Este Verão
em Ponta Delgada comprei o livro Memórias
e Reflexões, de Machado Pires (Letras
Lavadas, 2015), como faço com todos
os livros do autor. E, como acontece sempre também, li-o por inteiro. Para mais,
gosto de livros de memórias.
Num dos
capítulos, Machado Pires aborda o famigerado incêndio da Universidade dos
Açores em 1989, procurando – e com justificada razão – deixar limpa a sua própria
memória. Nada mais natural.
Ao
fazê-lo, porém, escreve a dada altura:
“O agente A. [da Judiciária] que ia contactando comigo, disse-me,
após meses de investigação, que estava desapontado com a sua instituição, que
era preciso ir mais longe, talvez mesmo do outro lado do Atlântico. O agente A.
foi transferido para o Porto. O director da P. J. também mudou. Este novo
director veio a minha casa pessoalmente dar-me conta do andamento do processo,
pois eu pedira informações, após silêncio prolongado.”
De
seguida, Machado Pires assevera não ter recebido mais informações sobre a
investigação. “O caso viria a ser
arquivado, de acordo com o ofício dirigido ao Reitor [ao próprio Machado
Pires, isto é], com data de 21 de
Fevereiro de 1991, referindo-se ao Processo Nº 1092/89, classificado de “fogo posto”.
E tenho de
continuar a citar:
“Com data de 15 de Fevereiro de 1991, portanto seis dias
antes, o Correio
da Manhã (Lisboa) trazia informações
sobre o incêndio, em artigo intitulado “Querem “apagar” o fogo que destruiu
há anos a Universidade dos Açores”,
assinado por Valdemar Pinheiro. O texto fala do “guarda atacado”, de “um
telefonema misterioso”, de “separatistas treinados na Líbia”, de um “estranho
assalto”.
Acrescenta
Machado Pires não se pronunciar sobre a validade das informações alegando não
conhecer as fontes das mesmas; declara não ser seu objectivo “cultivar sensacionalismos nem acusar
ninguém”. E prossegue: (p.84). “Mas
fica para a história dos Açores um facto por explicar, envolto em sombras e
dúvidas, e que destruíra, consideravelmente, património açoriano. Um facto que
foi utilizado contra mim de forma injusta.”
Tudo bem,
tudo normal, se não estivessem claramente referidos nas citadas passagens dois
factos que levantam uma questão séria, ao menos para mim: o desapontamento do “agente
A.” com a sua instituição pois, segundo ele, “era preciso ir mais longe, talvez mesmo do outro lado do Atlântico”;
e a reportagem do jornalista Valdemar Pinheiro, no Correio da Manhã, onde se menciona “um telefonema misterioso”.
Ora esses
dois elementos, aparentemente inócuos, apontam para mim, como o antigo Reitor
da Universidade dos Açores muito bem sabe. O problema resulta claramente e em
grande parte do mau jornalismo reflectido nessa reportagem do Correio da Manhã, a que já voltarei.
Antes disso, porém, corrigirei Machado Pires num ponto fundamental. Se “o agente A” foi transferido para o
Porto, não abandonou o caso. Tanto assim é que solicitou uma audiência comigo
que ocorreu precisamente nessa cidade. Telefonou-me ainda em Ponta Delgada a
pedir-me uma conversa, mas fê-lo precisamente na véspera de eu deixar os Açores
de regresso aos EUA e, por isso, era nesse momento impossível um encontro.
Perguntou-me então quando voltaria eu a Portugal. Como eu tinha um colóquio
agendado para o Porto dali a meses, ficou o encontro combinado para essa cidade.
E agora nova correcção a Machado Pires: foi depois duma entrevista comigo de
duas horas que o caso ficou definitivamente arquivado. Mas isso aconteceu –
note-se – precisamente porque, quer “o
agente A” tivesse sido o autor da teoria do “já está a arder” desse
telefonema supostamente “misterioso”, quer ele simplesmente tenha seguido as
pistas que lhe foram sugeridas por outrem e em que ele terá posto alguma fé, segundo
sugere Machado Pires, na conversa comigo quaisquer laivos conspirativos
desmoronaram num ápice. A teoria era tão estapafúrdia, tão baseada em
imaginação incrivelmente mal informada que eu me diverti à brava a corrigir o
senhor Inspector e a esclarecê-lo sobre dados básicos de que ele não fazia a
menor ideia. Foram de tal ordem os esclarecimentos que lhe prestei que ele nem
se deu ao trabalho de transcrever o meu longo depoimento e simplesmente
encerrou a investigação. Foi o inventivo jornalista do Correio da Manhã que fez deduções (ou reproduziu informações
ouvidas mas não verificadas) que chumbariam qualquer aluno num exame do
primeiro ano de jornalismo. A parte que a mim se refere nesse artigo (sempre
sem mencionar o nome, mas claramente levantando
suspeitas a meu respeito) é um chorrilho de asneiras. Ele poderia ter
seguido as regras mais elementares da investigação jornalística ouvindo-me
simplesmente. Eu, como é óbvio, ter-me-ia disposto a esclarecer-lhe as confusões
por trás dessa fantasiosa teoria do “já”, tal como fizera perante “o agente A” que,
depois de me escutar, não hesitou em recomendar que o processo fosse arquivado.
Todavia o Sr. Valdemar Pinheiro não fez isso. E só não o levei a tribunal porque
achei não valer a pena. Um dia teria o meu ajuste de contas. Vim a fazer esse
ajuste contando tudo tintim por tintim numa narrativa de quase 80 páginas (“O
ja…to, ou There she blows!) que abre
o meu livro Quando os Bobos Uivam. Pareceu-me
- e continuo a pensar ter sido a opção correcta - que a melhor maneira de lidar
com o caso seria expor o ridículo de quem se meteu a lançar suspeitas sobre mim
sem uma base minimamente sustentável. Diverti-me a escrever porque, para quem
tiver a paciência de ler tudo, essa narrativa acaba esboçando um retrato de
como as pessoas armadas em inteligentes Sherlock Holmes são capazes de repetir
e deformar dados, imaginar cenários macabros e tomá-los como realidade,
levantar aleivos sem qualquer escrúpulo, cair enfim nos maiores absurdos.
Num
regresso a esse assunto do incêndio da Reitoria da Universidade dos Açores, a jornalista
Ana Carvalho Melo, no Açoriano Oriental
de 9 de Junho de 2014, refere muito resumidamente essa minha narrativa. Todavia,
ou a leu demasiado depressa ou não se apercebeu de que ela merecia muito mais
atenção do que lhe concedeu. E não creio estar a exigir muito. O mais curioso é
que, embora Machado Pires mencione esse artigo da jornalista, parece no entanto
não ter tido a curiosidade de ler o meu próprio relato. Caso contrário, teria
completado e corrigido importantes informações e dispensar-me-ia de vir eu
agora de novo a público. Não o faço por gosto mas, tal como Machado Pires quis limpar
a sua memória – e, como eu disse acima, com razão suficiente –, também me acho
com direito de manter a minha limpa. Creio, porém, que Machado Pires poderia
ter conseguido o seu objectivo sem sentir necessidade de recorrer a renovadas,
mesmo se apenas implícitas, insinuações sobre um colega “no outro lado do Atlântico”.
Os
leitores interessados em entreter-se um pouco neste final de Verão podem
deslindar o “misterioso telefonema” lendo esse meu “conto realista” com
princípio meio e fim no livro Quando os
Bobos Uivam (Clube do Autor, 2013). Inteirar-se-ão de como tudo acaba com “o agente A”, algo embaraçado, pedindo-me
desculpa por me ter envolvido no caso e reconhecendo explicitamente que por
aquela pista do “outro lado do Atlântico”
se não chegaria a nada.
E isto é
apenas um resumo de uma divertidíssima conversa, que chega a ter ares de
surrealista.
Admito, claro
que estou a publicitar o meu livro, mas convenhamos que bons motivos a tanto me
induzem. Não tenho espaço para mais neste artiguinho de jornal e, de qualquer
modo, não iria repetir aqui as 78 páginas de um escrito meu já publicado. Ah! Pensando
bem, talvez devesse agradecer a Machado Pires a oportunidade de lembrar um
pouco esse livro, algo que nunca na vida fiz com qualquer outro da minha
autoria.
Onésimo
Teotónio de Almeida
(também publicado no Diário dos Açores)
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