quarta-feira, 2 de maio de 2012

Uma democracia instável e frágil: a I República Portuguesa.

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 Uma democracia instável e frágil: a I República Portuguesa.

Da esperança ao fracasso (1910-1926)

 








“A República, em verdade, feita primeiro pelos partidos constitucionais dissidentes, e refeita depois pelos partidos jacobinos, que tendo vivido fora do poder e do seu maquinismo, a tomam como uma carreira, seria em Portugal uma balbúrdia sanguinolenta.”
Eça de Queiroz, 1880

“República de falidos, tristíssimo e pelintra – pelintra de coração,
pelintra de inteligência, pelintra de dinheiro e, por tudo isso, tristíssima.”
Terra Livre, semanário anarquista, artigo não assinado, 
Lisboa, nº12, 1-V-1912
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“A República teve gente: o que não tinha era o espírito republicano.
A sua maior fraqueza não foi a sua falta de homens, mas a sua falta de princípios (...).”
João Chagas, 1918.

Em 1910 (5 de Outubro) abolia-se a realeza. Fez-se então uma verdadeira República? Não se fez. (...). Não passava de formalismo político (de simples negação, por assim dizer, da monarquia e do clericalismo) sem conteúdo concreto  reformador na economia e na educação. Nem se aperfeiçoou a economia existente, nem se democratizou realmente nada; nenhum dos sectores de importância básica na vida económica e moral (...) sofreu as reformas que se faziam mister
segundo o espírito da democracia (...).”
António Sérgio, Breve Interpretação da História de Portugal (1ª ed. em castelhano,
1929; reed. em portug. em 1972).

“O mal da República
está em termos ligado uma importância absoluta às formas exteriores
do regime, o hino, as cores, a cartola do presidente, a bandeira
– e nenhuma às suas aspirações, às suas doutrinas e às suas realidades essenciais.”
 Raul Proença,  artigo “O mal da República”, revista Seara Nova, nº 231, 29-XII-1930

“Para os homens da República portuguesa, o Poder não foi a glória nem o proveito – foi a expiação.”
Artur Ribeiro Lopes, Histoire de la République portugaise, 1939








O Zé Povinho cavalgado pelos políticos e rei D. Luís do regime monárquico constitucional.
Des. de Rafael Bordalo Pinheiro, semanário O António Maria, 9-09.1880.





1. O republicanismo português, desde a eclosão partidária da sua doutrina até ao termo da sua realização como regime, durou meio século e suscitou, como reacção à sua vigência trepidante e caótica, como herança maior e mais calamitosa, um regime de contra-revolução que vingaria por meio século e se havia de alicerçar na sistemática coesão de todas as forças ideológicas, sociais e políticas opostas aos princípios fundamentais que tinham sido o alicerce mesmo da sua mundivisão republicana, liberal nas ideias, modernizadora nos intuitos sociais e progressista na sua edificação prática. Dito de outro modo, a República falhou na sua tentativa de modernização do país e o seu enorme fracasso de reforma de Portugal foi responsável pela tão longa duração (1926-1974) e resistência duma forma autoritária de poder, de regime retrógrado e sociedade arcaizante contra as quais o ideário da Propaganda Republicana, radicalizando a deformada e tíbia forma monárquico-constitucional do liberalismo (grosso modo, de 1820-1910) - a tão troçada “liberdade outorgada” - intentara deitar por terra, após o fracasso dos dois anteriores tentames de construção duma ordem social inovadora, ou seja, o pombalismo e, sem seguida, o liberalismo. Retomando muito dos intuitos laicizantes e económico-sociais modernizadores diamantinamente aplicados pelo “despotismo esclarecido” de Pomba1 (1756-1777) e do vintismo, em seguida reconfigurado como Regeneração (1851-1910) - em suma, o republicanismo foi, no seu âmbito de meio século de vigência como esperança na década e meia de regime estabelecido desde a revolução do 5 de Outubro de 1910, um sonho visceralmente burguês de modernizar Portugal através dum regime demoliberal  - sem as tibiezas, os compromissos e as debilidades insanáveis dessa “liberdade outorgada” que presidira ao   constitucionalismo monárquico (1834-1851) -,  nele enraizando o sistema radicalmente demoliberal, vindo das Luzes e da Revolução francesa, uma tentativa com laivos messiânicos (ou até mariânicos, pela confusão da República com a Virgem Maria) e sebastianistas “vermelhos”, um fracasso que se pagou caro com a longa e nauseada desafeição dos portugueses pelo sistema de liberdades e representação pelo sufrágio.



O Zé aliviado das suas albardas pela recém proclamada República.
 Desenho de Alfredo de Moraes, O Século. Suplemento ilustrado, 24.11.1910.
A legenda rimada diz: “Se hoje vivesse diria /O nosso grande Bordalo/Ora até que enfim /Começam a aliviá-lo”.




2. Os curtos anos de duração desse confuso, caótico e sanguinolento regime seriam marcados por bernardas, inacreditável efemeridade de governos (47 ministérios em 180 meses de regime, numa média de quatro meses por cada governo), motins, desordens, intentonas falhadas, inúmeros crimes e violências -  v.g., prisioneiros políticos abatidos durante a “leva da morte”, em 1918,  centenas de mortes durante a revolução de 14-V-1915, linchagens (p.e., João José de Freitas, depois de disparar sobre João Chagas, no comboio, em 1915, morto pela multidão),  assassinatos durante a “noite sangrenta” do 19-X-1921, etc.), que, ao todo, constituíam um carrossel alucinado de desacatos e desordens nas ruas e impossibilidade prática de actuação dos políticos que tinham de cavalgar esse tropel de bestas. Compreende-se que A. Ribeiro Lopes (1889-1965) tivesse sintetizado o drama dos políticos republicanos desses anos alucinados como um poder que não lhes trazia proveito nem glória mas tão só expiação (Histoire de la République portugaise, Paris, 1939).
 


3. Esse período de caos e poder fragilizado foi marcado por uma série de erros e insuficiências graves que comprometeram de modo irreparável o défice político-social e prático da República. Destaquemos, antes de mais, a lei da Separação da Igreja e do Estado (20-IV-1911), instrumento acintoso de perseguição aos sacerdotes católicos e aos fiéis da Igreja Romana, além de implacável máquina burocrática montada contra o exercício da religião católica, com o intuito confesso do seu autor, o “irmão Platão” maçónico Afonso Costa, de eliminar o catolicismo em duas gerações. Esta afronta e este abrasivo empecilho legal incompatibilizariam com o regime republicano um sector que, no Portugal de então, disponha de larga maioria no meio da população, lançando na natural oposição hostes difíceis de anular ou vencer. O exército, saneado com rude falta de tacto e com o recurso a “revolucionários civis” que fragilizavam a armadura nacional e legal das forças armadas, seria outro segmento da sociedade que o novo regime julgara poder moldar como barro mole. As espadas tão acintosamente desprezadas pelo novo regime sentir-se-iam tentadas a intervir no jogo político, com uma insistência que conduziria  a sucessivos tentames de ditadura castrense, desde Pimenta de Castro a Sidónio Pais, assim como, após o regresso da “República Velha”, à guerra civil de 1919, nela se incluindo a gorada tentativa de revolução de Monsanto, a revolta militar em Santarém e a Traulitânia monárquica do Porto, e um infindável rosário de outras  incursões no jogo político, com durindanas que seriam empunhadas por diversos homens e grupos de proveniências partidárias variadas, culminando com o golpe de Braga de 1926, aquele que decapitaria o regime demoliberal que julgara poder domar os militares e metamorfosear o país.



4. Coube ainda ao forças armadas sofrerem um das pragas mais nefastas que assolaram a I República, ou seja, a intervenção militar na guerra da Flandres e, desde 1914, nas nossas colónias de Angola (a batalha de Naulila travou-se em Outubro de 1914), estendendo-se, já depois de declarado o conflito (16-III-1916), a Moçambique. Ao todo, esta guerra europeia e africana custaria a Portugal mais de dois mil baixas no exército a combater na França e de 20 a 30 mil em África, contando ainda com cerca de sete mil prisioneiros devolvidos pela vencida Alemanha imperial a Portugal. O guerrismo dos governos da “União Sagrada” – entre os quais salientava-se a acção belicista dos partidários de Afonso Costa e a diplomacia que João Chagas desenvolvia junto da França, onde era embaixador luso - ligaram à intervenção nesse conflito, de modo estreito e entranhadamente belicista à sorte da isolada República portuguesa no concerto europeu e, sobretudo, à sobrevivência do nosso império colonial africano – um cartoon na imprensa da época tornava visualmente evidente essa opção dada como inquestionável, mostrando uma galinha chamada Portugal a defender o seu ninho de “Colónias” diante duma invasora águia germânica (Século Cómico de 15-I-1917), ainda que, na sua réplica declaração formal de conflito, o embaixador alemão em Lisboa, Franz von Rosen, sublinhasse que Portugal se mostrava como “vassalo da Inglaterra”,  subordinando “todas as outras considerações aos interesses e desejos ingleses”. A verdade é, que, na Flandres, a participação do nosso Corpo Expedicionário ficaria subordinada ao XI Corpo do Exército britânico, e, partir da esmagadora derrota de La Lys (9-IV-18), seria reduzido a patéticos destroços sem autonomia estratégica. A revolta sidonista, em Dezembro de 1917, feita por tropas que estavam então escaladas para a Flandres, e que dessa interessada participação na revolução dezembrista ganharam o não irem para a grande “leva da morte” europeia, iria prejudicar de modo evidente o esforço bélico português, até porque deixou de haver rendição de tropas lusas na frente francesa, vigorando entre nós uma disfarçada neutralidade que alguns interpretariam, aliás erradamente, como sentimento pró-germânico de Sidónio: os tiros que o prostraram em 14 de Dezembro saíam duma pistola empunhada por alguém que associava o “presidente-rei” às alegadas simpatias pelo país onde fora, por alguns anos, embaixador português. O facto de alguns dos conspiradores do 28 de Maio terem sido soldados de destaque na Flandres – como Gomes da Costa e Sinel de Cordes – não deixa de articular a queda da República com a sua funesta intervenção voluntarista na guerra...



Afonso Costa.
Caricatura de Francisco Valença, A Sátira, Lisboa, 01-05-1911.
Pofessor coimbrão, Costa concorria a uma cátedra na Facudade de Direito, então acabada de criar em Lisboa.




5. Quanto às mulheres, essas nunca viram as suas aspirações feministas ou sufragistas atendidas pela intransigência do mesmo legislador dogmático e fanático que criara o monstro da lei da Separação - e do restritivo código eleitoral de 1913, negando o sufrágio às mulheres, aos padres e aos militares  -, depressa compreenderam que o demoliberalismo da República se submetia ao populismo anticlerical e de modo soez empenhado em captar velhas estruturas caciqueiras do regime deposto em 1910, em vez de se abrir com coragem e ousadia aos ditames liberais, o que traria aos cidadãos o escândalo da “Adesivagem”, uma das máculas mais confrangedoras e insuportáveis de toda a vigência da I República, contrastando de modo gritante com os seus tão apregoados visos de moralização e barrela ideológicas.



Bernardino Machado, em diversas atitudes, caricatura de Arnaldo Ressano, Album de Caricaturas Arnaldo Ressano (Lisboa, 1935). Pofessor coimbrão, ministro de D, Carlos (1893), convertido depois aos ideais republicanos, Bernardino foi ministro dos Negócios Estrageiros no governo provisório da República, e por duas vezes presidente da República, sendo em ambas deposto por um golpe militar, o de Sidónio (1917) e o de Gomes da Costa (1926).




6. O operariado, metralhado na greve das mulheres e dos jovens da indústria conserveira, em Setúbal, logo em Março de 1911, perceberia que iria encontrar no novo regime uma hostilidade mais feroz do que aquela que a monarquia constitucional votara aos trabalhadores. A alcunha de “Racha-Sindicalistas” dada a Afonso Costa, por via da sua actuação no seu primeiro governo, com suspensão da Casa Sindical e prisões em massa de sindicalistas – muitos dos quais só sairiam dos cárceres, onde apodreciam sem culpa formada, quando triunfasse a revolução sidonista em 1917 -, mostrava às forças operárias e aos sindicatos por elas organizados, que a República tinha uma enorme carência de ideário social, o que se demonstrada, desde logo, com a lei de Brito Camacho regulando os conflitos de trabalho pouco semanas depois de proclamado o novel regime. As greves e o estado de sítio durante o governo de Augusto de Vasconcelos (Janeiro de 1912) e a maneira violenta como os manifestantes operários foram então reprimidos pelas forças policiais e militares -  a Casa Sindical foi então ocupada pela tropa e muitos manifestantes presos nos porões de navios surtos no Tejo -, tanto na capital como noutros pontos do país, já tinham mostrado o que é que o operariado podia esperar dos tão apregoados intuitos sociais do novo regime.
 


Tio Sam prepara-se para trinchar o peru germânico (Guilherme II da Alemanha). Des. de Hipólito Collomb n’O Século Cómico, 07.01.1918.
Rodeado dos seus Aliados, o Tio Sam representa aqui a importante e decisiva participação das tropas da América do Norte para a vitória aliada no conflito europeu da Grande Guerra. À direita, sem talheres nem prato, e sem farda, está um pequenino Zé Povinho.

 

......7. A esta escassez de conteúdo social inovador e modernizador haveria que somar ainda a emigração que não parava de crescer em busca de países onde trabalhar e escapar à maldição duma terra sáfara e de ordenados miseráveis - indo de preferência, e como sempre, para o Brasil, pois ninguém parecia interessado em povoar a África colonial lusa -, desde que a bandeira se tornara verde-rubra e, dum modo igualmente revelador, que a diminuição do analfabetismo ao longo da década e meia de instrução republicana comprovava que não havia aqui uma qualquer revolução nos costumes e nas práticas  com vista a qualquer melhoria sensível com um regime que, até 1910, fora sobretudo agrário, iletrado, tutelado pelos grandes proprietários rurais e pelas forças do capital. Um país rural, com o predomínio e esmagador do sector primário das actividades, continuaria a ser rústico na sua pirâmide social – daí a pertinência do Zé Povinho como seu estereótipo nacional -, emigrando, entre 1911 e 1913, para o Brasil, 3,7 % da população (fluxo migratório que tornaria  a subir no período após o final da guerra). Do lado do lentíssimo progresso da alfabetização, constatava-se que, no combate às trevas do espírito, no período de 1911-20, a taxa de analfabetismo só descia de 69,1 % para 66,2 %, e, em 1930, ainda se cifrava nos 61,8 %, pois só em 1940 Portugal podia registar uma percentagem de analfabetos abaixo de metade da população, com uma taxa de analfabetismo então situada nos 48,8 % da população.


8. Em suma, a República não modernizara de modo significativo ou notável o país, fosse em que sector que fosse, não o fazendo evoluir em termos materiais e culturais, não sendo de estranhar que a deusa Ceres – deusa da agricultura (a Cibele dos gregos) - figurasse como figura totémica essencial nos selos postais portugueses a partir da proclamação da República, como se não houvesse, nesta escolha simbólica, naquela camada nova de políticos, qualquer desejo de industrializar a sério Portugal ou fazer progredir realmente o país: se havia 57 % da população activa em 1911, em 1930 ela ainda andava pelos 46 % no sector primário.

O novo regime não dera aos Portugueses alfabetização, escolaridade, progresso de vida material e cultural, estruturas significativamente modernas na sociedade em geral – pois até nas artes o único grande movimento estético inovador e dissidente registado durante a sua atribulada e ofegante duração, foi o Modernismo, cujo estridente pregão retórico, o Manifesto anti-Dantas (1915) de Almada Negreiros, era sobretudo um impiedoso manifesto contra o novo regime, os seus ridículos e acacianos gurus e os seus estólidos e grotescos manipansos artistas literários e plásticos como esse autor d’A Ceia dos Cardeais , um “adesivo” que remataria a sua carreira de vira-casacas aderindo à ditadura do Estado Novo.
 




O Zé e o golpe do militar de 1926. Zé observa com cepticismo a “operação” do general Gomes da Costa, desastrado “médico”, que corta com a sua espada os tumores que crescem no corpo nu da República (Afonso Costa, Cunha Leal, António Maria da Silva, etc.), perguntando como é ele vai tapar aqueles buracos.
Des. de Amarelhe no semanário satírico Sempre Fixe, Lisboa, 08.07.1926.
 
9. A revolta militar do 28-V-1926, realizada por um misto de forças partidárias republicanas e integralistas, com o mudo beneplácito da Igreja católica, saldar-se-ia, após um acidentado galope de fardas por angustiados trancos e barrancos e agudas vicissitudes financeiras que pareciam perpetuar o permanente caos da I República, pela progressiva deslocação da “ditadura académico-castrense” ou, se se preferir, “bélico-escolástica”. Ditadura de generais – ou coronéis – e de catedráticos, com uma ou outra gota eclesiástica” (como se exprimia Unamuno, em 1935, sobre a natureza da nossa experiência de militares de mistura com catedráticos) para um glacial ditador das contas, o tal “ditador das finanças” que ascenderia a Ditador tout court do novo regime, dispondo duma constituição (1933) aprovada por referendo em vez de ser uma nova Carta outorgada, e procedendo mesmo esse misto de modelos político-ideológicos a simulacros eleitorais desde 1934.

Representou esse regime híbrido e camaleónico instaurado por Salazar na sequela da ditadura militar, espécie de “integralismo republicano”, uma permanência dos moldes republicanos? Estaríamos, a partir da ditadura pessoal de Salazar, ainda em República? Haveria algo de genuinamente republicano nas instituições e nos símbolos, na liturgia política do Estado ou das fórmulas de funcionamento burocrático, de II República autoritário-orgânica e corporativa após o período de década e meia de demoliberalismo?

Cremos que Salazar e o seu Estado Novo estabelecido de forma permanente e estável desde 1932-33 optaram antes por uma mumificação da velha República decapitada em Braga em 1926, conservando um mínimo de símbolos, os menos evidentes e menos arreigados, como a bandeira, expurgando, por exemplo, a fórmula do “Saúde e Fraternidade” com que se encerravam os ofícios estatais, remetendo para o museu postal o velho e teimoso símbolo totémico da Ceres, a deusa rural da agricultura. Ficou mais alguma coisa do republicanismo formal anterior? Digamos que não, pois, por um processo de típica lentidão evolutiva salazarista, as expressões residuais do formulário e da atmosfera ou índole íntima do modelo republicano demoliberal se foi evaporando de modo progressivo, bem “devagarinho”, como gostava de se exprimir Salazar, pois até o termo “cidadão”, usado no oficial Diário do Governo, havia de desaparecer para se substituir pelo neutro “senhor” ou “doutor” ou “licenciado”.



10. Em suma, a República, ausente no pessoal, nos ideais, na ideologia vigente na escola e na administração pública, reduzia-se agora a um véu tão leve que já nada ocultava da natureza verdadeiramente autoritarista e antiliberal que a Ditadura assumia, usava como linguagem e se servia como disciplina burocrática. Até no campo estético esta mudança se notava, bastando ver a enorme República viril e maciça que está por detrás da estátua de António José de Almeida, monumento esculpido por Leopoldo de Almeida, um dos mais representativos artistas do Estado Novo ditatorial, inaugurado em finais de 1937, num altura em que a Ditadura salazarista se dotara já de instituições de claro fascínio fascizante como a Mocidade Portuguesa e a Legião Portuguesa, ambas criadas em 1936. Esta mudança estaria sujeita, é certo, à evolução do regime de Salazar nos muitos anos que ainda duraria.

Mas o mais interessante seria vermos até que ponto a própria mutação substancial operada pelo 25-IV-1974 – até no aspecto fulcral de ela ter sido determinada pelo fracasso do nosso colonialismo e pela impossibilidade de ganharmos as guerras africanas que mantínhamos desde 1961 para perpetuar um Império condenado ao malogro e irremediável derrocada (esse mesmo Império cuja obsidiante presença na nossa alma nacional unira, para além dos pontos divergentes dos três regimes, o essencial das nossas fainas como país desde a monarquia constitucional à Ditadura salazarista-marcelista, passando pela I República) não constituiu uma reposição da I República nos seus símbolos, natureza político-social ou estética intrínsecos do demoliberalismo morto meio século atrás, mas antes foi a instauração dum modelo novo de Estado, de ideologia politica e de regime de instituições públicas.



11. Porque, efectivamente, há algo que substancialmente une a monarquia constitucional, o demoliberalismo republicano e o nacionalismo ditatorial do Estado Novo, e que é um idêntico empenho em manter a nossa presença colonial africana, o afã ultramarinista colonizador, o mito do “novo Brasil em África”. Já o período histórico e anímico colectivo que se seguiu à “revolução dos cravos” destoa dessa trilogia anterior de regimes comungando numa semelhante preocupação africanista. Pelo que se poderia dizer que essa revolução não se traduziu na reposição dum Estado morto mas antes na instauração dum Democracia de tipo muito diferente daquela que entre nós vigorara entre 1910 e 1926, um portentosa rotação hiatórico-geográfica essencial, que começava pela renúncia ao sonho colonial imperial de séculos e ao regresso à Europa, essa Europa de que tínhamos fugido desde que tomámos Ceuta e, dobrado o Cabo Tormentório, encetámos a nossa saga de expansão e descobrimentos, com a construção desse “novo reino” que constituiria a alma mesma do poema trans-europeu (ou anti-europeu) de Camões.

João Medina




 

Bibliografia essencial



1 - Estudos

Damião Peres, História de Portugal, Suplemento, Porto, Portucalense Editora, 1954, ilustr.

João Medina, “Oh!...a República!...” Estudos sobre o Republicanismo e a I República portuguesa, Lisboa, INIC, 1990.

João Medina (dir. de), História contemporânea de Portugal, “Primeira República”, vol I e II, Algés, Amigos do Livros, s.d. (1986).

João Medina (dir. de), História de Portugal desde os Tempos pré-históricos aos nossos Dias, (“República”, vols. X e XI), Amadora, Ediclube, 1993, 15 vols., 1993 (reed. posteriorm.).

António de Araújo, Jesuítas e Antijesuítas no Portugal republicano,  Lisboa, Roma Editores, 2004.

João Medina, Morte e Transfiguração de Sidónio Pais, Lisboa, Edições Cosmos, 1984, ilustr.

Artur Ribeiro Lopes, Histoire de la République portugaise, Paris, Les Ouevres Françaises, 1939.

Alexandre Vieira, Para a História do Sindicalismo em Portugal, Lisboa, Ed. Seara nova, 1970.

Aniceto Afonso, História de uma Conspiração. Sinel de Cordes e o 28 de Maio, Lisboa, Notícias Editora, s.d. ( pref. de J. Medina).

F. Cunha Leal, “Os Partidos políticos na República portuguesa”, nº 2 d’Os meus Cadernos, Corunha, 1932, pp.84-105.

Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes, Portugal e a Grande Guerra. 1914-1918, Porto, Quidnovi, 2010, ilustr.

Luís Bigotte Chorão, A Crise da República e a Ditadura militar, Lisboa, Sextante Editora, 2009, ilustr.

João Medina, Salazar, Hitler e Franco, Lisboa, Livros Horizonte, 2000, ilustr.
 
2 - Memórias

Raúl Brandão, Memórias, Lisboa, Jornal do Foro, 1969, ilustr. (há diversas edições desta obra, em 3 vols., sendo esta a única num só volume).

José Relvas, Memórias políticas, 2 vols., Lisboa, Terra livre (Ministério da Comunicação Social), 1977 e 1978 (pref. de João Medina e Carlos Ferrão).

João Chagas, Diário de João Chagas, Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 4 vols., 1029-1932.

Manuel Homem Christo, Memórias da minha Vida e do meu Tempo, Lisboa, Guimarães Editores, 7 vols., 1936.

Idem, Banditismo político, Madrid, 1912.

João Sarmento Pimentel, Memórias do Capitão, 2ª ed., Porto, Inova, 1974, ilustr.

Francisco da Cunha Leal, Coisas dos Tempos idos. As minhas Memórias, Lisboa, Ed. do Autor, 3 vols., 1966-1968.

3 - Poemas

Joaquim Augusto Fernandes, A Libertação (poema), Lisboa, 1910.

Marco António (i.e., António Pinto de Almeida), Republicaniadas, Lisboa, 1913 (poema satírico ilustrado por Almada Negreiros).

Octávio de Medeiros, Afonseida. Poema herói-cómico, 2ª ed., Lisboa, Lisboa, 1927.

Joaquim José Coelho de Carvalho, Máscaras abaixo!, Lisboa, Ed. Coelho de Carvalho, 1931 (história de Portugal em verso, desde o ocaso da monarquia constitucional e a República desde a revolução do 5-X-10 até ao golpe do 28-IV-26).
 
4 - Testemunhos jornalísticos

Joaquim Madureira, Na Fermosa Estrivaria. Notas dum diário subversivo, Lisboa, A. M. Teixeira, 1912.

Henrique Trindade Coelho, Ferro em Brasa, Lisboa, Livraria Ferreira, 1913.

Carlos Malheiro Dias, Do Desafio à Debandada: I -O Pesadelo. II-Cheque ao Rei, 2 vols., Lisboa, 1912.

Idem, Em Redor de um grande Drama, Lisboa, s.d.

Idem, Zona de Tufões, Lisboa, 1912.

Idem, O Estado actual da Causa monárquica, Lisboa, 1912.

Afonso de Bragança, Amostras sem Valor (Ecos e “Sueltos” políticos), Figueira da Foz, 1921.

Francisco Rocha Martins, Fantoches, publicação semanal, 2ª série, 78 números publicados, Lisboa, 1923-1924.

Augusto de Castro, Homens e Sombras, Lisboa, ENP, 1958, ilustr.
 
5 - Manifesto estético

José de Almada Negreiros, Manifesto anti-Dantas e por Extenso por José de Almada Negreiros, Poeta d’Orpheu, Futurista e Tudo, in Almada Negreiros, Obras Completas, vol. VI, Textos de Intervenção, Lisboa, INCM, 1993, pp.17-23.
 
6 - O pensamento seareiro e a República

Mário Sottomayor Cardia, Pela Reforma da República (I): 1921-1926 (antologia de artigos seareiros), Lisboa Ed. Seara Nova, 1971.

Raúl Proença, Polémicas (antologia, pref. e cronolog. de Daniel Pires), Lisboa, Dom Quixote, 1988.

Raúl Proença, Páginas de Política (pref. de Câmara Reys), Lisboa, Ed. Seara Nova, 1938.

António Sérgio, Breve Interpretação da História de Portugal (1ª ed. em castelhano, Madrid, 1929), Lisboa, Sá da Costa Edit., 1972.

7 - Ficção

Alves Redol, Os Reinegros, Lisboa, Europa América, 1972 (reed. em 1987).

José Rodrigues Miguéis, Saudades para Dona Genciana, in Léah e outras Histórias, (pp.255-296), Lisboa, Estúdios Cor, 1958 (reed. posteriores).

Idem, O Milagre segundo Salomé, Lisboa, 2 vols., Lisboa, Estúdios Cor, 1975 (reed. em 1982 e 1984). Fez-se uma boa adaptação homónima ao cinema, realizada por Mário Barroso (2004), com argumento de Carlos Saboga, interpretada por Nicolau Breyner, Ana Bandeira, Ricardo Pereira, etc. Produção luso-francesa da Atalanta.

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