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Patricia Highsmith, aqui |
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Nascida Mary Patricia Plangman, a escritora Patricia Highsmith (1921-1995) não tinha uma personalidade fácil. Quem ler os seus livros rapidamente se aperceberá do que digo. Como fui devorado por toda a sua obra, de fio a pavio, permito-me destacar, entre tantos outros exemplos possíveis, um conto especialmente arrepiante e cruel – mas talvez realista e, por isso mesmo, particularmente perturbador – sobre a relação entre uma mãe stressada e um filho problemático, tema também explorado em Edith’s Diary (1977), livro de que existe edição portuguesa, da Gradiva. O conto, «The Terrapin», foi publicado pela primeira vez na Ellery Queen’s Mystery Magazine e, mais tarde, incluído no livro Eleven (1970) (de que existe edição portuguesa: O Observador de Caracóis e Outros Contos, Editorial Teorema, 1987). Nesse conto cita-se um livro que Patricia leu na juventude, The Human Mind, de Karl Menninger (1893-1990), e que muito a marcou como pessoa e como escritora. Já agora, outra informação: Graham Greene compara «The Terrapin» a um conto de Saki (pseudónimo do escritor escocês Hector Hugh Munro, 1870-1916), «Sredni Vashtar», que pode ler aqui, em tradução brasileira.
Além desse conto, poderíamos falar da sublime perfídia que Patricia fez aos seus leitores, levando-os a ter empatia por uma criatura totalmente amoral e perversa como Thomas Ripley. Tom Ripley é inclassificável. Não é uma pessoa, é uma abstracção, um conceito – ou, se preferirmos, a ausência de um conceito e de um sentimento, a culpa. Com 14 anos, Patricia já lera Crime e Castigo. Ripley é Raskolnikov às avessas: só mata em caso de necessidade e última instância; por isso, ou também por isso, não sente remorso nem lhe aflige a culpa. Não mata por prazer ou por sentir que tem direito a fazê-lo impunemente. Não mata gratuitamente, por exercício espiritual, nem pelo puro deleite de extinção do outro. Mata para proteger o seu mundo confortável de mentira e ilusão. Nada mais do que isso. Murder considered as one of the fine arts. Ripley não existe como pessoa, nem é personificável. A prova é que, até hoje, nenhum actor deu um bom Ripley. E foram muitos os que tentaram fazê-lo, no cinema e na televisão. A autora apreciou as interpretações de Alain Delon, de Jonathan Kent e, após um segundo visionamento, de Dennis Hopper. Discordo dela, com o devido respeito. Alain Delon? Demasiado agressivo e matador, de olhar azul semicerrado, de esguelha. Jonathan Kent? Pesado, demasiado chão e simples, até simplório. Dennis Hopper? Demasiado freak. Ian Hart? Orelhudo. Matt Damon? Cara de miúdo, imberbe, demasiado clean. John Malkovitch? Demasiado lunático na aparência. Barry Pepper? Rosto cavalar. Talvez Philip Seymour Hoffman o conseguisse, não sei. Contudo, Hoffman é demasiado rubicundo, redondo, enquanto Ripley, como o vejo, é esguio e fugidio, felídeo. Talvez Gabriel Byrne (que achas, Maggie?). Talvez Jeremy Brett (que achas, Bebel?). Mas o primeiro está velho e o segundo está morto.
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Patricia Highsmith, insistimos, não tinha um feitio fácil. Estamos a falar de uma pessoa que confessou, candidamente: «desde muito pequena, aprendi a viver com um ódio intenso que me fazia ter inclinações homicidas». Aos 8 anos, fantasiava matar o padrasto… Aliás, estamos a falar de uma pessoa que nem sequer era suposto ter nascido. Quando descobriu que a mulher estava grávida, o pai de Patricia pressionou-a para que abortasse. A mãe da futura escritora, muito contrariada, bebeu terebentina – mas nada aconteceu. Decidiu, então, deixar o marido e ter a criança. Patricia nasceu na casa de hóspedes da sua avó materna, em Fort Worth, no Texas, em 1921, nove dias após os seus pais se divorciarem. A mãe gracejaria com o facto: «nasceu fora do casamento, mas é legítima». Estranhamente (no universo Highsmith tudo é estranho), Patricia manteria toda a vida uma relação de amor-ódio com a mãe, a mulher que quis e lutou para que ela viesse ao mundo – talvez aí residisse, precisamente, a razão do seu ódio. Aos 21 anos, escrevia nos seus cadernos: «Tenho um grande desejo de escrever algo sobre uma jovem que coloca a sua mãe (guardiã, tia) na cama, concordando com todas as suas propostas... gentilmente servindo-lhe um copo de leite quente, prometendo nunca mais falar com o seu namorado, e então, com um sorriso, a garota enfia a tesoura no peito da mãe...».
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Além do amor-ódio pela mãe, e porventura por ter bebido dela em demasia quando ainda estava no ventre materno, Patricia Highsmith sempre teve uma profunda repulsa pela essência da terebentina, a aguarrás. Repulsa pela aguarrás e pelo mundo em geral. Culpabilizou-se até tarde pela sua homossexualidade, lidou mal com ela e com elas, muitas. Tentou até contrariar a sua orientação e estabelecer relações com homens, sendo Arthur Koestler uma das vítimas. Patricia contra mundum. Apenas os gatos escapavam.
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Em 2009, Joan Schenkar publicou uma monumental biografia de Patricia Highsmith, considerada «definitiva». Nesse livro, The Talented Miss Highsmith. TheSecret Life and Serious Art of Patricia Highsmith, refere-se que a autora esteve no sul de Portugal, em Outubro de 1969, num período de férias e trabalho, sempre em luta com os seus fantasmas vários, tentando concluir a escrita de uma peça para o teatro londrino. A casa em Portugal foi, aliás, oferecida pelo produtor da peça, Martin Tickner (1941-1992). A criadora de Tom Ripley visitou-nos na companhia da sua jovem amante de então, Madeleine Harmsworth, que, sobre esta vilegiatura lusitana, diria: «I was rather fond of Portugal until then» (pág. 174). Aqui, calma. Quando dizem mal do nosso país, o citoyen português irrita-se. Desdenhar Portugal é um exclusivo nacional. E nacionalista. Adoramos dizer mal da nossa terra e das nossas gentes, mas odiamos quando os estrangeiros o fazem. No fundo, não aceitamos que outros, vindos de fora, partilhem a nossa opinião corrente e maledicente sobre este país e o seu povo. Com isto, estou de novo a dizer mal dos portugueses, repararam? Fatal destino, sermos assim. É inescapável ser português.
Como português ultrajado, fui ver a fonte em que Joan Schenkar se baseava para aquela afirmação: outra biografia de Highsmith, da autoria de Andrew Wilson. Já tinha lido em tempos o livro de Wilson, Beautiful Shadow. A life of Patricia Highsmith, e não me recordava do episódio português. Segundo Wilson, esse episódio passa-se em 1968 – e não em 1969, como diz a biografia de Schenkar. Em Outubro de 1968, Patricia Highsmith e Madeleine Harmsworth, a convite de Martin Tickner, vêm a Portugal, ficando hospedadas numa casa nas imediações de Albufeira, no Algarve. A relação entre Patricia e Madeleine atravessava um período crítico. Madeleine era uma jovem jornalista de 26 anos, que em Março desse ano fora até França entrevistar a escritora, por quem tinha tal admiração que não conseguia tratá-la com familiaridade (segundo ela, chamar-lhe «Pat», como era conhecida entre os amigos, seria o mesmo que tratar Shakespeare por «Willie» ou Dickens por «Charlie» - que exagero!). Patricia engraçou com a jovem jornalista, diplomada por Oxford, e, animada por uns tantos uísques, seduziu-a. Dormiram juntas nessa mesma noite. Em Outubro, porém, já Madeleine tentava libertar-se da tensão que Highsmith irradiava. Entrevistada por Wilson, recorda-se da vinda ao Algarve: «At that point I really was trying to distance myself from her, but she was persuasive and I went. It was as bad as I expected to be. I was rather fond of Portugal until then. She was an extremely unbalanced person, extremely hostile and misanthropic and totally incapable of any kind of relationship, not just intimate ones» (pág. 286, itálico acrescentado). Como se vê, na biografia de Joan Schenkar, além da diferença quanto ao ano em que Patricia Highsmith visitou Albufeira, existe uma descontextualização da frase de Madeleine Harmsworth. Madeleine, quando entrevistada por Andrew Wilson, não visa depreciar Portugal, mas sim retratar o estado lastimável do seu namoro com a destrutiva Patricia Harmsworth. Esta nação, velha de séculos, apanha por tabela da má relação, de breves meses, existente entre aquelas duas mulheres. Só isso, nada mais. Essa nuance não resulta claramente da biografia de Joan Schenkar, que transcreve apenas uma frase do longo depoimento de Madeleine. Está salva a honra da pátria – e da bela zona de Albufeira, que ao longo de décadas se mantém preservada da barbárie humana, nomeadamente da invasão imobiliária e do turismo das massas sem massa.
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Porém, não sejamos tão optimistas. Com Patricia Highsmith, todo o optimismo é precipitado. Graham Greene, que Highsmith admirava e até citou num dos seus escritos, topou-a bem: «É uma escritora que criou um mundo muito seu – um mundo claustrofóbico e irracional no qual sempre entramos com uma sensação de perigo pessoal e com a cabeça a espreitar por cima do ombro, ou até com certa relutância, porque os prazeres que iremos experimentar são cruéis». Enfim, a escritora não tinha muito apreço pelos portugueses. Pelo menos, por aqueles que conheceu. A sua existência foi marcada por inconstantes relações amorosas (quanto pior corriam, melhor ela escrevia, diz-se) e por constantes mudanças de residência. Casas, teve várias, muitas delas em simultâneo. Em Junho de 1967, foi viver para Bois Fontaine, junto à Floresta de Fontainbleau. Mal tinham passado três meses sobre a ida para Bois Fontaine, decide comprar uma casa em Samois-sur-Seine. Em 1969, muda-se de Samois-sur-Seine para Montmachoux. Aqui, o problema era a vizinhança. Mesmo a seu lado, portugueses, cujos dez filhos levaram Patricia Highsmith à beira de um ataque de nervos. «I never understood Catholics and never will», escreveu a uma amiga, em Julho de 1969 (Joan Shenkar, ob. cit., pág. 375). A escritora não apreciava crianças. Dizer isto é pouco. No rigor dos factos, o infanticídio seduzia-a – e não apenas como tema literário. Quanto à Igreja Católica, basta ler a mordaz sátira (a João Paulo II e às suas viagens?) «Sixtus VI, Pope of the Red Slipper», publicada em Tales of Natural and Unnatural Catastrophes (1987) (trad. portuguesa: Catástrofes, Gradiva, 1988). Aliás, num outro conto, este terrível, «Those Awful Dawns», aborda o tema dos maus-tratos infantis e das atitudes dos católicos perante o aborto (originalmente publicado em 1977 pela Macmillan na antologia Winter’s Crime 9, este conto surgiria no livro Slowly, Slowly in the Wind, de 1979, publicado entre nós como Levemente, Levemente ao Vento, Distri Editora, s/d.)
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Montmachoux, 1968-1969 |
Montmachoux, 1970 |
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Noutro ponto da sua biografia de Highsmith, Joan Shenkar especifica que, em Montmachoux, Patricia Highsmith tinha duas famílias portuguesas na vizinhança. Uma delas vivia mesmo na casa contígua àquela em que habitava. Paredes-meias. Um problema: o ruído. Para a extrema sensibilidade de Patricia Highsmith, qualquer barulho, por menor que fosse, significava «ruído». E era insuportável. A insuportabilidade estendia-se a outro domínio: a vida familiar. Uma família ruidosa, com crianças aos saltos, era a pior visão que Patricia Highsmith poderia ter. Escreveu, então, no seu cahier, com data de 13 de Agosto de 1969: «The Portuguese – it is like a pot of boiling soup next door, every vegetable leaping out of the pot and screaming – probably for privacy. Sometimes it sounds like a pigpen with boiling water being poured over it, scalding off the skins» (Joan Shenkar, ob. cit., p. 462).
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Por essa altura (et pour cause…), Patricia aprofunda os seus pensamentos sobre o ruído, as crianças, o infanticídio. «I can easily bear cold, loneliness, hunger and toothache, but I cannot bear noise, heat, interruptions, or other people. Some people who actually own the babies kill them because of their noise. How much harder it is for people who do not own the babies», escreveu no seu cahier, em 29 de Junho de 1969 (ou seja, poucos dias antes da anotação, atrás citada, sobre os vizinhos portugueses). Flagelada pelo barulho dos pequenos lusitos, certamente ocorreu-lhe despachá-los à boa maneira de Tom Ripley (há, aliás, um episódio em que Ripley sorrateiramente agride uma criança ruidosa e incomodativa, um tema pelos vistos obsessivo para Patricia Highsmith).
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Como se vê, houve tempos em que Portugal e os portugueses deixam marcas sombrias na trajectória biográfica de Pat Highsmith: um Outubro complicado em Albufeira; crianças ruidosas em Montmachoux. É provável que no seu espólio existam mais referências. Pode haver registos da sua passagem pelo Algarve ou anotações mais extensas sobre os vizinhos portugueses. O espólio da escritora está na Suíça e foi consultado exaustivamente por Joan Schenkar, a qual, como é óbvio, não se deteve em pormenor sobre estes aspectos marginais. Seria interessante que alguém fosse um dia a Berna, aos Arquivos Suíços, consultar o espólio de Patricia Highsmith. Daí retirámos as imagens para este «post» (ou «posta»). A descrição arquivística está disponível online, aqui: não haverá um jornalista curioso, interessado na relação da escritora com Portugal e os portugueses? A história do seu acervo pessoal, como quase tudo na sua existência, é triste. No final da vida, a escritora perguntou à Universidade do Texas se estaria interessada em ficar com o seu espólio. De Austin, ofereceram-lhe 25.000 dólares pelos seus papéis, uma quantia irrisória por um legado de 8.000 páginas, onde se incluíam 38 cadernos, diários, manuscritos. «O preço de um carro em segunda mão», disse Highsmith, magoada. O espólio ficou na Suíça.
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«Poetisa da apreensão», como certeiramente lhe chamou Graham Greene, Patricia Highsmith iniciou a sua carreira literária escrevendo na revista do Barnard College, onde estudava. Logo na altura, alguns dos seus textos foram rejeitados por serem demasiado perturbadores. O último romance que escreveu, Small g, foi igualmente rejeitado pelo seu editor, amigo e admirador, Garry Fiskejton, da Knopf (existe edição portuguesa, pelo Círculo de Leitores: Small g. Um Idílio de Verão). Quando morreu, Patricia Highsmith não tinha um editor no seu país de origem. A culpa foi, provavelmente, do livro People Who Knock on the Door (1983), uma crítica aos excessos de proselitismo da direita cristã americana (o livro é provocatoriamente dedicado ao povo palestiniano…). Apesar de publicado entre nós, pelo Círculo de Leitores, é um dos seus livros menos conhecidos em Portugal. Mas, sem dúvida, dos mais interessantes e, de certo modo, dos menos «típicos» da sua obra. Na América, que sempre a apreciou muito menos do que a Europa, foi a morte da artista. Patricia Highsmith começou e terminou uma vida literária de décadas vendo os seus trabalhos serem recusados para publicação, sempre pelo mesmo motivo: era demasiado incómoda. Sobretudo, para si própria. Entre muitas paixões e muito álcool, também escreveria muito. E fumava des-almadamente. Durante sete anos, escreveu até argumentos para comics, facto que nunca quis revelar e que nem sequer confessou à intimidade dos seus diários.
.Quando tinha 26 anos, escreveu uma saudação de Ano Novo, que dizia: «Brindo a todos os demónios, às luxúrias, às paixões, avarezas, invejas, aos amores, ódios, estranhos desejos, inimigos reais ou imaginários, ao exército de recordações contra o qual luto – que nunca me dêem descanso». As dez crianças portuguesas de Montmachoux cumpriram esse seu desejo de juventude. Com os gritos próprios da infância, não lhe deram com certeza descanso algum enquanto por ali viveu. As crianças portuguesas foram talvez – quem sabe? – a causa mais inocente da ausência de paz na vida de Patricia Highsmith. Tudo o resto foram demónios. Inquietações de quem nasceu por acaso. Mary Patricia Plangman, salva da morte por um golpe de sorte. Mas não acontece o mesmo com todos nós?
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