Com a causa irremediavelmente
perdida – Portugal já tinha uma Constituição e já tinha um Presidente
constitucional –, não havia qualquer razão de ser para qualquer tipo de
conspiração, o que quer dizer que ao General Spínola e aos que com ele tínhamos
lutado durante meses pelo estabelecimento de um regime democrático em Portugal
nada mais nos restava fazer senão aceitar com hombridade essa realidade e
proceder sem quaisquer delongas à dissolução formal do MDLP (Movimento
Democrático de Libertação de Portugal).
Isso não quer de forma alguma
dizer que todos estivessem satisfeitos com essa Constituição e com esse Presidente.
Alguns havia, entre os conspiradores, que preconizavam a prossecução da luta
até ao momento em que em Portugal desaparecessem os últimos vestígios da
herança comunista e gonçalvista. Um dos membros do Movimento, por exemplo,
advogava a expulsão de todos os comunistas do território nacional português,
dizendo que, enquanto não se fizesse isso, eles seriam como que um cancro que
continuaria a roer silenciosamente, mas efectivamente, as células vivas do
organismo da nação (alguns militares, para mostrarem aos doutores e professores
que não eram de todo alheios aos florilégios estilísticos, recorriam de longe
em longe às figuras de retórica).
Mas como o General Spínola –
que de maneira nenhuma morria de amores pelos comunistas, em virtude das
rasteiras que lhe tinham pregado e pelas calúnias com que o tinham mimoseado –
era muito menos radical nesse aspecto, foi posta de parte, pela esmagadora
maioria dos membros do MDLP, essa medida tão drástica e tão antidemocrática e
impossível de realizar. E um belo dia o MDLP foi na realidade dissolvido, sem a
mínima cerimónia, pompa e circunstância, como é óbvio. O General Spínola, na
presença de um notário público e de dois ou três dos poucos fiéis amigos que
com ele permaneceram até ao fim, e que testemunharam o acto, limitou-se a apor
a sua assinatura a um simples documento e foi tudo: O MDLP foi morto e sepultado,
sem quaisquer honras fúnebres.
Uma vez dissolvido o
movimento, a única preocupação do General Spínola era regressar a Portugal, pois já não
podia aguentar mais com o exílio nem com o Brasil – de que estava saturado até
à medula dos ossos – nem com uma vida privada das mínimas comodidades e,
sobretudo, da família e dos amigos.
É que, ao contrário do que
acontecera por ocasião da primeira vez que apareceu no Brasil, logo após o 11
de Março, cada dia que passava eram menos os amigos que o visitavam, a que já
se aludiu noutra parte. E esse número era diminuto porque todos os bons
observadores se tinham dado conta de que politicamente o General estava
acabado. E a verdade é que a alguns dos que da primeira vez que ele chegou ao
Brasil lhe puseram casa e dinheiro à disposição não lhes interessava um Spínola
sem um futuro político. Eles tinham resolvido investir nele da mesma maneira
que se investe numa empresa ou na bolsa: com a esperança de vir um dia, não só
a reaver todo o capital investido, mas – e sobretudo – a auferir juros chorudos
e dividendos gordos.
Esse foi o caso, por exemplo,
do ex-governador do Estado de Guanabara, Carlos Lacerda. Pensando que um dia o
General Spínola voltaria a assumir o
poder em Portugal, tudo lhe facilitou quando o General Spínola chegou ao Brasil
em Março de 75, logo após a tentativa de golpe de estado, que dá pelo nome de
11 de Março, e de cuja explicação o General fugia como o diabo da cruz. Mas,
como político que era, e dos de tarimba (refiro-me, naturalmente, a Carlos
Lacerda), quando se apercebeu, meses mais tarde, de que as possibilidades de o
General Spínola vir a ter novamente qualquer poder político em Portugal eram
praticamente nulas, fez os cálculos à vida – e ao dinheiro que com ele gastara –
e começou a mandar-lhe contas a casa.
E a verdade é que o General
Spínola, que por esse tempo estava literalmente a viver de esmolas e da
caridade de uns escassos amigos desinteressados e dotados de um espírito de
altruísmo verdadeiramente exemplar, não tinha a mínima possibilidade de pagar
coisa nenhuma a quem quer que fosse (não nos esqueçamos, para exemplo, que as
suas contas bancárias lhe tinham sido congeladas e as pensões sonegadas).
Felizmente, suspeito que o
General Spínola tenha vindo a certificar-se desse indigno procedimento por
parte do ex-governador do Estado de Guanabara, Carlos Lacerda, e de outros
"credores" sem escrúpulos. A humilhação, junta a tantas outras a que
se tinha – e o tinham – sujeitado, teria sido demasiado pesada. Valeu-lhe, por
essa ocasião, a admirável dedicação de
um homem bom e digno: o Dr. Luís de Oliveira Dias, a viver também ele no
exílio. Embora os seus recursos financeiros fossem inexistentes – também ele se
defendia financeiramente como podia e Deus era servido –, todos os dias passava
pelo apartamento do General Spínola para lhe tratar da correspondência e para
lhe dar todo o apoio moral.
Foi com esse procedimento que
o Dr. Oliveira Dias terá impedido que as contas mandadas por Carlos Lacerda e
outros mais chegassem alguma vez às mãos do General. E foi nessas condições
financeiras que eu encontrei o General Spínola quando, em companhia do Manuel
Fonseca, Vice-Cônsul de Portugal no Estado de Connecticut, lhe fomos propor se
ele aceitava candidatar-se à presidência da República Portuguesa, como já foi
dito noutra prosa.
Como, por essa ocasião, já
ele se tinha dado conta de que a única coisa que ainda podia fazer era
escrever, para dar testemunho a Portugal e ao mundo de como se tinha engendrado
a Revolução de Abril, e do que ele tinha feito pelo estabelecimento de um
regime democrático em Portugal, primeiro como presidente, logo após o 25 de
Abril, e depois no exílio, como resistente, pediu-me que lhe desse uma pequena
assistência na elaboração de um livro, intitulado Ao Serviço de Portugal, como também consta de outra entrada do meu Diário.
Encontrando-me nessa altura
no Brasil, a gozar de uma licença sabática de uns oito meses, aceitei dar esse
pequeno auxílio ao General, sem qualquer outro motivo que não fosse a minha
modesta contribuição para ajudar, indirectamente que fosse, a dar a conhecer
aos interessados a verdade sobre Portugal, como se refere noutra parte.
É que eu tinha vindo a
acompanhar o movimento revolucionário em Portugal desde a primeira hora.
Delirara com a eclosão do golpe de estado. Acreditara tão sincera e
profundamente nessa revolução, que não só a celebrara tocando A Portuguesa
ao piano, ao despertar com essa notícia na manhã do 25 de Abril, que a
elogiara publicamente através da rádio, da televisão e da imprensa, tanto nos Estados
Unidos como em Portugal, mas chegara ao ponto de levar cravos, pelo dia vinte e
tal de Maio de 1974, a um parente meu que estava preso no Forte de Caxias por
razões políticas (longe estava eu de imaginar que esse meu parente, para além
de ter corrido o risco de vir a ser fuzilado, como mais de uma vez lhe foi dito
pelos carcereiros, quando alta noite lhe abanavam as grades da cela, acabaria
por estar preso quase durante vinte e oito meses, tendo percorrido quatro
prisões: o Forte de Caxias, a Penitenciária de Lisboa, o Forte-Prisão de
Peniche e a Prisão de Monsanto).
Mas voltemos ao desejo que o
General Spínola tinha de regressar a Portugal e às diligências feitas nesse
sentido por alguns amigos dele, entre os quais sobressaem o Capitão Ramos e o
Cirurgião, modéstia à parte, pelo que a mim me toca.
Sabendo embora que sobre ele
pendia um mandato de captura, se fosse apanhado em território português, mesmo
assim o General Spínola estava disposto a arriscar a prisão e a ser julgado em
tribunal, se fosse necessário, tão profundo era o seu desejo de se ver de
regresso a Portugal e tal era o seu desejo de dar a conhecer ao povo português,
se necessário em julgamento público, a verdade dos factos sobre os misteriosos,
nefários e maquiavélicos meandros do processo revolucionário.
E foi perante esta
determinação inabalável do General que o Cap. Ramos e o Cirurgião começaram a
sondar os interessados, os influentes e os poderosos no cenário da política
portuguesa de então, no sentido de preparar o terreno para o regresso do
General Spínola à Pátria.
A primeira pessoa a ser contactada
sobre esse desejo do General Spínola
foi, naturalmente, o homem que então ocupava o posto de Presidente da República
Portuguesa, por eleição constitucional: o General Ramalho Eanes. Que lhe
déssemos algum tempo para estudar o assunto – propôs-nos ele, por um
intermediário.
E passados dias, um assessor
militar do Presidente Ramalho Eanes veio dizer-nos estas palavras mais ou menos
textuais:
− O Sr. General Ramalho Eanes
pediu-me para que lhes dissesse que o seu profundo respeito e a sua amizade pelo
Sr. General Spínola não podiam ser maiores, mas que acha que, para bem do país
e do Sr. General Spínola, é melhor que ele não regresse a Portugal neste futuro
próximo, que o momento ainda não é oportuno nem propício.
Dizer que ficámos desiludidos
e literalmente espantados com essa resposta é desnecessário. É que uma das
coisas que o General Spínola repetia com frequência era que tinha sido ele quem
descobrira Eanes. Que este, que nada tivera a ver com o 25 de Abril, se vira
inesperadamente convidado pelo General Spínola para ocupar os cargos-chave de
director de programas e presidente do conselho de administração da RTP, o que
lhe permitiu ser ele, com a patente de Tenente-Coronel, o coordenador das
operações militares, por ocasião do golpe militar organizado pela facção
marxista-comunista do MFA, a 25 de Novembro de 1975. Tendo sido neutralizada
essa intentona, Ramalho Eanes, já com a patente de General, viu-se alcandorado
ao posto de Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas de Portugal, e em
1976 eleito, por sufrágio universal, para a magistratura suprema da Nação.
Perante esta atitude por
parte do Presidente da República Portuguesa, foi imediatamente contactado o
Ministro da Defesa Nacional da altura: o Coronel Firmino Miguel.
Da parte do senhor Ministro
da Defesa Nacional obtivemos uma resposta idêntica à do General Ramalho Eanes,
acompanhada dos mesmos protestos de respeito e de amizade pelo homem que ele
dizia considerar como um pai.
Não vale a pena falar da
nossa desilusão e da nossa mágoa, à vista de tanta hipocrisia e de tanta cobardia
e de tanto cinismo.
E o Capitão Ramos e o
Cirurgião resolveram dar conta de todas estas diligências a um homem que eles
sabiam ser incapaz de actos de vileza semelhantes aos do General Ramalho Eanes
e do Coronel Firmino Miguel. Refiro-me ao então Major Casanova Ferreira.
Posto à margem da Revolução
pela camarilha de Melo Antunes, Otelo Saraiva de Carvalho, Vítor Alves e
companhia, só lhe faltava ter sido posto na prisão ou forçado ao exílio, como
outros dos que participaram na preparação do 25 de Abril.
Uma tarde de sábado ou de
domingo, se bem me recordo, o Cap. Ramos e o Cirurgião foram encontrar-se com o
Major Casanova Ferreira numa casa de campo dele em Colares ou em Sintra. Depois
de lhe termos falado das agruras do exílio do General Spínola e do seu ardente
desejo de regressar a Portugal e das diligências feitas nesse sentido e das
respostas de Ramalho Eanes e de Firmino Miguel, o Major Casanova Ferreira
limitou-se a fazer-nos esta pergunta retórica:
− O meu General quer
regressar a Portugal? Pois regressa a Portugal e ai de quem se atrever a
tocar-lhe num cabelo que seja. Digam-me o dia e a hora em que ele chega ao
aeroporto de Lisboa, que eu e uns amigos leais lá estaremos à espera dele para
impedir que alguém se atreva a levantar um dedo sequer para fazer mal ao nosso
General (era a segunda vez, desde o 25 de Abril, que me encontrava com um
Português de lei, à Sá de Miranda; a primeira tinha sido o meu encontro com
Francisco de Sá Carneiro).
Com esta promessa do Major
Casanova Ferreira, o Capitão Ramos e o Cirurgião prepararam o regresso do
General Spínola a Portugal. E o General Spínola voltou e foi levado
imediatamente para Caxias, para uma visita da praxe e rápida, como se previa,
pois em menos de vinte e quatro horas foi autorizado a ir para sua casa, em
Lisboa.
E foi então que o Cirurgião
pôde constatar mais uma vez os sintomas de uma grande praga de hipocrisia e de
cobardia que grassava imparável no Portugal pós-abrilista.
Aconteceu assim. Logo após o
regresso de Caxias e após a entrada no seu apartamento, em Lisboa, era visível
a vigilância de que o General era objecto por parte dos comunistas. Mal
disfarçados, vigiavam as ruas que levavam à residência do General Spínola e tomavam nota de todas as visitas.
Cientes dessas medidas de
vigilância ou receando que esse fosse o caso, ao princípio os chamados amigos
do General Spínola evitavam a sua presença como se evita o contacto com um
leproso.
O Capitão Ramos – que era de
uma coragem a toda a prova e que era o mais fiel dos amigos do General – e o
Cirurgião – que era também amigo fiel e que nada temia e nada devia –,
resolveram sujeitar-se a ser vistos e fotografados pelos espias, mas foram
visitar o General a sua casa e passar com ele umas horas, pelo cair da tarde do
primeiro dia que passou nela, após um longo e penoso exílio e a breve passagem
pelo Forte-Prisão de Caxias.
E nesse dia foram as únicas
visitas que o General teve. No dia seguinte, muito timidamente embora, começaram
a aparecer outras visitas, tais como os Generais irmãos Silvino e Silvério
Marques e o General Bettencourt Rodrigues e vários oficiais da Academia
Militar.
Foi então que conheci mais
uma faceta da personalidade do General Spínola: a falácia. Para justificar o seu
regresso a Portugal, a cada um que entrava dizia infalivelmente estas palavras,
ainda antes de receber o abraço ou o aperto de mão de boas-vindas:
− A política é uma porca: não quero mais nada
com ela. Agora vou escrever para a história e para a posteridade.
Se eu ainda duvidasse da
eterna verdade que se esconde por detrás da fábula da raposa e das uvas de Esopo,
tinha ali uma prova cabal, insofismável, para a refutar, sem agravo nem apelo.
António Cirurgião
:-(
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