impulso!
100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !
# 74 - ORNETTE COLEMAN
Ornette
Coleman, já passado meio-século, ainda é território em disputa e campo por
desminar. Cada um que o percorra com prevenção ou encanto, conforme a sua
sensibilidade.
O
choque foi rápido, isto é, fulgurante. Entre 1959 e 1961 Ornette precipitou uma
bátega de discos que o louvaram como o Calvino do jazz. Os títulos apregoavam
todo um programa: “Tomorrow Is the Question” (1959): desafiante; “The Shape of
Jazz to Come” (1959): profético; “Change of the Century” (1960): inaugural;
“This is Our Music” (1061): diferenciador e “Free Jazz” (1961), a baptizar
definitivamente o movimento, o género, o estilo, ou o que fosse aquele jazz.
O
grande salto nesta discografia, ou “corte epistemológico”, como dizem os
franceses, situa-se entre “Tomorrow Is the Question” e “The Shape of Jazz to
Come”, o qual corresponderá àquele fenómeno, que nunca deixa de parecer mágico,
da borboleta a libertar-se do casulo fiado pela larva. Salto que só não é
quântico, porque o que se ouve em acto no segundo disco (que inicia a supina
série gravada para a etiqueta Atlantic) estava já em potência no primeiro.
Em
“Tomorrow” ainda são perceptíveis alguns genes do bebop no fraseado, sente-se uma passada rítmica a pedir crédito aos
blues e, apesar de alguns sintomas ou interferências, nele não se formaliza
nenhum pontapé na gramática musical. Em “The Shape”, porém, os axiomas da
harmonia são atirados às urtigas, sem qualquer timidez ou reverência. Visionário,
Ornette quis desobstruir a melodia de constrangimentos, para que pudesse fluir
em liberdade, dispensando a configuração usual dos acordes. O ouvido pouco
treinado ou apanhado de surpresa ouvirá uma estranha desarmonia, se não mesmo
uma desagradável cacofonia; o ouvido experiente, mas educado nas harmonizações
clássicas, ouvirá dissonâncias. Com uma candura desarmante – dada a sua índole
mais contemplativa do que confrontacional – Ornette Coleman deu todo um novo
sentido ao conceito de “desafinado”. Mais tarde tentou teorizar os seus
processos, inventando o conceito de “harmolodic” (amálgama de “harmonia”,
“movimento” e “melodia”) mas o enunciado resultou confuso e difusa, pelo que
será melhor desonerá-lo.
THE SHAPE OF JAZZ TO COME
1959
(2005)
Atlantic
Jazz Masters WPCR13429
Ornette
Coleman (saxofone alto); Don Cherry (trompete); Charlie Haden (contrabaixo);
Billy Higgins (bateria).
Para
esta sonoridade, que continua a escutar-se como insólita e audaciosa, não é
despicienda a composição do quarteto convocado para “The Shape of Jazz to
Come”. Ausente está o piano, opção assaz coerente para quem rejeita uma âncora
harmónica, e na primeira linha, ao lado de Ornette e do seu saxofone, de
“plástico” como diziam os detractores, ou em acrílico, para ser materialmente
mais rigoroso, perfila-se Don Cherry – no que veio a ser um dos duetos mais
conjugados da história do jazz – com o seu trompete de bolso, igual a um
brinquedo, quase a caber na palma da mão. A escolha destes instrumentos pobres,
nada deveu ao amadorismo ou a uma vontade de afronta, mas ao seu valor
tímbrico, concordante com a voz que desejavam expressar. Do contrabaixo
normalmente dir-se-ia estar “lá atrás”; mas sendo esta música livre, Charlie
Haden livre ficou para desenhar poderosas formas rítmicas, como um tractor que
lavra a terra.
“Pode-se
estar em uníssono, sem estar em uníssono”, asserção de Ornette, que seria um
exemple de boutade artística,
forcejando por explicar as criações através de paradoxos inexplicáveis, se “The
Shape of Jazz to Come” não abrisse com o tema “Lonely Woman”, penetrante como
um manifesto, que os cânones consagrariam como standard. O resto do disco dura pouco mais de meia-hora, o
suficiente para romper uma irrevogável e tectónica clivagem no jazz.
Ornette
Coleman teve os seus paladinos: Leonard Bernstein, Gunther Schuler, John Lewis:
“é como ouvir uma pessoa a rir… ou a chorar” (reproduzir a voz humana através
do saxofone era, de facto, uma ambição de Ornette). Mas não lhe faltaram críticos;
num concerto no Five Spot Cafe Dizzy Gillespie pôs-se diante do palco de braços
cruzados e invectivou: “Are you cats
serious?” E até Thelonious Monk – o misantropo Monk! – sentenciou: “Man, that cat is nuts!”
Depois
da epopeica sequência de seis discos para a Atlantic, gravados até 1962,
(coligidos numa caixa editada em 1993, com o amigável título “Beauty Is a Rare
Thing”) Ornette converteu-se num submarino, a navegar longamente em silenciosas
profundidades, com uma ocasional subida à tona da água. A última foi em 2006
com “Grammar Sounds”, obra acolhida como um oráculo e ecumenicamente incensada,
com nomeação para o Grammy e premiação do Pulitzer – talvez nunca Ornette
Coleman imaginasse que seria purpurado em vida…
José Navarro de
Andrade
Excelente, grande músico, tenho alguns.
ResponderEliminarVou colocar este no meu blog para as pessoas apreciarem.
Um pequeno reparo o de 2006 chama-se "Sound Grammar".
Tem toda a razão! Fui enganado pelo design da capa e não verifiquei, como deveria, pela lombada.
EliminarPurpurado...
ResponderEliminarO. Coleman tem agudos demais para o meu gosto. Que, reconheço, não é por aí além.
Isaac Singer dizia que escrevia livros para crianças (tambem) e que era muito gratificante porque elas ao contrario dos adultos liam livros não criticas.se o livro os aborrece fecham-no e vão á sua vida sem remorsos.Ornete aborrece bastantes vezes e é mesmo uma dura provação á paciencia outras tantas.O nosso ja aqui classificado Dexter achava o mesmo.Provavelmente tera mudado de ideias ao ler as criticas embora não creia que o fizesse regularmente ou seja ler fosse o que fosse.Claro que poderão dizer o mesmo de Wagner e seus criticos e não sairiamos do circulo.Ha quem goste e o venere mesmo(Ornete)eu não.Ele ficaria furioso em sabe-lo.
ResponderEliminarComo sempre muito bom texto.Venha o livro com todas.