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Steinstücken integrava administrativamente Berlim desde o século XIX, mas ficou separado do território da cidade por não mais de 100 metros. Era o suficiente para se tornar um enclave. Aquando da definição dos territórios administrados pelos Aliados, ficara a pertencer à parte ocidental da cidade. Um enclave no território da República Democrática Alemã (RDA). Umas centenas de metros quadrados de terreno, com algumas casas e seiscentos residentes. Em 1952, forças russas chegaram a ocupar o enclave durante cinco dias, mas os americanos retaliaram contra interesses soviéticos em Berlim ocidental e o Exército Vermelho retirou.
Desde então, Steinstücken estava em paz e os seus residentes, mas só estes, beneficiavam de livre passagem pelo território da RDA para aceder a Berlim. Na prática, na fase que se iniciou em 1961, foram os únicos cidadãos ocidentais que podiam entrar e sair livremente de um território pertencente ao bloco soviético.
De facto, em Agosto de 1961 a edificação do Muro de Berlim dividiu as duas partes da cidade, mas não se estendeu a Steinstücken. Seria ridículo murar um território tão ínfimo para, fazendo jus à explicação das autoridades leste-alemãs, impedir os seus habitantes de penetrar na RDA para espiar.
Os residentes no enclave passaram a ter de se identificar sempre que se deslocassem para Berlim e de regresso a casa. Sendo residentes, não tinham de apresentar qualquer autorização. Já os próprios funcionários públicos berlinenses que quisessem ir a Steinstücken tinham de obter autorizações que só eram concedidas com muita dificuldade pelas autoridades da RDA.
Entretanto, aqueles que queriam fugir da RDA passaram a deparar com o Muro e com Vopos armados até aos dentes e com ordens para atirar a matar. Um desses fugitivos, impedido de entrar em Berlim ocidental e alvo de perseguição, teve a clarividência de se abrigar em Steinstücken. Para o recuperar, os agentes da Volkspolizei ameaçaram entrar no enclave. A possibilidade de Vopos invadirem um território sob administração americana alarmou muita gente.
Gerou-se um impasse: a polícia leste-alemã fazia tenção de entrar, mas não se atrevia; o comando militar norte-americano, pelo seu lado, não arriscava transportar para Berlim o refugiado.
O líder da RDA, Walter Ulbricht, tinha decidido erigir o Muro para neutralizar a cidade. Mas, para afirmar a sua autoridade, quis fazer mais: a partir de 21 de Setembro, a polícia leste-alemã começara a controlar todos os veículos americanos que circulassem pela via aberta que lhes permitia chegar a Berlim ocidental. Todos os militares americanos tinham direito a passar. Assim, para aumentar a pressão, os Vopos começaram a mandar parar os veículos claramente identificados como pertencendo às forças armadas norte-americanas. Faziam sair os soldados não fardados e recusavam-se a deixá-los prosseguir. Por vezes interrogavam-nos ou mantinham-nos detidos durante horas.
Um dos principais objectivos da liderança leste-alemã era minar a confiança dos berlinenses, que podiam ver a forma como os seus protectores americanos eram tratados. À passividade durante a construção do Muro, à impotência perante os fugitivos que eram baleados e agonizavam junto ao Muro, juntava-se agora a humilhação das forças ocidentais. No momento em que a União Soviética queria negociar com Kennedy um tratado que, entre outras coisas, definisse o destino de Berlim como cidade livre, sem vínculos ao Ocidente, o moral dos berlinenses encontrava-se no ponto mais baixo.
Em Steinstücken, o impasse prosseguia. A hesitação americana tinha a ver, justamente, com a questão da entrada em Berlim: se os Vopos mandassem parar o veículo militar, iriam identificar todos os que nele se encontrassem sem farda. Identificariam o refugiado e, sendo um cidadão da RDA, teriam direito a detê-lo e a levá-lo consigo. Mas a humilhação para o Ocidente - e, sobretudo, para os Estados Unidos - seria insuportável. Por outro lado, impedir a intervenção dos Vopos seria ilegal. Pior, poderia levar a uma escalada entre as forças norte-americanas e russas no único lugar onde elas estavam frente-a-frente, sem nada a separá-las: Berlim.
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John Kennedy e Lucius Clay, 15 de Setembro de 1961. Quatro dias antes de o general chegar a Berlim. |
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O general Lucius Clay tinha chegado a Berlim dias antes, a 19 de Setembro. O Presidente Kennedy tinha-o escolhido como seu representante pessoal. Era um sinal: Clay tinha sido o governador da zona americana e fora o principal responsável pelo abandono do Plano Morgenthau. A criação da República Federal Alemã em 1949 fora, desde 1945, o seu objectivo. E os berlinenses adoravam-no como o seu salvador: fora ele quem organizara a ponte aérea que permitira suportar o bloqueio decidido por Estaline em 1948. Se o ditador fizera do bloqueio um teste à determinação ocidental, a resposta então dada fora concludente.
Agora, face à ameaça soviética, o general Clay era visto como um «falcão». A escolha de Kennedy pretendia ser mais do que um aviso sério ao Kremlin. Na verdade, Clay era o americano que mais de perto trabalhara com os russos. Negociara com eles vezes sem fim. Sabia como eles pensavam. E compreendera que a principal ameaça não vinha de Moscovo, mas de Berlim Leste.
O general Lucius Clay aproveitou o caso de Steinbrücken para mostrar que tinha regressado a Berlim e que as coisas iam mudar. Perante a agressividade dos Vopos e a hesitação do comando militar americano, decidiu agir ele próprio. Ordenou que um helicóptero fosse colocado à sua disposição «para uso pessoal». Acompanhado apenas por um assessor civil, levantou voo e deu instruções ao piloto para aterrar em Steinbrücken. Permaneceu aí menos de uma hora e regressou a Berlim ocidental. Com o refugiado.
Os guardas leste-alemães ergueram as armas quando o helicóptero passou por cima deles, numa pretensa demonstração de força. Mas não se atreveram a disparar.
Mal chegou ao seu gabinete, Clay comunicou ao Presidente o que fizera. Sabendo que a maior parte dos conselheiros de Kennedy criticaria a sua acção, considerando-a provocatória, terminou afirmando: «Não receio uma escalada.»
Chegada de helicópteros a Steinstücken, aqui |
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Berlim pudera resistir ao bloqueio porque era suficientemente grande para ter três aeroportos. Agora, Clay demonstrara que um helicóptero podia aterrar em qualquer parte e que ninguém seria deixado para trás. Na primeira ocasião em que Lucius Clay apareceu em público, os berlinenses aplaudiram-no e vitoriaram-no: os americanos não nos abandonarão.
José Luís Moura Jacinto
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Pás de hélice, erguidas em Steinstücken. Memória dos dias dos helicópteros. |
Nos tempos do Muro, engenheiros americanos construíram um helicóptero num parque infantil em Steinstücken. Ainda hoje existe (aqui) |
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