Georges Bernanos e o seu veemente
panfleto político contra Franco,
Os Grandes Cemitérios ao Luar (1938)
“L´avant veille deux cents habitants de la petite ville
voisine de Manacor, jugés suspects par les Italiens, avaient été tirés de leurs
lits en pleine nuit, conduits par fournées au cémitière, abattus d’une balle
dans la tête et brûlés en tas un peu plus loin. Le personnage que les
convenances m’ obligent à qualifier d’évêque-archevêque, avait délégué là-bas
un de ses prêtes qui, les souliers dans le sang, distribuait les absolutions
entre deux décharges. Je n’insiste pas plus longtemps sur les détails de cette
manifestation religieuse et militaire (…).
“…cette petite île majorquine est un vase clos. Le sang n’y
séchera pas vite.”
G. Bernanos, Les Grands
Cimetières sous la Lune.[1]
“Do not believe
Because the
blood has not been answered
The lie will
not be answered
Do not believe it.”
Archibald
MacLeish, poema The Spanish lie.
Les Grands Cémitières sous la Lune foi uma da obras francesas que mais me impressionou, embora seja
essencialmente um panfleto político e moral contra um dos maiores crimes
cometidos no século XX, os massacres perpetrados em Maiorca pelos Falangistas,
no início da Guerra Civil espanhola, quando ali residia em Palma o romancista
católico Georges Bernanos (1888-1948). Estabelecido nas Baleares desde 1934, amigo
da família monárquica e franquista dos marqueses de Zayas, o escritor francês deixou
dessas atrocidades e do apoio que lhes deram os prelados espanhóis na “cruzada
anticomunista”, um dois mais extraordinários textos de protesto de uma consciência
cristã indignada com a sangrenta repressão, feita com o auxílio de “Camisas
negras” italianos enviados por Mussolini, como o célebre e sinistro “conde”
Rossi,[2]
trajado de negro com uma cruz branca pendurada no pescoço, que calcorreou a
ilha numa carro de corrida vermelho, na companhia de um capelão falangista armado, assassinando trabalhadores maiorquinos, cenas
a que Bernanos dedica duas páginas sangrentas no seu panfleto.
Dest’arte, neste extensíssimo
panfleto veemente, o romancista católico que escrevera Sous le
Soleil de Satan (1926) e o Journal
d’un Curé de Campagne (1936), que fora antigo discípulo do jornalista
anti-semita Édouard Drumont (1844-1917) e do dirigente monárquico da “Action Française” Charles
Maurras (1869-1952), assim como inicialmente simpatizante de Franco, tornar-se-ia,
desde a publicação d’Os grandes Cemitérios ao Luar (1938), uma
das vozes mais vibrantes e dramáticas na
denúncia do imperdoável horror que as milícias e tropas nacionalistas cometiam
na ilha mediterrânica, sob o nome da “cruzada anticomunista” – o historiador
britânico Hugh Thomas cifra em 3.000 os republicanos fuzilados nas Baleares, contra 7.000 a 8.000 na Navarra,
9.000 em Sevilha, 9.000 em Valladolid, 2.000 em Saragoça e, ao todo, cerca de
50.000 nos seis primeiros meses da guerra civil em toda a Espanha [3] –,
erguendo esse monumento de cólera ferida como um solo de uma invulgar força
espiritual e força literária. Raramente um crime tão hediondo se traduziu em
palavras de uma indignação magoada, nobre e duradoira. Rompendo com a direita
na qual militara tantos anos, Bernanos inscrevia-se, com esta incandescente archote
polémica, no reduzido número de escritores católicos franceses, como Jacques
Maritain (também dissidente da Action Française) François Mauriac, como um dos ardentes
adversários da causa que irmanava Franco, Mussolini, Salazar e Hitler.
Henri Cartier-Bresson, Sevilha, 1933
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Leiamos esta passagem d’Os Grandes Cemitérios…: “Vi lá, em
Maiorca, passarem pela Rambla camiões carregados de homens. Rolavam com um
barulho de trovão, ao lado das esplanadas multicores, lavadas de fresco, muito
molhadas, com o seu alegre murmúrio de festa popular. Os camiões estavam
cinzentos com a cor da poeira das estradas, cinzentos também os homens sentados
quatro a quatro, comos bonés cinzentos poisados de lado e as suas mãos ao longo
das calças de cotim, bem tranquilos. Eram apanhados em cada entardecer nas povoações
perdidas, à hora em que voltavam dos campos; partiam para a sua derradeira
viagem. A camisa colada aos ombros pelo suor, os braços ainda cansados do trabalho
da jornada, deixando a sopa servida em cima da mesa e uma mulher que chega demasiado
tarde à porta do jardim, toda esbaforida, com uma sacola embrulhada numa toalha
nova: A Dio – recuerdos!”[4]
Rompendo com o seu mestre
Charles Maurras, contra o qual escreveu diversas obras, como Nous autres Français (1938) e Scandale de la Vérit , Bernanos constatara,
a partir da atitude dos prelados católicos espanhóis durante a guerra civil que
presenciara em Maiorca, esta verdade amarga: “A Cristandade fez a Europa. A
Cristandade está morta. A Europa vai morrer…”, (Sous le Soleil…),[5] dirigindo
uma série de críticas contundentes à igreja que falava de “Cruzada contra o
Comunismo” – não garantira o bispo de Salamanca que os comunistas e os anarquistas
eram “filhos de Caim” e que “os judeus e os maçons tinham envenenado a alma
nacional com absurdas doutrinas, e os contos tártaros e mongóis se tinham
convertido num sistema político”? [6]
Bernanos abria a segunda
parte do seu panfleto com estas palavras: “A Tragédia espanhola é um montão de
cadáveres. Todos os erros de que a Europa acaba de morrer e que ela tenta vomitar
em terríveis convulsões vêm ali apodrecer juntas.”[7] A
partir deste ponto, o panfleto colérico de Bernanos dirige-se especialmente ao
episcopado espanhol que ajudou Franco na sua “cruzada anticomunista” ou “Guerra
santa”, acrescentando: “Penso que a Cruzada espanhola é uma farsa (…). Por
detrás do general Franco reencontramos as mesmas gentes que se mostraram
igualmente incapazes de servir uma Monarquia que eles finalmente traíram ou
organizaram uma República que tinham largamente contribuído a fazer, as mesmas
gentes, ou seja, os mesmos interesses inimigos, num instante federados pelo
ouro ou pelas baionetas do estrangeiro. É a isto que chamam uma revolução
nacional?”[8]
Quanto aos prelados espanhóis que defendiam a “Cruzada”, Bernanos trata-os ironicamente
por “Excelências” e “Suas Senhorias”, declarando que na aventura franquista se
consumava a ruptura entre a Igreja de Deus e os pobres, impostura que ele não
tolerava, verberando-a com uma veemência profética. Contudo, apesar do seu tão
evidente Zeitgeist que impregna este
livro circunstancial, Os Grandes
cemitérios… continuam a ser, como há mais de três quarto de século, uma
obra imorredoira, que não envelheceu, antes se lê hoje como aquilo que ela
também é, um monumento da escrita literária, da melhor literatura, uma obra de
cultura redigida no meio dum período de trevas e opressão, um texto admirável e
justo. Creio mesmo que esta obra e um dos raríssimos exemplos de uma panfleto,
redigido como libelo bradado “sub specie temporis”, que ganhou uma estatura
literária e profética que o colocou na esfera das obras que são lidas geração
após geração, como um texto de profecia e nobreza anímica.
A leitura deste prodigioso
grito de repulsa – que só foi editado em português 30 anos depois (1968) – suscitou-me,
ao lê-lo há muitos anos atrás, uma das mais fortes emoções intelectuais, como
poucos outros textos foram capazes de me transmitir, até pelo facto inegável de,
nesta esplêndida cólera de uma consciência ousadamente livre diante das
mentiras dos “biens-pensants”, se sentir vibrar uma escrita de imenso valor retórico,
forte dimensão espiritual – mesmo para um leitor alheio à fé religiosa de
Bernanos – e densidade intelectual, já que nas mais de quatrocentas páginas
desse grandioso panfleto se ouve o trágico monólogo de uma consciência
excepcionalmente lúcida e corajosa diante dos massacres que em Espanha se
cometeram. E soma-se ainda a essa valia o apreço que me deu achar nele um
detalhe curioso, a passagem onde Salazar era tratado com o merecido desdém que
lhe causavam outros ditadores da época, como Hitler, Estaline, Franco e Hirohito,
fingindo Bernanos esquecer-se do nome do político português da altura – mencionando-o
apenas como “o autocarta português cujo nome me escapa”, astúcia oratória que
volta a repetir duzentas páginas adiante, desta forma: “o autocrata português
cujo nome me escapa uma vez mais, caramba – o distinto professor vegetariano
que redigiu, como Dolfuss, a constituição dum inofensivo Estado corporativo e
que espera, sem dúvida, mais tarde ou mais cedo, o mesmo destino que o seu
pobre confrade.”[9] (Era evidente que o
adjectivo de “vegetariano” tinha uma função puramente desdenhosa para Salazar).
Pouco depois, criticaria
com a mesma indignada repulsa os responsáveis políticos franceses pelos acordos
de Munique que tinham permitido a Hitler ocupar a Checoslováquia (Nous Autres Français, 1938), em seguida
condenaria nos seus escritos o armistício de 1940 e a demissão da França de
Pétain, o regime de Vichy. Em Julho de 1938, Bernanos partia, com toda a sua
família, com a sua mulher e os seus 6 filhos, para o Paraguai, dirigindo-se
logo a seguir para o Brasil, onde chega ao Rio em 1 de Setembro. Estabelece-se
numa fazenda em Juiz de Fora (Minas Gerais), depois em Vassouras, em seguida em
Pirapora e Barbacena, como agricultor e criador de gado, onde viveria até 1945,
período que recordaria no seu livro Les
Enfants humiliés (póst., 1949) e, no Brasil, em Le
Chemin de la Croix-des -Ames,
reeditado em França em 1948.
Em suma, Bernanos, não
viveu na Europa nem o período da Segunda Guerra Mundial, nem a ocupação da
França, nem o regime de Vichy. Regressando a Paris em 1945, por iniciativa do
general De Gaulle, que lhe enviara um telegrama pedindo o seu retorno – o
político no qual o romancista viu sempre a encarnação da honra francesa
ultrajada –, a demissão do chefe da França Livre, em 1946, suscita-lhe o desejo
de partir de novo, o que faria em 1947, em direcção à Tunísia, onde escreveria
sua derradeira obra, a peça O Diálogo das
Carmelitas, só tornando ao seu país por motivo de doença grave, falecendo
no hospital americano de Neuilly, em Julho de 1948.
João Medina
[1] G. Bernanos, Les Grands Cimetières sous la Lune , Paris, Livre de Poche, 1962, pp. 139-40 e 183-4,
respectivamente. Veja-se a apresentação e notas que acompanham esta obra (Les Grands Cimetières….) no volume das obras completas de G.B, Essais et Écrits de Combat, Paris,
Gallimard, col. Bibliothèque de la
Pléiade , 1971 (pp.1408-1489, notas dea Jacque Bachot e pref. geral de Michel Estève, pp.IX-LI,). E veja-se o estudo
de Max Milner, Georges Bernanos,
Paris, Librairie Séguier, maxime
pp.231-251.
[2] Cf. Bernanos, op. it., pp.162-3. O britânico Hugh Thomas ocupa-se da acção de Rossi na
sua obra La Guerra
civil española, Barcelona, Mondadori, no vol. I, p.414 (acção nas Baleares)
O tão falso “conde” como “general” Rossi, chamava-se, na verdade, Arcovaldo
Bonaccorsi. Várias divisões de fascistas italianos enviadas por Mussolini,
participaram na guerra civil espanhola, como em Guadalajara, dirigidas por
Mario Roata, cognominado de “Mancini” (1887-1968), mais tarde julgado na Itália
como autor de crimes de guerra,, onde
fora chefe do Estado Maior italiano do Duce, sendo condenado e depois libertado,
recuperando as suas honrarias.
[9] Bernanos, op.
cit. pp.196 e 414. O filho mais velho de Bernanos estava então alistado na
Falange. Nas suas cartas, a partir de Setembro de 1936, G .B. deplora a
ferocidade dos crimes franquistas de que fora testemunha em Palma. O prefácio desta
obra sua é datado de Janeiro de 1937, sendo o livro publicado em França em
1938. Na citada edição da colecção Pléiade, incluem-se o textos sobre a guerra
civil de Espanha não reunidos em livro de G.B., pp.1423-1450. Em relação ao seu
maurrasianismo, veja-se o estudo de Paul Sérant Les Dissidents de l’Action Française, Paris, Editions Copernic,
1978, pp.113-168 (G. Bernanos). Sobre o seu exílio na América do Sul, veja-se a
obra de M. Milner, Georges Bernanos,
Paris, Librairie Séguier, 1989, pp.265-287. Sébastien Lapaque publicou
um estudo dedicado ao exílio brasileiro de G.B., Sous le Soleil de l’Exil, Paris, Grasset, 2003. Quanto ao chanceler
austríaco Engelbert Dollfuss (1892-1934), chanceler federal desde 1932 a 1934, herdeiro
espiritual de Monsenhor Seipel, procurou fazer da Áustria um estado cristão e
autoritário, criando o partido Frente Patriótica (extrema-direita), no que foi
apoiado por Mussolini, proibindo o partido nazi austríaco que defendia o Anschluss. Em 1934 fez uma nova Constituição
criando um regime cristão autoritário e corporativo. Foi assassinado pelos SS
austríacos em 25-VII-1934. Sucedeu-lhe Kurt von Schuschning (1897-1977), mas a
anexação da Áustria pela Alemanha hitleriana consumar-se-ia quatro anos depois,
sendo o sucessor de Dollfuss preso pela Gestapo (1938-1945). Emigrou para os
E.U.A. depois da guerra.
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