quinta-feira, 31 de maio de 2012

O Verão Quente.

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Corria o ano de 1975. Nacionalizações, ocupações, armas em boas mãos, o país à beira de uma guerra civil. 1975, o do Verão Quente. No dealbar desse ano, dirigindo-se aos seus «Generosos Amigos», já a Voz Missionária, numa sagaz previsão dos tumultos vindouros, advertia os leitores: «Entramos em 1975 no meio de bem justificadas apreensões, não sabemos o que nos espera. Tememos que os “ventos da História” nos sejam adversos. Sentimos que as rápidas e profundas transformações que se vão operando à nossa volta abalam a nossa segurança e nos mergulham na incerteza». Na secção «Notícias que nos fazem pensar», três breves. De Paris, «A Igreja Clandestina na Rússia». De Belgrado, «Ameaça comunista à Igreja Jugoslava». De Budapeste, «Não pode haver co-existência entre o marxismo e o cristianismo».
Atenta aos sinais dos tempos, Voz Missionária respondia à revolução iminente com uma proclamação de perenidade. Contra as ameaças de ruptura, a exaltação da continuidade. As fotografias, como se vê, tanto poderiam ser de 1975 como de 1955. Imagens de rapazes sadios de faces rosadas e olhos piedosos, crianças de bibe num luminoso Portugal dos Pequenitos. Um jovem moço de chapéu de palha. Tudo casto e mimoso. SUV's guedelhudos, amor livre, manif's? Qual quê! O lettering e o layout, sublimes no seu vanguardismo, fazem a peneirenta Egoísta parecer uma folhazinha paroquial da ilha do Corvo. No final, última página, a rubrica «Adopção» convidava os leitores a adoptarem um seminarista, pela módica quantia de 3.000$00. «A quem faz a adopção dum nosso seminarista será enviado um diploma de benemerência, além de outros privilégios». Falar em privilégios numa revista de 1975 representa um must em termos de consciência de classe. Onde há classe não há classes. Para os leitores da Voz Missionária, foi, por certo, um tónico de segurança saber que ali, na Voz Missionária, nada mudara e nada mudaria. Muita gente fugira para o Brasil, outra tanta viera de Angola. Mas, no meio dessa multidão errante, a posição missionária mantinha-se, imperturbável. O que é bom e sólido nunca se transforma. Voz Missionária, grafismo clean, uma sabedoria de milénios. A Santo Agostinho devemos a mais genial e penetrante reflexão sobre o tempo alguma vez feita por um ser humano (Heidegger, és um ganda palhação nazi!). Respigamos uma breve passagem das Confissões:


Agora está claro e evidente para mim que o futuro e o passado não existem, e que não é exacto falar de três tempos – passado, presente e futuro. Seria talvez justo dizer que os tempos são três, isto é, o presente dos factos passados, o presente dos factos presentes, o presente dos factos futuros. E estes três tempos estão na mente e não os vejo em outro lugar. O presente do passado é a memória. O presente do presente é a visão. O presente do futuro é a espera.





Dúvidas, mais alguma coisinha? Isto é muito jogo, são dois mil anos a driblar convulsões. Voz Missionária, a maior. Valeu.



 

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