A 7 de Setembro de 1968,
a rádio e os jornais vespertinos noticiaram a operação a que Salazar fora
submetido na madrugada desse dia, transcrevendo o primeiro boletim médico:
"Em consequência de uma queda na sua residência de verão, no Estoril, o Sr.
Presidente do Conselho apresentou sintomas que levaram o seu médico assistente
a recorrer à colaboração de dois colegas neurocirurgiões. S. Ex.ª foi operado
esta noite de um hematoma, sob anestesia local, encontrando-se bem".
As palavras foram sopesadas,
para tranquilizar. A referência inicial à queda sugeria que se tratava só de um
acidente e não de uma doença, que soaria mal, especialmente num homem de 80
anos. O pormenor da anestesia local atenuava a aparente gravidade da
intervenção cirúrgica. Houve cortes censórios, também. O presidente Tomás impôs
"operado esta noite" em vez de "operado esta madrugada",
que lhe parecia demasiado dramático. Falava-se de um hematoma, mas não se disse
que era intracraniano, por ordem do subsecretário de Estado da Presidência,
Paulo Rodrigues, para "não alarmar".
Residência de verão de Salazar, protegida por tripla muralha estrelada.
(Forte de Santo António do Estoril, vista actual de satélite.)
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No dia seguinte, os
matutinos começaram a desenvolver a notícia, tanto quanto a censura o permitia.
O oficioso Diário de Notícias julgava
saber que o chefe do governo tinha sido vítima de uma queda "quando se
encontrava a repousar numa cadeira na sua residência de verão (...) devido a
ter-se soltado uma peça da cadeira de lona em que se sentava". Não era revelada
a fonte de tal informação nem a data do acidente.
Sabe-se hoje que ninguém
presenciou a famosa queda, pois apenas outra pessoa se encontrava naquele aposento
do Forte com Salazar, o seu calista Augusto Hilário, que no momento ensaboava
as mãos num lavatório, de costas para o governante, segundo revelou vinte anos
depois à jornalista Helena Sanches Osório.
Acerca da cadeira, envolvida
na história desde a primeira reportagem do Diário
de Notícias, soube-se depois que era uma cadeira tipo "realizador de
cinema". Ao longo dos anos, diversas versões surgiram sobre o modo como se
terá dado o acidente e sobre o papel da cadeira no sucedido. Segundo uns,
Salazar estaria já sentado na cadeira e esta ter-se-á desconjuntado debaixo
dele (versão inicial do Diário de
Notícias, depois muitas vezes repetida, inclusive pelo médico assistente,
Eduardo Coelho). Segundo outros, a queda do chefe do governo aconteceu ao
sentar-se, ou por falta de pontaria do sentante, embrenhado na leitura do
jornal, ou pela forma imprudente como costumava sentar-se, deixando-se cair desamparado
(acutilante testemunho do presidente Américo Tomás), ou ainda porque a cadeira
não se acharia "bem encartada" (Franco Nogueira, baseando-se num alegado
relato do próprio Salazar). O que não faz dúvida, de acordo com todas as
versões, é que Salazar, segundo ele mesmo declarou, bateu com a nuca no chão
(tijoleira para uns, pedra para outros).
Há ainda uma nublosa história
posta a correr pelo inevitável Fernando Dacosta no livro Máscaras de Salazar (1997), segundo a qual a queda fatídica ter-se-ia
dado a 3 de Agosto, na presença do barbeiro de Salazar, Manuel Marques, que
Dacosta entrevistou. O governante, afinal, não teria caído da cadeira, nem
juntamente com ela, mas sim directamente no chão, ao lado da dita, como nos
filmes cómicos. Não se deve pôr simplesmente de lado este tardio testemunho do
barbeiro, pois Salazar pode ter caído duas vezes, ou mais, naquele verão de
1968. Diga-se que o barbeiro citado por Dacosta é designado por Salazar na sua
agenda como "cabeleireiro". Cortava-lhe o cabelo pontualmente de quinze
em quinze dias, sempre ao domingo de manhã. Segundo a agenda de 1968, o
cabeleireiro apareceu nos domingos de 12 e 26 de Maio, 9 e 23 de Junho, 7 e 21
de Julho, 18 de Agosto e 1 de Setembro. Falhou apenas a 4 de Agosto, um domingo
em que calharia o corte quinzenal, mas que não ficou registado no diário nesse
dia, nem nos dias anteriores, nem nos seguintes. Ou Salazar se esqueceu de
registar o corte de cabelo daquele domingo, o que não é totalmente impossível, ou
passou 28 dias sem o cortar, e neste caso a história do barbeiro (ou de
Dacosta) mete água. Mas é imaginável que a data de 3 de Agosto, um sábado, avançada
por Dacosta tenha sido bebida noutra fonte, que não o barbeiro. Certo é que o
cabeleireiro ia sempre ao domingo,
nunca em outros dias da semana.
Foi a cadeira que foi julgada
culpada por D. Maria, a irascível governanta do governante, que dois dias
depois do acidente a terá partido e
deitado ao mar – isto segundo Dacosta, que a entrevistou repetidamente. Como
Dacosta sustenta que a cadeira não foi vista nem achada no acidente, não se
entende a reacção de D. Maria por ele relatada. A explosão de mau génio da
governanta foi obviamente precipitada, que noutras circunstâncias poderia até configurar
uma destruição de prova. A histórica peça de mobiliário, se ainda existisse
hoje, atrairia certamente visitantes a qualquer museu. Num leilão, renderia bom
dinheiro.
A data da queda de
Salazar nunca foi estabelecida com razoável certeza. Franco Nogueira, na sua
biografia de Salazar, conjecturou 3 de Agosto. O médico assistente Eduardo
Coelho, no livro Salazar: O Fim e a Morte,
não indicou uma data precisa. Helena Sanches Osório, que entrevistou o calista
em 1988, inclinou-se para 5 de Agosto. Paulo Otero, em Os Últimos Meses de Salazar, preferiu 4 de Agosto. Fernando Dacosta
parece atribuir ao barbeiro Marques a data de 3 de Agosto. Nenhuma destas datas
está provada documentalmente. Diga-se que a data precisa não tem, em si mesma, qualquer
importância transcendente, excepto a de constituir para muita gente, por uma
razão ou por outra, uma efeméride memorável. As consequências da queda não
foram imediatamente sensíveis e Salazar continuou a trabalhar normalmente após
o acidente, que apenas lhe deixou dores no corpo. Compulsando a sua agenda no
mês de Agosto de 1968, verifica-se que prosseguiu ao mesmo ritmo a despachar, ler
telegramas, fazer telefonemas, dar audiências, ler jornais, etc. Até fez uma
remodelação do governo no dia 19 de Agosto, metendo sete novos ministros.
Em 2014, o jornalista
Miguel Pinheiro, no livro A Noite Mais
Longa, revelou um documento inédito do Arquivo Salazar que, na sua opinião,
esclarece definitivamente a data do acidente – 1 de Agosto de 1968. Trata-se de
uma carta do calista Augusto Hilário para Salazar, claramente datada desse dia.
Arquivo Salazar, CP-138, Cx. 995, fl.287.
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Exmo. Sr. Presidente:
Impressionadíssimo e preocupado, foi como hoje saí aí do
forte. Peço a Deus, Sr. Presidente, que nenhuma consequência tenha havido com
tão tremenda queda. Assim, com os mais respeitosos cumprimentos, faço votos de
muito boa saúde, pedindo-lhe desculpa de lhe escrever.
Lx 1/8/1968
Augusto V. Hilário
A carta de Hilário foi
lida a Salazar no dia seguinte por um seu secretário que, assim, também ficou
informado da queda secreta. Salazar respondeu a Hilário só a 6 de Agosto, depois
de ter sido examinado pelo seu médico assistente Eduardo Coelho, que não lhe
detectou alterações suspeitas. Diz o cartão de resposta ao calista:
"Parece não ter havido consequências da queda, além das dores pelo corpo.
Muito obrigado".
A carta de Hilário, se ele
não se enganou a datá-la, é taxativa: a "tremenda queda" foi a 1 de
Agosto. Miguel Pinheiro, em geral bem documentado, decidiu, porém, menosprezar outro
facto seu conhecido, que contradiz a data de 1 de Agosto. Na agenda, com
efeito, Salazar registou pelo seu punho, no dia 2 de Agosto às nove e meia da
manhã: "Hilário" – ou seja, a visita do calista, que só se repetirá a
4 de Setembro. Miguel Pinheiro evacuou a contradição com o curioso argumento de
que os diários de Salazar não são inteiramente fiáveis (p. 227).
Página da agenda de Salazar do dia 2 de Agosto de 1968, com o registo da visita matinal de Hilário.
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Pondo, pois, de lado as meras
conjecturas de Franco Nogueira, Helena Sanches Osório e Paulo Otero, temos que:
– segundo o barbeiro (ou Dacosta?),
Salazar deu uma queda no dia 3 de Agosto;
– segundo o calista Hilário, Salazar deu
uma "tremenda queda" no dia 1 de Agosto;
– segundo a agenda de Salazar, o
calista Hilário tratou-lhe dos pés no dia 2 de Agosto, mas o cabeleireiro Marques
não compareceu nas quatro semanas de 21 de Julho a 18 de Agosto.
Não há mais nenhum
documento realmente fidedigno, escrito em cima do acontecimento, para além dos
dois últimos referidos, ou seja, a carta do calista e a agenda de Salazar – que
são contraditórios. Não resta dúvida de que a visita de Hilário no princípio de
Agosto, independentemente da data precisa, coincide com uma "tremenda queda"
de Salazar. Mas poderia Salazar ter-se enganado ao registar a visita do calista
no dia 2 de Agosto e não a 1, como a carta de Hilário atesta? É duvidoso.
Salazar registava post factum os acontecimentos
do dia numa folha da agenda com a data no topo da página. Fazia esse registo
todos os dias, ordenando os factos em sequência horária, das 8-9h até às
23-24h. É bastante plausível que fosse fazendo esse registo no decurso da
jornada, finalizando-o ao fim da noite, pois acrescentava sempre as visitas, as
leituras de jornais e as conversas telefónicas havidas depois do jantar na sua residência.
Não se entende porque haveria de colocar na página do dia 2 a hipotética visita
do calista acontecida na véspera. Parece mais plausível que Hilário se tenha
enganado ao datar a sua carta a Salazar, escrevendo 1 em lugar de 2 de Agosto.
Tudo o que atrás fica dito parecerá sumamente
ocioso a quem tenha em mente que a queda da cadeira (ou sobre a cadeira, ou ao
lado da cadeira) em princípios de Agosto de 1968 não foi a verdadeira causa da
invalidez permanente do ditador Salazar, acarretando o seu fim político, mas
sim a doença que culminou no acidente vascular cerebral de 16 de Setembro,
quando estava quase recuperado da operação do hematoma, este sim resultante de
uma queda.
Os médicos que trataram
ou observaram Salazar, incluindo o americano Houston Merritt, foram unânimes em
que o AVC fatal de 16 de Setembro não resultou nem do hematoma nem da operação
que o removeu. Mas alguma relação deveria haver entre esses termos, porque um
dos sintomas que antecedem um AVC é a perda do equilíbrio, que pode ocasionar quedas.
A referida unanimidade dos médicos é de sublinhar, porque se guerrearam de
forma insólita, primeiro privadamente, depois na praça pública, a propósito dos
méritos e deméritos de cada. Posteriormente, autores como Costa Brochado,
Franco Nogueira e outros observaram que já antes
da queda Salazar mostrava sinais preocupantes de decadência psíquica e física.
Costa Brochado, assíduo visitante de Salazar e D. Maria, falou até de uma queda
anterior, em que Salazar teria batido violentamente com a cabeça numa banheira,
e de "sucessivos delíquios" que o presidente do Conselho vinha tendo,
"escondidos do público cuidadosamente por sua ordem".
A história da cadeira foi
mitificada, talvez porque as pessoas gostam de ver a mão do Destino a actuar
através de coisas prosaicas como uma cadeira de lona. A queda de um ditador de uma
cadeira é uma boa história, muito "gráfica", que além disso se presta
a variações metafóricas sobre a cadeira do
poder ou a queda do poder,
enquanto um AVC é algo de invisível, fugidio e desengraçado.
Resta na memória colectiva
que Salazar deu uma queda, foi operado por causa dela, ocorreram
"complicações" e só saiu do hospital meses depois, diminuído e
acabado, à espera da morte. Por mais que se diga, há-de sempre voltar-se à "queda
na residência de verão" de que falava o primeiro boletim médico, a 7 de
Setembro de1968. Não há nada a fazer.
José Barreto
Obras consultadas: Franco Nogueira, Salazar,
t.VI, 1985; Costa Brochado, Memórias de
Costa Brochado, 1987; Helena Sanches Osório, "O dia em que o regime
caiu", O Independente,
5.VIII.1988; Eduardo Coelho, Salazar: O
Fim e a Morte, 1995; Fernando Dacosta, Máscaras
de Salazar, 1997 (2010); Paulo Rodrigues, Salazar: Memórias para um Perfil, 2000; Paulo Otero, Os Últimos Meses de Salazar, 2008;
Miguel Pinheiro, A Noite Mais Longa,
2014.
Boa noite:
ResponderEliminarQueira ter a gentileza de consultar o meu artigo sobre a matéria e publicada o semanário "O Diabo" de 21 de Julho passado.
Att.
Fernando de Castro Brandão
Só hoje, meses depois do seu comentário, é que pude ler o seu artigo. Temos, afinal, a mesma opinião sobre a data da queda, tendo cada um chegado por si próprio a essa conclusão.
ResponderEliminarCom os meus melhores cumprimentos,
José Barreto
Era interessante que esse artigo fosse disponibilizado, visto que hoje em dia o acesso ao dito semanário de 2015 é bastante difícil. Cumprimentos, Miguel Morais
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