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Quem é Kurt Masur? Quem é o homem que levantou a voz e foi seguido por dezenas, por centenas de milhares de alemães de Leste? Um líder? Um político? Um oposicionista com anos de cadeia e de sofrimento acumulados?
Não. Kurt Masur é um maestro: “ - Sou em primeiro lugar e acima de tudo um maestro e um músico. Só sou um político contra a minha vontade.”
No entanto, em 1989 e 1990, em Leizpig e na RDA, as ovações que recebia sempre que se apresentava com a sua orquestra, mesmo antes do concerto começar, pareciam mais próprias de um comício do que de um concerto. Era a época em que a reunificação era apenas uma hipótese e Masur era o mais provável Vaclav Havel da RDA: o primeiro Presidente da República em democracia. Mais tarde, em 1993, o seu nome também foi seriamente considerado para Presidente da Alemanha.
Como é que este homem, que começou por ser membro da Juventude Hitleriana e que, de seguida, conviveu, aparentemente de modo pacífico, com o poder comunista na RDA, despertou? E que sortilégio fez com que tivesse um papel decisivo na crise terminal da RDA?
Ao contrário de muitos alemães do Leste, Kurt Masur resolveu ficar na sua terra. Tornou-se um maestro com grande notoriedade. Convenceu o camarada Honecker a investir a única sala de espectáculos de música clássica construída na RDA. Convidou Honecker, e os demais dignitários do regime, para a inauguração da sua Gewandhaus. E, após a queda de Honnecker, escreveu-lhe uma carta a agradecer o que este tinha feito pela sua orquestra e pela sua cidade.
No seu trajecto, contudo, algo o tornou muito forte. Tão forte que suportou a opressão. Tão forte que o tornou de tal modo destemido que não mais tinha medo: “Nenhum medo e medo de ninguém: nem da CIA americana, nem do KGB soviético. É um sentimento maravilhoso.”
Aos 16 anos |
1946 |
Aos 27 anos |
1957 |
Jovem músico prometedor, é convocado pelo comité central do SED para uma sessão na qual, na presença de homens da cultura, Walter Ulbricht arenga sobre o dever de todos os artistas de servir o realismo socialista. Quando lhe solicitam uma resposta, afirma: “Depois do que disse, o diálogo não é mais possível.” Entra no índex. De 1964 a 1967, não tinha orquestra nem lhe foi permitido trabalhar no ocidente. Passou dificuldades, vendeu o carro para sobreviver. Mas não desistiu. Convidado para dirigir o “Lohengrin” em Veneza, aceitou, mesmo estando-lhe vedada a saída do país. Contactou o Ministro da Cultura e disse-lhe que, se fosse necessário, faria a viagem mesmo sem autorização e que, se algo lhe sucedesse na fronteira, a culpa seria do Governo. No dia seguinte tinha a autorização para sair. E voltou.
Em 1972, sofreu um acidente de viação onde morreram os dois ocupantes da outra viatura. Dentro do carro em chamas, debaixo de si, agonizante, a sua mulher. A filha, de cinco anos, diz-lhe: “Papá, a minha boneca está tão suja!” Tentado a desistir, salvaram-no a filha, os músicos da Gewandhausorchester e Bach. “Dentro de seis semanas – disseram-lhe – temos um espectáculo com a Missa em B menor de Bach.” No final do concerto chorou como uma criança.
Kurt Masur afirma que nessa noite, como em muitas outras ocasiões, a Stasi está vigilante e regista as suas palavras. Pouco importa: “Eu era suficientemente famoso para me poder permitir dizer a verdade. Eles sabiam que havia qualquer coisa em Masur que não se ajustava. Além do mais, eu era cristão...”
A fama permitia-lhe levar a sua orquestra até ao Ocidente. Por vezes, um dos músicos não regressava. Kurt Masur recorda a melhor desculpa, dada por um seu colega da Filarmónica de Leninegrado, quando tal acontecia e recebia um telefonema do responsável pela cultura do partido: “Camarada Mravinsky, então o que se passa? De cada vez que sai um dos seus músicos abandona-o!” E ele respondia, fulminante: “Não me estão a abandonar a mim. Estão a abandoná-lo a si!”
Masur afirma que, a princípio, não queria ser ele a ler o apelo de 9 de Outubro na rádio. Afinal, era apenas um músico. Um músico para a elite que gosta de música clássica. Mas todos insistiram com ele, apesar das suas reticências: “Não acreditava que as minhas acções tivessem qualquer efeito sobre o curso dos acontecimentos.”
As pessoas confiaram no seu maestro. A Gewandhausorchester, afinal, era a orquestra do povo. A mais antiga, em toda a Alemanha, fundada e paga pelos orgulhosos cidadãos de uma grande urbe, duzentos anos antes. Era a sua orquestra. Ouviam-na na ópera da cidade e na mesma igreja onde Johann-Sebastian Bach também fora Kapellmeister. Também tocara em jardins infantis, em concertos escolares, em concertos para operários. Kurt Masur tinha 62 anos. Dirigia a orquestra desde 1970. Todos os habitantes de Leipzig conheciam o seu maestro e confiavam na sua integridade.
Por isso, como já aqui contámos, entre um teólogo respeitado, Peter Zimmermann, um artista de cabaré admirado, Berd-Lutz Lange, e três dirigentes locais do SED, não admira que tivesse sido o maestro do povo o possuidor da voz mais respeitada. Um homem bom, um homem justo elevou a voz. Veio depois para a rua, para a frente da manifestação. E a revolução pacífica venceu. Depois, Kurt Masur voltou a ser apenas um maestro.
Um grande maestro que disse, mais tarde: “Não há qualquer razão para ir para a política, porque acredito que já não posso mudar mais nada.” Talvez não mas, em tempo, em circunstâncias extraordinárias, fez mais do que aquilo que seria exigível a qualquer um de nós. Esses são os heróis.
José Luís Moura Jacinto
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