Margery Withers (1905-1999)
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Nascida em 1905 na Patagónia e falecida
em Pinner, Middlesex, no Reino Unido em 1999, Margery Withers passou longos
anos em Portugal. Antiga bibliotecária do rei D. Manuel II, com quem trabalhou
durante dezasseis anos, até à morte do no secretariado do BBC Portuguese
Service. Legou-nos umas breves mais interessantíssimas – insiste-se:
interessantíssimas – memórias, editadas em fotocópia (!) pela The British
Historical Society of Portugal. É um dos mais curiosos livrinhos que existem
sobre Portugal nos anos quarenta: a guerra, o racionamento, as esperanças dos
oposicionistas com a vitória dos Aliados, as eleições de 1945, a vida social da
comunidade britânica (e não só), o quotidiano de Lisboa e doutros pontos do
país, tudo passou pelo olhar arguto de Margery Withers, que à boa maneira
anglo-saxónica captou episódios caricatos ou simplesmente inesperados, narrados
num estilo cativante e leve. Pelo que vi numa busca rápida, Margery Withers foi
também actriz, tendo aparecido em belos filmes, como Secret and Lies, de Mike Leigh. O seu Remembering Portugal não despertou, por ora, o interesse dos
editores, que eu saiba. O que é tão surpreendente quanto lamentável. Em
Portugal, todos os dias são lançados, em média, 40 novos títulos, estando as
prateleiras das livrarias encharcadas de romances nacionais e estrangeiras de
quinta categoria. Enquanto isso, Rememebering
Portugal, um opúsculo de uma centena de páginas, permanece quase
inacessível, e teria decerto leitores interessados. Não se entende. É coisa que
não se entende.
Uma
das melhores coisas que me aconteceram durante o escaldante Verão de 1944 foi
um convite da família Leote para passar uns dias com eles na Serra d’Ossa, no
Alentejo. Fui de comboio até Évora, e tive de esperar quatro horas por uma
camioneta para o Redondo, onde me aguardavam. Para minha surpresa e deleite,
Henrique Leote pediu a um jovem amigo que me acompanhasse e levasse ao hotel
certo para almoçarmos, dando depois uma volta pela cidade. Um dos locais que
visitei foi a Capela dos Ossos, um lugar tão curioso quanto macabro. É uma
espécie de gruta com o tecto em abóboda, apoiado em pilares. As paredes estão
cobertas de uma série de arcos feitos de crânios, bodejados de ossos de braços
e de pernas. No tecto, frisos de uma miscelânea de ossos, com um esqueleto
pendurado num dos cantos da sala. À entrada, uma inscrição diz: Nós ossos que aqui estamos / Pelos vossos
esperamos.
Quando
comprei o bilhete de autocarro na estação, reparei que uma enorme fotografia do
Marechal Montgomery tinha sido colocada no topo da bilheteira, com a legenda: MONTGOMERY, O VENCEDOR.
Henrique
Leote estava à minha espera no Redondo, trajando uns calções de montar, uma
camisa branca e um chapéu de feltro à moda da Andaluzia. Conduziu-me através da
estrada quente e poeirenta que levava à sua herdade,
ou propriedade de família. Tinha uma localização soberba, rodeada de colinas
onde pinheiros, eucaliptos, sobreiros, laranjeiras e limoeiros cresciam ao
longo daquela extensa propriedade. A casa, que anteriormente tinha sido o
principal mosteiro em Portugal dos monges da Ordem de São Paulo, era
invulgarmente grande, com corredores amplos e compridos (o maior dos quais
media cerca de setenta metros), escadarias em mármore, o chão em tijolo ou
mármore, maravilhosos azulejos antigos, e uma fonte no vasto átrio – fonte que,
naquela época, era a única via de água corrente existente na casa. Algumas alas
do edifício necessitavam de restauro, e os interiores eram decorados de forma
simples e sóbria, sendo a iluminação fornecida apenas por candeeiros a petróleo
ou por velas. O pão era feito na antiga cozinha, e podia nadar-se na piscina
que outrora fora o local onde os monges guardavam o peixe.
Os
Leotes produziam a sua própria fruta, criavam o seu próprio gado, faziam azeite
das suas oliveiras, cultivavam trigo, cevada e centeio, produziam tábuas de madeira
das suas árvores, faziam os seus próprios tijolos e azulejos. Enquanto lá
estive, os homens trabalhavam no centeio. Na primeira noite, ao passearmos,
fomo-nos sentar aos pés de um cruzeiro branco, de onde observámos a palha
colocada na eira a ser colocada em montes. Noutra noite, estavam a joeirar: uma
grande quantidade de centeio estava colocada no chão da eira enquanto duas
mulheres o lançavam pelo ar com duas pás, afastando o joio e guardando o cereal
que caía ao solo. Quando o trabalho acabou, o centeio foi colocado em sacos e
transportado numa carroça puxada por uma mula. Henrique disse-me que tentava
que os seus trabalhadores usassem métodos mais modernos, o que os incomodava,
pois preferiam trabalhar à moda antiga.
Quando
regressámos a casa, já tarde na noite, uma neblina escura ergueu-se no horizonte,
seguida de uma névoa rósea que mesclava com o veludo azul-escuro do céu
nocturno. A lua cheia subiu, então, ao cimo de uma colina, lançando luz e
sombra na neblina que flutuava sobre as árvores do vale. A beleza da cena tinha
o seu quê de mágico.
Éramos
um grande grupo ali reunido na Serra d’Ossa. Além de Henrique, da sua mulher
Isabel e do seu pequeno filho, Henrique, estava lá o pai de Isabel (o conde de
São Tomé), a mãe de Henrique, e também a sua avó, com 90 anos, dona do
mosteiro, que comprara quando tinha apenas 16 anos. Estavam também lá três
primas quarentonas, Maria, Margarida e Madalena. A avó sofrera um ataque que lhe
afectara o lado esquerdo e a voz, mas era uma senhora com grande vivacidade,
que mandava na filha e nas três netas com mão de ferro. Ao serão, gostava que
elas se sentassem a seu lado a bordar; também apreciava vê-las jogar Mah Jong à
luz de um candeeiro alumiado a petróleo, o que tornava a sala de estar
insuportavelmente quente. Henrique e Isabel, que passavam apenas uma breve
temporada na quinta, eram mais independentes. Só jogaram Mah Jong na última
noite que ali estiveram.
Estava
tão quente à tarde que era praticamente impossível sair de casa; pelo que eu
costumava fazer uma longa sesta, só me levantando quando já eram quase horas de
jantar, servido por volta das seis e meia. Depois, alguns de nós dávamos um
passeio pelo campo, enquanto as jogadoras de Mah Jong iniciavam a partida. Os
que não participavam no jogo podiam gozar o suave frescor da noite, reclinados
em espreguiçadeiras colocadas no laranjal. Por vezes, entre a meia-noite e a
uma da manhã tomávamos chá (quente ou frio) com pão e manteiga, queijos e
bolos, e íamos para a cama.
A
relação entre os Leotes e os seus empregados e trabalhadores da herdade era uma
extraordinária combinação de feudalidade e camaradagem. Podiam dar ordens num
tom que nos parecia inadmissível mas, ao mesmo tempo, tinha-se a sensação que
todos pertenciam a uma mesma grande família. Quando passávamos à noite pela
casa do caseiro, a mulher deste ia buscar umas cadeirinhas para que todos nos
sentássemos juntos, à conversa. Dois encantadores rapazes da quinta, meio
andrajosos, brincavam com Henrique de igual para igual, excepto quando lhe
chamavam Menino Henrique. As mulheres
adoravam mostrar as suas casas XXXX
Uma
manhã, presenciei um exemplo da relação desinibida entre patrões e empregados.
Queria ir ao lavatório, mas tentei a porta da casa de banho e vi que estava
fechada. Do outro lado do corredor, algumas criadas chamaram-me, dizendo que
aquela era a porta errada, que devia ir pela porta número cinco. Uma delas,
mais velha, saiu do grupo e foi espreitar pelo buraco da fechadura. «Oh, está
lá a Menina Madalena», disse, acrescentando: «vai demorar muito, Menina? A Miss está à espera.»
Margery Withers
(tradução de António Araújo)
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