A Mila
merecia uma milonga, de tão bem que escreve. Mas não piazzola quem quer…
Limito-me a aplaudir, sentado. Por privilégios que não mereço, li-o antes
de chegar às livrarias – que é hoje, dia 1 de Setembro. Um dos grandes livros
portugueses deste ano, a revelação de uma escritora muito mais que promissora.
Djaimilia
Pereira de Almeida nasceu em Luanda, em 1982, e cresceu nos arredores de
Lisboa. Descobriu Portugal inteiro, e os farrapos do seu império, à
entrada da Pensão Covilhã, mesmo na esquina da Casa de Amigos de Paredes de
Coura. Desde muito nova, debateu-se com seus cabelos crespos e, já na idade adulta,
doutorou-se em Teoria da Literatura, que agora pôs em prática summa cum laude. O surgimento de Esse Cabelo deve-se ao seu talento,
intuição e arte. À sua admirável capacidade de observação das coisas. E talvez
também, não sei, ao facto de o seu avô Castro lhe ter deixado de herança uma
colecção de canetas Parker de
imitação. Mas, sem questionar tantos méritos, este milagre era uma questão de
tempo, já estava escrito nos astros. Um dia, mais cedo ou mais tarde, esta geração
de 80, nascida cá ou lá fora, crescida nos arredores das cidades, haveria de nos
trazer páginas assim, como esta:
«Cheguei a Portugal em oitenta e cinco, vinda de
Angola. O meu pai precedera-me em um ano regressando para um novo emprego. Fora
no final de setenta em Luanda, com pouco mais de vinte anos, que conhecera a
minha mãe. Quando eu for a última testemunha, e já não me lembrar se foi nos
correios, no consulado, na televisão, se na praia, que os meus pais se
conheceram, os meus netos consolar-se-ão com o livro deixado a meio que é
quanto sei, quanto saberão, sobre o namoro e o casamento dos meus pais. Quando
já não me lembrar se a minha mãe levava o cabelo solto ou um toucado de
missangas, se a cauda do vestido era comprida, se tudo se deu em privado, se na
conservatória, se na praia; quando do passado restar apenas a cauda, a beleza
da tal vizinha, o apuro daquele tempero, o amarelo de uma balaustrada, o cheiro
a tinta de tudo, dir-me-ão «repete, avó» os meus netos, e eu adornarei o amarelo
de bolor, acrescentarei ao tempero jindungo, adornarei a vizinha com um chapéu,
numa tentativa de eu própria não desaparecer, não me deixar engolir.»
Quando a Djaimilia tiver netos, sendo a
derradeira testemunha da saga familiar que agora nos conta, aqueles lembrar-se-ão
de muita coisa. Estou certo de que nunca esquecerão que um dia a avó escreveu um livro. E, depois dele, muitos
outros. Para nosso desfrute – e para que ela e o seu nome não
desaparecessem, sendo engolidos nas trevas da desmemória. O livro termina
com uma pergunta: «quem é ainda Mila?» Só o futuro lhe responderá. Mãe e avó,
talvez um dia. Por ora, Mila é alguém que escreveu um livro, um grande enorme livro, espantosamente belo. Esse Cabelo, comovente da raiz às pontas.
António Araújo
A julgar pela apresentação, é um livro de arromba. Oxalá venda bem e agrade. Será bom para todos. Muito êxito.
ResponderEliminar"Non omnis moriar"
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