sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Alentejo, 1944.

 
 
 
Margery Withers (1905-1999)
 
 
 
 
         Nascida em 1905 na Patagónia e falecida em Pinner, Middlesex, no Reino Unido em 1999, Margery Withers passou longos anos em Portugal. Antiga bibliotecária do rei D. Manuel II, com quem trabalhou durante dezasseis anos, até à morte do no secretariado do BBC Portuguese Service. Legou-nos umas breves mais interessantíssimas – insiste-se: interessantíssimas – memórias, editadas em fotocópia (!) pela The British Historical Society of Portugal. É um dos mais curiosos livrinhos que existem sobre Portugal nos anos quarenta: a guerra, o racionamento, as esperanças dos oposicionistas com a vitória dos Aliados, as eleições de 1945, a vida social da comunidade britânica (e não só), o quotidiano de Lisboa e doutros pontos do país, tudo passou pelo olhar arguto de Margery Withers, que à boa maneira anglo-saxónica captou episódios caricatos ou simplesmente inesperados, narrados num estilo cativante e leve. Pelo que vi numa busca rápida, Margery Withers foi também actriz, tendo aparecido em belos filmes, como Secret and Lies, de Mike Leigh. O seu Remembering Portugal não despertou, por ora, o interesse dos editores, que eu saiba. O que é tão surpreendente quanto lamentável. Em Portugal, todos os dias são lançados, em média, 40 novos títulos, estando as prateleiras das livrarias encharcadas de romances nacionais e estrangeiras de quinta categoria. Enquanto isso, Rememebering Portugal, um opúsculo de uma centena de páginas, permanece quase inacessível, e teria decerto leitores interessados. Não se entende. É coisa que não se entende.
 
 
Artur Pastor. Alentejo, anos 1940-50
 
Uma das melhores coisas que me aconteceram durante o escaldante Verão de 1944 foi um convite da família Leote para passar uns dias com eles na Serra d’Ossa, no Alentejo. Fui de comboio até Évora, e tive de esperar quatro horas por uma camioneta para o Redondo, onde me aguardavam. Para minha surpresa e deleite, Henrique Leote pediu a um jovem amigo que me acompanhasse e levasse ao hotel certo para almoçarmos, dando depois uma volta pela cidade. Um dos locais que visitei foi a Capela dos Ossos, um lugar tão curioso quanto macabro. É uma espécie de gruta com o tecto em abóboda, apoiado em pilares. As paredes estão cobertas de uma série de arcos feitos de crânios, bodejados de ossos de braços e de pernas. No tecto, frisos de uma miscelânea de ossos, com um esqueleto pendurado num dos cantos da sala. À entrada, uma inscrição diz: Nós ossos que aqui estamos / Pelos vossos esperamos.
Quando comprei o bilhete de autocarro na estação, reparei que uma enorme fotografia do Marechal Montgomery tinha sido colocada no topo da bilheteira, com a legenda: MONTGOMERY, O VENCEDOR.
Henrique Leote estava à minha espera no Redondo, trajando uns calções de montar, uma camisa branca e um chapéu de feltro à moda da Andaluzia. Conduziu-me através da estrada quente e poeirenta que levava à sua herdade, ou propriedade de família. Tinha uma localização soberba, rodeada de colinas onde pinheiros, eucaliptos, sobreiros, laranjeiras e limoeiros cresciam ao longo daquela extensa propriedade. A casa, que anteriormente tinha sido o principal mosteiro em Portugal dos monges da Ordem de São Paulo, era invulgarmente grande, com corredores amplos e compridos (o maior dos quais media cerca de setenta metros), escadarias em mármore, o chão em tijolo ou mármore, maravilhosos azulejos antigos, e uma fonte no vasto átrio – fonte que, naquela época, era a única via de água corrente existente na casa. Algumas alas do edifício necessitavam de restauro, e os interiores eram decorados de forma simples e sóbria, sendo a iluminação fornecida apenas por candeeiros a petróleo ou por velas. O pão era feito na antiga cozinha, e podia nadar-se na piscina que outrora fora o local onde os monges guardavam o peixe.
Os Leotes produziam a sua própria fruta, criavam o seu próprio gado, faziam azeite das suas oliveiras, cultivavam trigo, cevada e centeio, produziam tábuas de madeira das suas árvores, faziam os seus próprios tijolos e azulejos. Enquanto lá estive, os homens trabalhavam no centeio. Na primeira noite, ao passearmos, fomo-nos sentar aos pés de um cruzeiro branco, de onde observámos a palha colocada na eira a ser colocada em montes. Noutra noite, estavam a joeirar: uma grande quantidade de centeio estava colocada no chão da eira enquanto duas mulheres o lançavam pelo ar com duas pás, afastando o joio e guardando o cereal que caía ao solo. Quando o trabalho acabou, o centeio foi colocado em sacos e transportado numa carroça puxada por uma mula. Henrique disse-me que tentava que os seus trabalhadores usassem métodos mais modernos, o que os incomodava, pois preferiam trabalhar à moda antiga.
Quando regressámos a casa, já tarde na noite, uma neblina escura ergueu-se no horizonte, seguida de uma névoa rósea que mesclava com o veludo azul-escuro do céu nocturno. A lua cheia subiu, então, ao cimo de uma colina, lançando luz e sombra na neblina que flutuava sobre as árvores do vale. A beleza da cena tinha o seu quê de mágico.
Éramos um grande grupo ali reunido na Serra d’Ossa. Além de Henrique, da sua mulher Isabel e do seu pequeno filho, Henrique, estava lá o pai de Isabel (o conde de São Tomé), a mãe de Henrique, e também a sua avó, com 90 anos, dona do mosteiro, que comprara quando tinha apenas 16 anos. Estavam também lá três primas quarentonas, Maria, Margarida e Madalena. A avó sofrera um ataque que lhe afectara o lado esquerdo e a voz, mas era uma senhora com grande vivacidade, que mandava na filha e nas três netas com mão de ferro. Ao serão, gostava que elas se sentassem a seu lado a bordar; também apreciava vê-las jogar Mah Jong à luz de um candeeiro alumiado a petróleo, o que tornava a sala de estar insuportavelmente quente. Henrique e Isabel, que passavam apenas uma breve temporada na quinta, eram mais independentes. Só jogaram Mah Jong na última noite que ali estiveram.
Estava tão quente à tarde que era praticamente impossível sair de casa; pelo que eu costumava fazer uma longa sesta, só me levantando quando já eram quase horas de jantar, servido por volta das seis e meia. Depois, alguns de nós dávamos um passeio pelo campo, enquanto as jogadoras de Mah Jong iniciavam a partida. Os que não participavam no jogo podiam gozar o suave frescor da noite, reclinados em espreguiçadeiras colocadas no laranjal. Por vezes, entre a meia-noite e a uma da manhã tomávamos chá (quente ou frio) com pão e manteiga, queijos e bolos, e íamos para a cama.
A relação entre os Leotes e os seus empregados e trabalhadores da herdade era uma extraordinária combinação de feudalidade e camaradagem. Podiam dar ordens num tom que nos parecia inadmissível mas, ao mesmo tempo, tinha-se a sensação que todos pertenciam a uma mesma grande família. Quando passávamos à noite pela casa do caseiro, a mulher deste ia buscar umas cadeirinhas para que todos nos sentássemos juntos, à conversa. Dois encantadores rapazes da quinta, meio andrajosos, brincavam com Henrique de igual para igual, excepto quando lhe chamavam Menino Henrique. As mulheres adoravam mostrar as suas casas XXXX
Uma manhã, presenciei um exemplo da relação desinibida entre patrões e empregados. Queria ir ao lavatório, mas tentei a porta da casa de banho e vi que estava fechada. Do outro lado do corredor, algumas criadas chamaram-me, dizendo que aquela era a porta errada, que devia ir pela porta número cinco. Uma delas, mais velha, saiu do grupo e foi espreitar pelo buraco da fechadura. «Oh, está lá a Menina Madalena», disse, acrescentando: «vai demorar muito, Menina? A Miss está à espera.» 
 
Margery Withers
 
(tradução de António Araújo)
 
 

 

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