Em Fevereiro deste ano, uma editora com pergaminhos e responsabilidades, a Sextante, publicou entre nós o livro Cinzas de Abril, do espanhol Manuel Moya, cujo enredo, como o nome indica, se passa por alturas da revolução de 25 de Abril de 1974. Nas vésperas da revolução de Abril, uma rapariga de família burguesa apaixona-se por um idealista radical… diz o texto na contracapa, prosseguindo por aí fora com uma descrição de antologia: ambos atravessam os dias da revolução de Abril com paixão… Caliente, señor Moya, assim é que é! Ganhou o Prémio Fernando Quiñones.
Quanto ao conteúdo, não nos pronunciamos. Esbarrámos logo no umbral da capa. A edição espanhola tem uma capa pouco criativa e muito debilitada, até por ser demasiado óbvia: o encarnado cravo encanado no topo da espingarda e, em fundo, populares e militares (ou vice-versa). Para o mercado espanhol, é uma opção iconográfica que se compreende: trata-se de evocar a revolución de los cláveles, ainda muito impregnada na memória do chamado «grande público», o Leviathan dos nossos dias. De facto, na linguagem dos nossos dias, dir-se-á que o cravo é um eixo-forte do branding do april 25th, que, quando articulado com um lettering expansivo e um layout inovador, é especialmente vocacionado para o merchandising eficaz junto do target a que o produto-Moya se destina: mujeres al borde de un ataque de nervios.
Manuel Moya, Las Cenizas de Abril, 2011 |
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Na edição portuguesa, a ficha técnica indica: «Design da capa: Atelier Henrique Cayatte com Susana Cruz». E, depois, diz-se: «Imagem da capa de Michel Maiofiss © Gamma-Rapho via GettyImages».
Michel Maiofiss é um nome conhecido da fotografia, com obras interessantes, algumas de altíssimo nível. Esta fotografia, usada na capa de Cinzas de Abril, chama-se, em tradução livre, Casal no Boulevard Saint Michel em Maio de 1968. De facto, basta olhar para a fotografia para percebermos que ela não tem nada mas nada a ver com o tão nosso 25 de Abril de 1974: os capacetes dos polícias, do lado direito, o rapazito louro, a correnteza dos edifícios amansardados, os candeeiros. Lisbonne? A imagem, aliás, é totalmente soixante-huitarde, com os paralelepípedos amontoados no chão. Sous les pavés…
Michel Maiofiss, Casal no Boulevard Saint Michel em Maio de 1968 |
Manuel Moya, Cinzas de Abril, trad. port., 2012 |
Como é possível o atelier de Henrique Cayatte, com créditos firmados e milhares de/em trabalhos e outros milhares de/em encomendas, ter feito um servicinho destes ?!! Não dramatizemos em excesso, porém. Não se trata de uma traição soez ao espírito de Abril. Calma, Vasco Lourenço, people é sereno. O que está em causa é, pura e simplesmente, uma asneira. Mas, convenhamos, asneira da gorda e da grossa, a qual pode, inclusivamente, induzir em erro os leitores, sobretudo os mais jovens. Para quê usar uma fotografia se ela ilustra um acontecimento que não teve nada a ver com o conteúdo e o tema, o tempo e o modo da obra capeada? Obra que, ademais, vive da História. Apenas por deleite estético, para usar uma fotografia bonita? A capa da edição portuguesa é, sem dúvida, muito mais bonita do que a versão castelhana. Justiça seja feita. Mas a busca do «bonito» autoriza o vale-tudo, permite até o anacronismo confusionista – e trapalhão – de datas, pessoas e locais? Ao olhar para aquilo, Cayatte não topou a água que metia o seu caiaque? Ninguém notou, ninguém morou, como canta a música de Chico, o da Hollanda?
Para mais, se os clientes queriam imagens, dispunham de centenas e centenas de imagens, tão ou mais «bonitas» do que esta, para colocar numa capa de um livro sobre o 25 de Abril. Se quisessem uma fotografia, pois tinham Eduardo Gageiro, tinham Alfredo Cunha, tantos e tantos outros. Mas não. O 25 de Abril, que tem uma iconografia riquíssima e poderosíssima, foi posto ao largo. Do Carmo. Preferiram ir a um banco de imagens e comprar uma foto. Paga-se, Visa Card ou PayPal, e já está. Em dois cliques do rato do PC (personal computer) sai uma capa bela que, no escaparate livreiro, provoca e convoca o olhar incauto.
.....A questão relaciona-se com um problema sério que tem sido muito discutido na blogosfera : o recurso, porventura excessivo, aos bancos de imagens. Sobre o chamado cover déjà vu, veja-se a crítica aqui. Um obrigado, André! Neste e noutros domínios bancários, tem-se, de facto, abusado do crédito. Para certos fins, é legítimo – e prático – utilizar bancos de imagens. É legítimo, mais do que legítimo, usar imagens da GettyImages ou da Corbis para fazer capas de livros – ainda que, por vezes, o uso excessivo das mesmas imagens crie situações caricatas que já mostrámos aqui. Há casos mais graves, ou ridículos: imagens consagradas de autores conhecidos são usadas em capas que nada têm a ver com o ambiente ou o local de origem. Pois lá temos, num livro sobre retornados de África, de Júlio Magalhães, uma fotografiazita da 2ª Guerra Mundial… É só uma calinada de uns 30 anos de distância, mas enfim. E, noutro livro do mesmo ficcionista, uma imagem da autoria do celebérrimo Alfred Eisenstaedt mostrando a despedida beijoqueira de um soldado na Pennsylvania Station, em Nova Iorque. E se depois as coisas, no confronto do estirador, não encaixam lá muito bem? Pois lá vai de manipular a fotografia. O PhotoShop está aí para quê ? Para pôr o Vasco Pulido Valente a sorrir, feliz? Ná, milagres é pedir demais. Mas para o dia-a-dia, para o desenrasca quotidiano, o PhotoShop serve na perfeição. Para compor as capas e disfarçar canhestramente os anacronismos, metem-se à martelada e escopro uns aviõezinhos, corta-se aqui, retalha-se acolá, dá-se um colorido artificial onde outrora imperava o preto e branco e, pronto, toca a andar prá frente. Ninguém nota, vamos lá mas é a despachar isto, ó rapazolas criativos, que o pessoal operário da tipografia está à espera e o Natal não tarda. Subsídio do dito é que só lá para 2015, e com sorte.
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Roger Viollet, Soldados mobilizados frente à Gare de l'Est, Paris, 25/8/1939 |
Alfred Eisenstaedt, Pennsylvania Station, New York City, 1944 |
A moda vem de fora, das melhores proveniências, como se pode ver aqui. No romance histórico, e porque o consumidor aprecia o requinte, é usual meter na capa uma pintura de época. Mas, uma vez mais, abusa-se… Para quem duvide, basta ver o que Sarah Johnson tem detectado no absolutamente notável Reusable Cover Art in Historical Novels. Thank you, Sarah! Só um exemplo aos resultados desta prática:
Como disse, é legítimo usar imagens de instituições bancárias em livros «neutros», de economia, sociologia, medicina, nos manuais de auto-ajuda e conselhos de «vida prática». O que não parece legítimo ?
1) Manipular em excesso imagens – sobretudo as que possuem, em si mesmas, valor iconográfico ou artístico. Cuidados especiais merecem as imagens que não foram feitas para servir de capa a livros. Realçar um pormenor, destacar um aspecto particular (as mãos sapudas da Gioconda, por ex.), ainda vá. Agora, meter numa imagem, sobretudo fotográfica, elementos adicionais, artifícios e truques, isso não.
2) Descontextualizar imagens, como acontece, de forma caricata e risível, neste Cinzas de Abril.
De facto, é absolutamente inacreditável o que o Atelier Henrique Cayatte («com Susana Cruz») fez neste caso. Por ignorância histórica e indigência cultural? Por ser mais barato? Preguiça pura? Jantar ao lume, a novela das nove? Para despachar a coisa às três pancadas que está outro cliente à espera? Excesso de encomendas, sobrecarga de trabalho, muito ajuste directo? Avidez do ganho? Ou, em interpretação mais benévola, por busca da originalidade artística, na ânsia de ser «diferente»? Simplesmente, não é isto que faz a «diferença» de Henrique Cayatte, cujos muitos talentos, sublinhe-se, ninguém questiona.
Há uma grande tradição de grandes ilustradores portugueses: Espiga Pinto, Almada, Vespeira, Sebastião Rodrigues, Maria Keil, quantos querem? É ver aqui, com o meu obrigado à Rita, daqui. Entre os mais jovens, abunda arte nova. Fotógrafos grandes, também os temos. E toda esta gente só pode sobreviver e mostrar a mestria que possui se as editoras levarem a sério a missão que, essa sim, faz a «diferença» relativamente a outras actividades culturais, como o coleccionismo de pacotes de açúcar, ao qual pode aderir por exemplo em http://www.pacotinhos.net/, ou em http://www.pacoteca.web.pt/. Isto sem demérito para os cultores desta ciência, designada sucrologia (do inglês, sucrology) ou glucosbalaitonfilia (catalão). Está em curso um aprofundado debate sobre se esta arrebatadora paixão se deve chamar simplesmente «glicofilia» ou, com mais rigor, «periglicofilia». No meio da crise de valores morais e do défice de princípios éticos, é sempre reconfortante encontrar pais de família portugueses que frequentam sítios como Pacotada.com
Termino. Por favor, senhores, não coloquem imagens do Maio de 1968, em pleno Boul’Mich, a ilustrar livros sobre o 25 de Abril. Paris em Lisboa, não. Qualquer dia é o quê? Fotos do Vietname em relatos da guerra de África? O Gungunhana a fazer de Jonas Savimbi? Já faltou mais. Em poucos anos, irão rarear ilustradores de talento, o trabalho gráfico vai cair na pior das desgraças, a da previsibilidade ou, como neste caso, a da asneirada nua e crua. Vivemos uma autêntica involução cultural. Dos grandes capistas passámos para os pequenos copistas. A mando e para o lucro dos vorazes capitalistas. Não, não foi para isto que se fez o 25 de Abril. Nem, de resto, o Maio de 68. Cinzas de Abril é o título do livro. Não poderia ser mais apropriado.
António Araújo
Exmº. Sr.
ResponderEliminarLi a sua entrevista no “Atual” do “Expresso” nº. 2082 de 22 de Setembro de 2012 ao jornalista José Pedro Castanheira.
Não fosse esta publicação e não teria dado com o texto acima publicado neste blogue.
Faço-o agora até porque gostaria de ter a sua resposta ao que aqui lhe deixo.
O conteúdo e a forma como se refere à capa "Cinzas de Abril", desenhada no meu atelier, obriga-me a responder.
Usa argumentos para todos os gostos.
Desde a minha ignorância – e do meu atelier - relativamente à imagem usada, descontextualizada na sua opinião, até argumentos que revelam uma agressividade inusitada que não percebo.
Agradeço as suas palavras sobre os meus “(…) muitos talentos, sublinhe-se, ninguém questiona (…)”…mas que afinal questiona da pior maneira.
Deixe-me tranquilizá-lo já que pergunta.
Não, não foi “Por ignorância histórica e indigência cultural? Por ser mais barato? Preguiça pura? Jantar ao lume, a novela das nove? Para despachar a coisa às três pancadas que está outro cliente à espera? Excesso de encomendas, sobrecarga de trabalho, muito ajuste directo? Avidez do ganho? Ou, em interpretação mais benévola, por busca da originalidade artística, na ânsia de ser «diferente»”, que esta capa foi desenhada assim.
Nem esta nem nenhuma.
Percebo o género “nouveau et intéressant”, já que refere o “Boul’Mich”, e a opinião “fresca” que cruza “indigência cultural com ajuste directo ou a novela das nove”, mas não pratico e não respeito o género.
Não me revejo em nada do que aqui escreve porque crítica a um trabalho não se deve confundir com a calúnia fácil ou o humor duvidoso.
Crítica, como tantos têm defendido, é a expressão de uma opinião qualificada, que conheça e ajude a descodificar reflexõe, conceitoss e propostas.
Que contribua para a formação de opinião.
Gostando-se ou não do objecto criticado.
Terá de ser rigoroso se quiser ser coerente com aquilo que diz na entrevista ao “Atual” sobre tantos livros.
Não é o que se exige a um historiador, a um jurista e, afinal, a todos?
Se tivesse emitido uma opinião de gosto e de crítica rigorosa eu não estaria aqui a escrever-lhe. Respeito, sempre o fiz, as opiniões sejam elas coincidentes ou divergentes da minha.
Infelizmente não é este o terreno em que se exprime.
Desenhei muitas capas para muitos editores na minha já longa vida profissional.
Muitas feitas a partir de ilustrações minhas ou de terceiros, outras que foram adaptações de imagens enviadas pelas editoras que produziram as edições originais ou ainda, como neste caso, com uma imagem de um “banco de imagens”.
Todos os dispositivos são admissíveis desde que se respeite o tema do livro, os direitos de autor, as suas instruções, a necessidade de se respeitar a linha da colecção em que está inserido, a opinião do editor e, claro, a leitura do designer.
Se tivesse lido o livro veria que Paris e o Maio de 68 são aí referência importante e, por causa disso, o autor - pasme-se! -, o editor e eu decidimos colocar uma imagem do...Maio de 68 e não do 25 de Abril.
Tratada para dar destaque ao casal.
O contrato de compra, pela editora, de imagens nos bancos de imagem permite, de resto, que sejam reenquadradas, coloridas ou adaptadas.
Foi o que fizemos.
E agora? Em que é que ficamos?
Aceitará que conheço as imagens que foram produzidas no dia 25 de Abril de 74. De Eduardo Gageiro e de Alfredo Cunha mas também de muitos outros fotógrafos "anónimos" que nesse dia extraordinário e maior o quiseram captar para a posteridade.
Não se tratou portanto de uma troca ou de ignorância, ou de avidez ou da sopa ao lume como afirma. Foi intencional e se não percebeu porquê deveria ter tentado perceber antes de escrever.
Acontece.
Estou disponível, para nos limites da serenidade e da urbanidade dialogar consigo.
Isto é: se aceita a correcção ou se foge em frente e continua com a diatribe. Acredito que optará pela primeira.
Para terminar deixe-me dar-lhe esta última nota.
Nunca trocarei Gungunhana por Savimbi, Vietname por guerras em África ou confundirei a crítica por calúnia como a que faz aqui.
Henrique Cayatte
...desculpa esfarrapada, argumento débil, defesa do indefensável e uma certa arrogância. o designer de carreira já longa não gosta nada de ser posto em causa e ataca o estilo mordaz da crítica porque quanto ao conteúdo, sejamos sérios, não há nada a dizer... por mais voltas que demos, a escolha da foto foi um belo disparate...
ResponderEliminareste blogue é pura dinamite cerebral, como diria o outro
Excelente texto. Muito bem escrito. É deste tipo de crítica que gosto. Fundamentada, assertiva e certeira. Parabéns!
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