Chama-se Herbert. Em 1945, era um menino de Viena de Áustria que
cirandava pelas ruas a caçar ratazanas, que eram depois cozinhadas pela mãe num
espeto improvisado entre ruínas e destroços; no prato, Herbert tinha de
partilhar cada ratazana com a irmã. Naquela paisagem apocalíptica pouco mais
havia para comer. Como tantas outras cidades, Viena era uma paisagem lunar,
reduzida a um pó cinzento e repleta de crateras provocadas pelas bombas
aliadas. Como diria Sebald muito mais tarde, os bombardeamentos aliados
transformaram o sofrimento de alemães e austríacos numa extensão da natureza.
Dormir ao relento, caçar ratos e roer solas passou a ser natural, tão natural
como o vento que passava; aquele sofrimento não era bom nem mau, apenas
existia, apenas acontecia, como uma tempestade ou terramoto. Contra esta visão
amoral, a Caritas lançou uma campanha: era necessário dar guarida a estes
miúdos em zonas mais plácidas da Europa. E foi assim que Herbert, o menino dos
ratos, chegou a Sepins (entre Coimbra e Aveiro) e à casa dos avós da minha
sogra.
Habituado ao futuro pós-apocalíptico, Herbert gostou do passado campestre
que ainda marcava a vida desta aldeia bairradina. Comia leitão como um
príncipe, as criadas de dentro tratavam-lhe da roupa e pregava partidas aos
meninos e meninas da casa. Entre outras cachopices, atirava peles de gato bravo
à minha sogra. E, tendo em conta que era menino, até atingiu um grau de
proximidade com o avó Filipe que estava interdito às meninas. Por exemplo,
andava de bicicleta com o “uncle Philipe” pelos campos e propriedades da
família. Com o tempo passou a ser um rapaz normal, mas, por vezes, este
vienense da Bairrada ainda revelava os traumas da guerra. A família passava
largas temporadas na Figueira da Foz, que na época tinha um aeródromo: quando
ouvia os aviões, Herbert atirava-se para o chão ou corria para debaixo das
camas; nas festas da aldeia os foguetes causavam o mesmo reflexo no antigo
caçador de roedores.
Com Viena já reconstruída, o jovem voltou à pátria, mas regressava todos
os verões à família adoptiva. O “uncle Philippe” pagava a passagem de avião e
ele ficava hospedado na casa de férias da família na Barra. Estas surtidas de
teenager ao paraíso português terminaram quando casou com Inga, uma húngara que
havia fugido da Hungria comunista. Só uma refugiada pode compreender um
refugiado, não é verdade? Não tiveram filhos. Quando Inga faleceu, Herbert
ofereceu às mulheres da sua família portuguesa as roupas e jóias mais requintadas
da ex-mulher. Não por acaso, durante os dias do baptizado da nossa mais nova, a
minha mulher usou uma blusa herdada dessa misteriosa aristocrata húngara. Claro
que hoje em dia Herbert já não vem a Portugal com a mesma frequência, já não
faz procissões de agradecimento à Beira Litoral todos os anos, mas continua a
escrever cartas num português decente aos membros mais velhos da família, aos
filhos que restam do “Uncle Philippe”.
Esta história de compaixão teve como palco um Portugal muitíssimo mais
pobre do que o actual. Temos o dever de repeti-la. Onde estão os “uncle
Philippe” de hoje?
Henrique
Raposo
Expresso 12 de Setembro de 2015
E ai daquele, que se atreva a duvidar do racional desta parábola, por comparação com a táctica do “flashmob rule” nas fronteiras da Europa...
ResponderEliminarFaz-me confusão que as pessoas ainda se choquem tanto com as tragédias da 2ª Guerra Mundial e que, ao mesmo tempo, se neguem a ajudar os necessitados de hoje em dia... parece-me uma hipocrisia e um cinismo sem medida.
ResponderEliminarUma história encantadora.
ResponderEliminarAposto que Henrique Raposo, seguindo o exemplo do "Uncle Philippe" já recebeu um refugiado (claro que não será austríaco, não têm, para troca) em sua casa e portanto temos o problema diminuído em uma unidade.
É pouco?
Há mais escritores no Expresso e o exemplo pode ser contagiante.