terça-feira, 1 de setembro de 2015

Esse Cabelo.






A Mila merecia uma milonga, de tão bem que escreve. Mas não piazzola quem quer… Limito-me a aplaudir, sentado. Por privilégios que não mereço, li-o antes de chegar às livrarias – que é hoje, dia 1 de Setembro. Um dos grandes livros portugueses deste ano, a revelação de uma escritora muito mais que promissora.

Djaimilia Pereira de Almeida nasceu em Luanda, em 1982, e cresceu nos arredores de Lisboa. Descobriu Portugal inteiro, e os farrapos do seu império, à entrada da Pensão Covilhã, mesmo na esquina da Casa de Amigos de Paredes de Coura. Desde muito nova, debateu-se com seus cabelos crespos e, já na idade adulta, doutorou-se em Teoria da Literatura, que agora pôs em prática summa cum laude. O surgimento de Esse Cabelo deve-se ao seu talento, intuição e arte. À sua  admirável capacidade de observação das coisas. E talvez também, não sei, ao facto de o seu avô Castro lhe ter deixado de herança uma colecção de canetas Parker de imitação. Mas, sem questionar tantos méritos, este milagre era uma questão de tempo, já estava escrito nos astros. Um dia, mais cedo ou mais tarde, esta geração de 80, nascida cá ou lá fora, crescida nos arredores das cidades, haveria de nos trazer páginas assim, como esta:

 

«Cheguei a Portugal em oitenta e cinco, vinda de Angola. O meu pai precedera-me em um ano regressando para um novo emprego. Fora no final de setenta em Luanda, com pouco mais de vinte anos, que conhecera a minha mãe. Quando eu for a última testemunha, e já não me lembrar se foi nos correios, no consulado, na televisão, se na praia, que os meus pais se conheceram, os meus netos consolar-se-ão com o livro deixado a meio que é quanto sei, quanto saberão, sobre o namoro e o casamento dos meus pais. Quando já não me lembrar se a minha mãe levava o cabelo solto ou um toucado de missangas, se a cauda do vestido era comprida, se tudo se deu em privado, se na conservatória, se na praia; quando do passado restar apenas a cauda, a beleza da tal vizinha, o apuro daquele tempero, o amarelo de uma balaustrada, o cheiro a tinta de tudo, dir-me-ão «repete, avó» os meus netos, e eu adornarei o amarelo de bolor, acrescentarei ao tempero jindungo, adornarei a vizinha com um chapéu, numa tentativa de eu própria não desaparecer, não me deixar engolir.»

 

         Quando a Djaimilia tiver netos, sendo a derradeira testemunha da saga familiar que agora nos conta, aqueles lembrar-se-ão de muita coisa. Estou certo de que nunca esquecerão que um dia a avó escreveu um livro. E, depois dele, muitos outros. Para nosso desfrute – e para que ela e o seu nome não desaparecessem, sendo  engolidos nas trevas da desmemória. O livro termina com uma pergunta: «quem é ainda Mila?» Só o futuro lhe responderá. Mãe e avó, talvez um dia. Por ora, Mila é alguém que escreveu um livro, um grande enorme livro, espantosamente belo. Esse Cabelo, comovente da raiz às pontas.


 
António Araújo




 

2 comentários:

  1. A julgar pela apresentação, é um livro de arromba. Oxalá venda bem e agrade. Será bom para todos. Muito êxito.

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