quinta-feira, 17 de setembro de 2015




impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

# 78 - ARCHIE SHEPP
 

Fotografia de Jan Kricke
 

 
Como haveria o jazz de flanquear as turbulências dos anos 60 americanos, se desde pelo menos a irrupção do bebop deixara de ser uma forma de entretenimento e se transfigurara numa intrigante expressão de estados de alma? Logo o jazz, em cujos cromossomas se inscreve um pendor para a confusão e a transgressão... A parte da década que coube às flores do pacifismo e ao delicodoce onirismo, além do LSD teve o rock (com ou sem roll) e a pop como cantata e coda – géneros que por esta simpática via conquistaram peso hegemónico na indústria musical – reservando-se o jazz como sarabanda de acompanhamento às tendências insurreccionais e combativas da época, nomeadamente aquelas que se agitaram em torno da contestação à guerra do Vietname e da luta pelos Direitos Civis dos negros.
Sem ser o único, Archie Shepp terá sido o músico mais significativo deste posicionamento politizado e rebelde. Para que não houvesse dúvidas ao que ia, declarou desabridamente numa entrevista que apreciava o saxofone como “a metralhadora nas mãos do vietcong.” Havia que desafiar o status, mesmo que parte do status integrasse e celebrasse as provocações que lhe eram dirigidas. De forma que tendo Shepp objetivado a sua cólera contra o homem branco e a usurpação que ele fazia do jazz, o homem branco, cabisbaixo, aplaudiu. Tal e qual como a abastada intelectualidade liberal nova-iorquina, de Susan Sontag a Gore Vidal, passando pelo nemesis deste, Norman Mailler, faziam dos revolucionários black panthers a coqueluche dos seus saraus literários.
Assim foi que Archie Shepp se adiantou como uma das pontas de lança da nova etiqueta Impulse!, que dentro daquelas inconfundíveis capas negro-laranja perseverava por uma nova identidade do jazz, para a qual fora arregimentado por indicação de John Coltrane. Juntamente com Rashied Ali e Pharoah Sanders, Shepp nomeou-se como um dos mais chegados acólitos na derradeira e impenetrável fase de Trane, dividindo-se a doutrina entre sustentar que foram os seguidores a impelirem o mestre para as regiões dissonantes das harmonias diluídas, ou se foi o guia espiritual – pois então já Coltrane vogava a sua música em águas místicas – que moldou a equipa à feição das sonoridades que pesquisava. O certo é que este selo musical nunca mais despegou do estilo de Archie Shepp.
 

Fire Music
1965
Universal/Impulse! - 9092
Archie Shepp (saxofone tenor), Ted Curson (trompete), Joseph Orange (trombone), Marion Brown (saxofone alto), Reggie Johnson (contrabaixo), David Izenzon (contrabaixo), Joe Chambers (bateria), J. C. Moses (bateria)
 
“Fire Music” foi uma das obras mais conseguidas, simultaneamente da Impulse! e de Archie Shepp, um disco angular da New Thing, uma corrente do jazz que, podemos afirmá-lo hoje sem ofensa de maior, verteu-se como um córrego sazonal, em vez do pretendido aluvião que desaguaria no oceano da música, revolvendo-lhe a composição. 
A formação reunida pelo saxofonista é desde logo incomum, prescindindo da suavidade melódica do piano e musculando-se à base de metais: trombone, trompete, saxofone alto e o tenor de Shepp, com o seu peculiar timbre amarrotado, um pouco estridente, e de modo algum afinado segundo as convenções clássicas. A bateria convoca o ritmo das percussões africanas e o contrabaixo – o primeiro instrumento a ouvir-se – também ele se dedica a linhas rítmicas muito tonificadas.
Postas assim as coisas o repertório de “Fire Music” é menos peripatético do que aparenta à primeira vista. O que faz ali “Garota de Ipanema”, originalmente doce e sussurrado? Representa a unidade semântica entre a Bossa Nova e a New Thing, sob a qual se descobrem laços imprevistos. Mas antes ouvir-se-á a palavra declamada em “Malcolm, sempre Malcolm” por influência do poeta da negritude LeRoy Jones (ainda não denominado Amiri Baraka), a homenagem aos deserdados da terra retratados por Buñuel em “Los Olvidados” e uma fateixa lançada ao cânone com “Prelude to a kiss”. Todavia é em “Hambone”, a primeira composição de “Fire Music” que Archie Shepp diz tudo – e nunca o terá dito melhor.
 
 
 
José Navarro de Andrade
 
 
 

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