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Como contámos aqui, naquela tarde do dia 9 de Outubro de 1989, a tensão dentro da Nikolaikirche atingira os limites do suportável. No exterior, já se ouviam os slogans: “Wir sind das Volk!” e “Stasi raus!”. Quando as preces terminassem e as pessoas saíssem, seria dado o sinal para o início da manifestação. E para o banho de sangue...
No preciso momento em que a história da RDA resvalava para o caos terminal, ergueu-se uma figura poderosa. Kurt Masur, o Kapellmeister da Gewandhausorchester Leipzig decidiu agir. Após uma vida de acomodação, levantou a voz.
Avisado pelos activistas do Neues Forum, o seu escritório na Gewandhaus tornou-se o epicentro dos acontecimentos. Duas horas antes do início previsto da manifestação, Kurt Masur chamou algumas pessoas. Só na pátria de Lutero, de Bach e de Marx um tal grupo desempenharia o papel que lhe estava destinado: um maestro, um artista de cabaré, um teólogo e três dirigentes locais do Partido Socialista Unificado (SED). Ficariam conhecidos como Die Leipziger Sechs. Masur propôs-lhes a emissão de um apelo conjunto à calma. Deixou claro que, se se lhe não associassem, agiria sozinho.
Die Leipziger Sechs |
Entretanto, do comandante das forças militares da RDA, soube que fora decretado o alerta máximo. Mas do comandante soviético apurou que o exército vermelho tinha ordens de Gorbachev para nada fazer contra os manifestantes que reclamavam liberdade.
Atarantados, os dirigentes do SED pediram instruções a Berlim. Enviaram uma cópia do apelo a Egon Krenz, membro do Politburo e sucessor anunciado, o qual, não querendo tomar qualquer iniciativa, pediu a Honecker que o aprovasse. Este limitou-se a dizer-lhe que podia fazer o que quisesse mas que, tendo depositado grandes esperanças em Krenz, começava a ter dúvidas. Este ficou sem saber o que fazer e não respondeu aos telefonemas que chegavam de Leipzig. Até que, pressionados pelos acontecimentos, pela primeira vez na vida os dirigentes de Leipzig tomaram uma iniciativa ignorando Berlim e associaram-se ao apelo.
Kurt Masur dirigiu-se a todos os cidadãos da sua cidade pela rádio. Entretanto, o bispo luterano Johannes Hempel corria todas as igrejas de Leipzig, assegurando-se de que o apelo seria lido.
O apelo avisava a polícia e a Stasi que não deviam recorrer à violência. Pedia ao comandante da polícia para afastar todos os agentes do caminho dos manifestantes. E afirmava ser necessário um diálogo aberto, convidando todos para encontros que viriam a ter lugar na própria sala de concertos da Gewandhausorchester.
O pastor Christian Führer, na Nikolaikirche |
O pastor da Nikolaikirche, Christian Führer, recorda o que aconteceu: “No dia 9 de Outubro, entre os participantes nas orações pela paz estavam cerca de 600 militantes do SED e agentes da Stasi. Do lado de fora estava um contingente do exército, além da polícia e da milícia. As orações ocorreram numa atmosfera de incrível quietude e concentração. No final da celebração, o apelo urgente pela não-violência foi lido. Quando saímos da igreja deparámos com dezenas de milhares de pessoas aguardando na praça. Nunca esquecerei aquela vista. Seguravam velas nas suas mãos. A não-violência saiu da igreja e foi posta em prática na rua. Duas mãos são necessárias para segurar a vela e para impedir que a chama se extinga, por isso ninguém podia empunhar bastões ou atirar pedras.”
Houve conversações com o exército, a milícia e a polícia. Perante eles, a multidão armada de velas, cantos e orações, bradava: “Keine Gewalt!” O facto de os protestos não serem violento deixava-os sem saber o que fazer. Um membro do comité central do SED descreveu num relatório a sua perplexidade: “Tínhamos tudo planeado. Estávamos preparados para tudo – excepto para velas e orações.”
Leipzig, 9 de Outubro de 1989. 70.000 pessoas |
“Estávamos preparados para tudo – excepto para velas e orações.” |
As forças presentes retiraram. Os tanques e os canhões de água recuaram. A marcha podia seguir.
“– Nunca vi tantas caras felizes – relembra Kurt Masur –, como nesse dia 9 de Outubro. Era uma revolução pacífica. E era a prova de que as pessoas na RDA tinham aprendido a agir de forma deliberadamente política. Ainda me sinto impressionado pelo modo como foram inteligentes... e pelo modo como as forças de segurança permaneceram calmas. Nesse dia, nem um único vidro de uma única janela foi quebrado.”
Depois da saída da Nikolaikirche, houve outro momento de particular tensão quando os manifestantes se encaminharam para o quartel da Stasi de Leipzig. Dentro, encontravam-se muitos agentes, incluindo os que tinham retirado da praça. Todos armados. Tinham ordens para defender o estratégico edifício. Sacos de areia protegiam as janelas. Ainda hoje esses sacos se encontram onde então foram colocados, porque o local se transformou num museu. Se uma pedra tivesse quebrado uma vidraça, teria ocorrido o temido banho de sangue. Mas não houve pedras pelo ar. Apenas se entoaram canções. Quando se afastaram, os manifestantes deixaram velas acesas nos degraus da escadaria.
O povo de Leipzig encontrara nas igrejas o lugar da verdade. Delas partira para as ruas e as praças da cidade. Daí, com a ajuda de um homem justo que levantou a voz, nasceu uma revolução pacífica feita de velas e de orações.
Quando o dia terminou, a RDA tinha mudado. O grito “wir sind das Volk” era a essência da revolução pacífica. A democracia que se afirmava popular não podia desrespeitar o poder de todo um povo sem perder o derradeiro resquício de autoridade. A notícia circulou por toda a RDA: perante protestos pacíficos, não fora usada a força. A revolução espalhou-se por todo o país. Exactamente um mês depois, o Muro cairia. Mas se aqueles 70.000 manifestantes, todos e cada um deles, não tivessem mantido a calma e seguido o apelo de Kurt Masur, tudo poderia ter sido completamente diferente.
José Luís Moura Jacinto
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