência, numa fila enorme de centenas de candidatas ao estrelato. Acabou por ser seleccionada, viajou até Tóquio, depois Nova Iorque, onde actualmente vive. Sustenta os pais, claro está, e trabalha para a Ralph Lauren.
 
Valentina Zelyaeva

Valentina, em criança
 
 
 
          A vida de Valentina não é tragédia nenhuma, mas quando lemos aquilo que diz de si própria, no tempo fugaz da sua beleza de moda, ficamos um bocado arrepiados. Antigamente, as estrelas eram actrizes; indiscutivelmente belas, mas tinham de ser algo mais do que isso, diferente disso. Agora, não. É a fisicalidade pura. Alguém ouviu sequer alguma vez o timbre da voz da Irina ex-Ronaldo? Anna Duritskaya, a modelo de 23 primaveras, que namorava com Boris Nemtsov, de 55 outonos, jantou com este na noite em que foi assassinado. Seria interrogada pela polícia, as autoridades ucranianas não souberam do seu paradeiro durante bastante tempo. A única coisa que se sabe, à hora do fecho desta edição, é que se encontra detida num apartamento por ordem do Kremlin, que – e cita-se – considera que o papel de Anna necessita «ser clarificado».


          Não prolonguemos tristezas, até porque a Marina, sempre amiga, mandou-me um tesouro. O próprio compara a sua história à de Vivian Maier, o que talvez seja exagero. Em todo o caso, há semelhanças. Arthur Tress é um fotojornalista que, em 1967, vivendo em Estocolmo, conseguiu enfiar-se numa excursão da juventude socialista sueca até Moscovo. No meio da pândega assistiu ao 50º aniversário da revolução bolchevique. Em Leninegrado captou dezenas de imagens das celebrações oficiais mas também da vida quotidiana, do dia-a-dia soviético.
 















 
 

          Quando as enviou para publicação num jornal sueco, falhara o prazo do fecho da edição, as imagens nunca veriam a luz do dia. Tress vagueou pelo mundo, esqueceu-se daqueles dias. Recentemente, encontrou uma caixa cheia de fotografias da sua viagem a Leninegrado (daí o paralelismo com a sensacional descoberta do espólio de Vivian Maier). Aos 74 anos, continua activo, juntando a prática da street photography à reconstituição do seu acervo. A pasta soviética, a que chama «From Russia With Dust», contém mais de 300 imagens, uma maravilha tingida de vermelho vivo. Tress procura recuperar a memória da sua jornada russa através das cartas que trocou na altura. Outros tentam restaurar tempos perdidos através do assassinato dos seus adversários políticos. E, no meio disto, graciosos e silentes, deslizam cisnes no lago: Ruslana, Valentina, Anna... Terminamos esta posta pastosa com um livro, mais um, outro aqui ao lado, já a reclamar leitura: Swans of the Kremlin. 


 
António Araújo  
 
 
 
 
 

2 comentários:

  1. « Antigamente, as estrelas eram actrizes; indiscutivelmente belas, mas tinham de ser algo mais do que isso, diferente disso. Agora, não. É a fisicalidade pura.»

    Interessante. Não que seja necessariamente contraditório com o que escreveu, mas a tendência é as celebridades substituírem os modelos. A era de ouro das supermodelos passou.


    Alguns exemplos do zeitgeist:
    http://www.nytimes.com/1999/01/30/business/trading-on-hollywood-magic-celebrities-push-models-off-women-s-magazine-covers.html
    http://www.nytimes.com/2009/05/05/fashion/05iht-fcover.html

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    1. Tem mais do que razão, é uma matéria que nunca estudei como devia U(li um livro sobre modelos, há alguns anos, que tratava das «estrelas» da época, como Linda Evangelista, etc). Nem sei como agradeça o seu valioso comentário, desconhecia esta realidade. A prova da minha ignorância é que a fotografia que tinha publicado originalmente era de... Angelina Jolie. Aliás, o caso de Angelina Jolie (e outros) talvez seja interessante, pois é quase um cruzamento de actriz e supermodelo, não acha?

      Cordialmente,

      António Araújo



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