Elis Regina (1945-1982)
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Aos 70 anos de idade, Elis já merecia uma biografia assim. Com todo o respeito, com todo o carinho, Furacão Elis, de Regina Echeverria, apesar de abundante na informação, era um livro conciso demais para aquela imensidão de vida. Por seu turno, Viva Elis, de Allen Guimarães, constitui sem dúvida um álbum muito ilustrado, prenhe de fotografias e depoimentos, mas oficioso e contido em excesso para o que Elis tem para contar.
Julio Maria (n. 1973), jornalista especializado em crítica musical, resolveu a coisa pelo esmagamento, com um volume de mais de 400 páginas e muita investigação, feita a partir de dezenas de entrevistas.
Logo nas páginas iniciais surge um português, como portugueses eram os ascendentes de Elis Regina Carvalho Costa. Elis Regina. Nada Será como Antes, que chegou perfumado do Rio graças à generosidade da Dulce (obrigado!), conta como, na manhã de 19 de Janeiro de 1982, o patrício Manoel Gouveia, motorista de táxi, levou Samuel Mac Dowell até ao Hospital das Clínicas, transportando nos braços a cantora moribunda. Manoel Gouveia ajudou o advogado, companheiro de Elis desde há alguns meses, a colocar o corpo de Elis numa maca. Ao entrar às pressas no hospital, Samuel esqueceu-se da agenda no banco de trás do táxi. Honesto e responsável, Seu Manoel regressou atrás para devolver o pertence de Samuel na portaria do Hospital das Clínicas, deixando anotada a sua identificação e a matrícula da viatura, um Fusca branco de 1976. Depois, seguiu caminho. Horas mais tarde, ouviria pelo rádio do carro que a mulher que transportara no seu táxi era Elis Regina, acabada de morrer.
Das muitas histórias contadas no livro, a mais maravilhosa é a da criação de Atrás da Porta, um prodígio de serendipidade. Diz muito do génio de Chico Buarque, mas também do ouvido apurado de Elis Regina e, sobretudo, de Roberto Menescal. Na preparação de um novo disco, Elis e Menescal receberam uma cassete com os nomes de Francis Hime de Chico Buarque escritos na etiqueta. Ouviram a primeira música, a segunda, a terceira, nada. No final da cassete, um som tímido surgia acompanhado de um pedaço inacabado de letra: Quando olhaste bem nos olhos meus / e o teu olhar era de adeus… Mais nada, a seguir só o silêncio. Desapontado, Menescal devolveu a fita a Hime, mas perguntou que música era aquela, da qual se ouviam apenas uns fugazes trinados. «Ah, deve ser algo que estava na fita. Eu gravei as outras por cima, nem sabia que ainda estava lá», disse Francis Hime, acrescentando que há muito que Chico Buarque tentava terminar aquela canção. Desistira pelo caminho. Atrás da Porta possivelmente não existiria se não tivesse ficado, naquela cassete, o fragmento minúsculo de uma gravação perdida. Pelo meio, Elis e Menescal fizeram uma coisa feia, levando Águas de Março para o novo disco em gestação. A música de Jobim estava prometida a uma jovem cantora, que se viu esbulhada da jóia preciosa por um golpe baixo de Menescal. Da jovem cantora, de seu nome Rose, mais ninguém ouviu falar. Na voz de Elis, Águas de Março atingiu as estrelas.
Com Águas de Março no bolso, Elis e Menescal viraram-se para Francis Hime. A instâncias de Menescal, Elis cantou o que existia do trecho da letra, acrescentando lá, lá, lá na parte iletrada. Com o produto semiacabado, Roberto Menescal ligou para Chico Buarque. Correu até à casa do músico, mostrou-lhe o que Elis havia feito. Então, Chico pegou num pedaço de papel e escreveu o que restava da letra ali mesmo, na frente do amigo. Questão de minutos. «Toma, não quero nem ler de novo», disse Buarque a Menescal.
Logo nos primeiros tempos da gravação em estúdio de Atrás da Porta, Elis não parava de chorar. Num gesto muito raro
nela, parou a gravação várias vezes, começando a cantar desde o início, uma vez
e outra, entre soluços. Acompanhada de Águas de Março e outras
preciosidades, Atrás da Porta surgiu no álbum Elis,
gravado pela CBD-Philips em 1972, com produção de Roberto Menescal e arranjos
de César Camargo Mariano, outro nome grande da música e da vida de Elis. O
disco seria relançado em CD em 1988 e Atrás
da Porta é das grandes músicas – para mim, a maior de todas – do repertório
de Regina. No dia em que Elis faria 70 anos coloquei-a
aqui, numa interpretação tremenda de dilacerante.
O mais espantoso de tudo é pensar que Atrás da
Porta, música e letra, esteve quase para não acontecer. Não tivesse ficado
perdido um pedaço minúsculo no fundo de uma cassete, Elis e Menescal não teriam
ouvido a criação de Francis Hime e de Chico Buarque. A música, muito
provavelmente, nem sequer existiria hoje. Aconteceu tudo por um triz, o puro
acaso feliz. Como a velha amizade do Pedro Mendes Pinto, que com Elis
partilha o petit nom Pimentinha, é
louco danado por música e biografias brasileiras e nasceu a semana passada há
precisamente 50 anos de idade.
António Araújo
Elis era uma força da natureza e que saudades dela :-(
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