quinta-feira, 3 de setembro de 2015


impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

# 33 - CLARK TERRY

 

 

 

 
De tanto resistir ao tempo Clark Terry acabou por ser reparado. E ainda assim teve que se desenlaçar da condescendente confusão entre importância e longevidade, que comumente celebra o mérito pelo que ele foi ou significou, em vez de o apreciar como um valor vivo.
Se o jazz é hoje enobrecido com um estatuto académico e cultural, talvez tal se deva por se ter levado demasiado a sério nas carrancudas décadas de 60 ou 70 e até nos anos 80, que pretenderam reabilitar a tradição. A todos estes movimentos Clark Terry sobreviveu, mesmo à tentativa de resgate, sem nunca ter reprimido uma característica adquirida no tempo em que debutou, quando o jazz era swing, ou seja, uma forma de entretenimento: o sentido de humor. Nas actuações de Clark Terry, mais tarde ou mais cedo, haveria de comparecer o seu alter-ego Mr. Mumbles, que fazia scat, cantava ou mesmo conversava num patoá de língua entaramelada – quase um género musical em si mesmo.
Numa carreira tão longa poucas são as fotografias em que Clark Terry não esteja a rir, o que é sintomático da forma como ele desinibiu a sua música de qualquer aspecto litúrgico – cunho assaz atípico num jazzman – e exerceu a profissão à imagem dos antigos jograis, disponível para toda a obra com afinco de operário. Daí que durante uma década tenha sido músico residente no programa de televisão “Tonight show” de Johnny Carson, estreando-se historicamente como o primeiro negro a constar na folha de pagamentos da NBC com remuneração de figura principal.
A popularidade, porém, nunca diminuiu ou embaraçou a eloquência de Clark Terry e mesmo que ela lhe tenha retardado o reconhecimento entre os públicos específicos do jazz, ou que não lhe haja estendido o tapete do crédito musical muito para além dos círculos do jazz, não o impediu de gravar uma obra verdadeiramente monumental. É preciso puxar pelas meninges para lembrar um nome que não tenha tocado com Terry desde Herbie Mann até Cecil Taylor (com Archie Shepp, Steve Lacy e Roswell Rudd! – em 1961!!), de Duke Ellington a McCoy Tyner, ou de Stan Getz até Elvin Jones – isto são quantos périplos ao mundo do jazz? Diga-se antes assim: quem se deu ao trabalho de contar as vezes que o nome de Terry se inscreveu em gravações discográficas, quer à cabeça quer integrado num grupo, chegou à mirabolante quantia de 905 (sim, novecentas e cinco!) aparições.
 
 

 
George Gerschwin’s Porgy & Bess
2004
A440 Music Group - 9002
Clark Terry (trompete, flugelhorn) e a Chicago Jazz Orchestra
 
 
Até ao princípio do século XXI houve o hábito de destacar deste oceano musical, “In Orbit” como obra mais proeminente, gravada em quarteto com Thelonious Monk ao piano, sem desmerecer as presenças de Philly Joe Jones na bateria e Sam Jones no contrabaixo.
Mas em 2004 Clark Terry com a serena idade de 82 anos veio baralhar as contas ao interpretar trechos de “Porgy & Bess” num arranjo orquestral para solo de trompete. Ao cometimento bem poucos se atreveriam, mesmo músicos de fôlego juvenil, já que a partitura exige grande saúde pulmonar, lábios perfeitos e dedilhar resoluto. A estas dificuldades naturais poder-se-iam juntar outras de índole formal. O enquadramento dado pela pujante Chicago Jazz Orchestra – uma bateria de mais de vinte metais e ainda ornamentada com contrabaixo e bateria – arriscaria uma tonalidade mesureira e pomposa, para que não esmagasse o venerável ancião. Além de que, sinceramente, repertório mais repetido, ungido e saturado do que este, não haverá. De modo que Clark Terry pôs em jogo a insuperável inteligência dos sábios e contrastou a sua interpretação com a memória da suspensão dramática de Miles Davis, feita a partir do arranjo de Gil Evans, recortando delicadíssimas filigranas sonoras com o seu trompete. E assim fez o que só poderia ser feito por alguém que atravessou uma vida para ali chegar.
Este triunfo ainda foi gozado por Clark Terry durante mais 11 anos até se apagar em 2015 com uns belos 94 anos.
 
 
José Navarro de Andrade
 
 
 
 

2 comentários:

  1. Tenho andado muito ocupado semeando a discórdia no online do Expresso e só hoje pude colocar um deste velhote.

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  2. Estava a ver que falhava o nosso querido Clark Terry... Um abraço.

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