sexta-feira, 11 de maio de 2012

Classes médias: o tabuleiro global.

.
.
.




     As classes médias são o instável centro de gravidade das nossas sociedades, por onde passa a coesão do edifício social e que melhor o podem desestabilizar. São uma zona de virtual turbulência política, determinante para as próprias instituições democráticas. O sentimento de declínio das classes médias nos países desenvolvidos foi dramatizado pelos efeitos da crise económica de 2008. Há uma distinção a fazer: esta crise é um acelerador e multiplicador dos efeitos mas não a raiz do problema. 
A percepção actual do declínio das classes médias – na esteira das cíclicas crises ao longo do século XX – remonta a meados dos anos 1990. Combina muitos factores: do fim da era de ouro do pleno emprego e dos “trinta gloriosos” à globalização e às mutações tecnológicas. Nela se confundem situações de despromoção, troca de lugares na escala social, alargamento da distância entre a base e o topo, tudo isto dobrado pela “questão geracional”: na Europa ou nos Estados Unidos, quem nasceu nas décadas de 1940-50 teve mais hipóteses de alcançar a “classe média superior” do que quem nasceu a partir de 1970.
Falando da América, o ensaísta Michael Lind aconselha a ter sempre presente uma perspectiva histórica: todas as classes médias foram inventadas e, portanto, a sua reinvenção é o grande desafio da política de hoje – “antes que seja tarde”.
As classes médias podem ser definidas segundo vários critérios. Em termos de profissão e modo de vida, em termos de rendimento ou em termos subjectivos. Por um critério sociológico ou de rendimento, a classe média pode representar, por exemplo, 30% da população de um dado país. Mas os inquéritos podem indicar que dois terços dessa mesma população se definem como pertencendo à classe média. Do ponto de vista político, esta identidade é um factor relevante.
.
..
Camp Deco, aqui

É impossível discutir as classes médias sem ter em conta o novo tabuleiro mundial: elas estão ensanduichadas entre a estagnação dos “países ricos” e o exuberante crescimento dos “países pobres”. Este fenómeno reflecte-se nos media ocidentais através de dois registos: um pessimismo dominante sobre o declínio das classes médias domésticas e um deslumbrado optimismo sobre o potencial das novas classes médias dos países pobres – concorrentes mas aspirantes ao modelo ocidental de democracia.
Há uma prevenção a fazer. As classificações mundiais obedecem ao critério do rendimento, o único disponível a essa escala. Falamos portanto de coisas distintas. Classe média é o que está “no meio” da escala social. E o nível de rendimento desse “meio” nos países desenvolvidos não é comparável com o das classes médias que acabam de emergir da pobreza. O que está em jogo são dinâmicas inversas.
A “classe média mundial” triplicou em dez anos, titularam os jornais no ano passado ao resumir um estudo do grupo segurador alemão Allianz. Este estudo, que englobou 50 países, 68% da população mundial e 87% do PIB mundial, analisava apenas a riqueza privada das pessoas – e não os rendimentos. Os novos membros da “classe média mundial”, dispondo de activos financeiros entre 5.300 e 31.600 euros, passaram de 200 milhões, em 2000, para 565 milhões no fim de 2009. Metade vivia nos países emergentes: 130 milhões na China, 40 no Brasil.
Na mesma década, a riqueza das pessoas progrediu 16% nos países pobres, ou seja, sete vezes mais do que nos países ricos. Anotou uma analista do Allianz: “A grande surpresa reside no enorme impacto da crise nas economias desenvolvidas. Percebe-se como as grandes praças financeiras foram atingidas e como os países emergentes se saíram relativamente bem.”
O economista Johannes Jitting observou num estudo da OCDE: “Em 2050, 50% do consumo global do planeta caberá a chineses e indianos, contra os actuais 10%.” O centro de gravidade da economia mundial migra a grande velocidade.
Um estudo do banco Goldman Sachs sublinhava a explosão do consumo nos mercados emergentes. Os chineses compraram em 2009 mais automóveis do que os americanos e havia na Índia mais utilizadores da Internet do que nos EUA. Em 2030, nove em cada dez telemóveis estarão em países emergentes, a começar pela China e pela Índia. 
Os analistas ocidentais interrogam-se sobre os efeitos culturais e políticos desta “ascensão do resto”, para usar uma expressão de Fareed Zakaria. Um inquérito de 2009 do Pew Global Attitudes Project, cobrindo 13 países emergentes, sublinhava que as classes médias são as mais sensíveis aos temas da democracia e dos direitos cívicos.
“O desenvolvimento facilita e sustenta a democracia, mas não a garante”, ressalvava Robert Wike, director adjunto do Pew. A tendência é clara em países como o Chile, o Brasil ou a Índia, com tradição democrática. Na China, a atitude das classes médias é ambígua: o arbítrio do poder é cada vez menos tolerado, há exigências de liberdade de expressão e de independência da justiça. Mas impõe-se a distinção entre democracia e liberalização. A democracia não decorre mecanicamente do crescimento económico. A classe média chinesa é frágil e vê o seu futuro dependente da estabilidade social e política: “A democracia traz liberdade mas também o risco de caos.” A prosperidade da classe média chinesa assenta na sua aliança com o regime autoritário, frisa o sinólogo americano Andrew J. Nathan.


Benidorm, Espanha


 
A combinação entre liberalização económica e autoritarismo político – o “modelo de Singapura” – seduz grande parte da Ásia. Inversamente, a maioria dos indianos considera que “a democracia é boa para a economia”.
As classes médias são quase sempre classes ansiosas. Umas sentem-se ameaçadas por um declínio que é muitas vezes imaginário. As outras temem que o crescimento estagne, travando o ritmo da sua ascensão. Onde se cruzam ou chocam os interesses das classes médias dos “pobres” e dos “ricos”? A globalização é o terreno de eleição.
O economista americano Michael Spence explicou na Foreign Affairs que os efeitos negativos da globalização no Ocidente foram compensados, até à viragem do século, pela oferta de produtos mais baratos, que beneficiaram os consumidores ocidentais de todas as classes. Mas, depois da concorrência dos países emergentes ter dilacerado o tecido industrial – e a classe operária – a combinação entre globalização e novas tecnologias fere também uma parte importante das classes médias, no salário e no emprego.
Moisés Naím, director do magazine Foreign Policy, chamou atenção para o potencial de um novo conflito: “Na minha opinião, uma fonte muito mais importante de conflito do que o ‘choque de civilizações’ serão as mudanças nos rendimentos das classes médias nos países ricos – onde estão a declinar – e nos países pobres, onde estão a aumentar. (...) Isto gera expectativas frustradas que alimentam a instabilidade social e política.”
Naím garante que “as mais rigorosas investigações” revelam que a erosão dos salários nos países desenvolvidos não é efeito directo do rápido crescimento dos emergentes mas decorre “da mudança tecnológica, de uma produtividade anémica, da política fiscal e de outros factores domésticos”.

.
Christopher Payne, Classroom. Projecto North Brother Island, EUA


Na Espanha e na França, na Itália ou nos Estados Unidos, as classes médias sentem que a sua situação e o seu estatuto estão a piorar. Conclui Naím: nos emergentes, “não há governo que possa satisfazer as novas exigências de uma classe média em ascensão à mesma velocidade com que [as exigências] se produzem”; no Ocidente, os governos “estão submetidos a enormes pressões para conter a queda do nível de vida da classe média existente”. Alguns políticos desviarão o descontentamento, atirando as culpas para o rápido crescimento dos países pobres.
As eleições francesas são um espelho. Na extrema-esquerda e na extrema-direita, Jean-Luc Mélenchon e Marine Le Pen recorrem a simétricas retóricas nacionalistas para captar votos no medo e na insegurança das classes médias e populares. Em França, mostra o sociólogo Eric Maurin, o medo da despromoção é muito mais forte do que a despromoção em si mesma.
A globalização desloca o “centro do mundo”, a tecnologia muda o trabalho e ambas mudam o emprego. Não é possível inventar uma resposta ao declínio e à ansiedade sem perceber que “nada é como dantes”.
Jorge Almeida Fernandes
22/04/2012


Paul Himmel, Silhouettes

Sem comentários:

Enviar um comentário