sábado, 22 de outubro de 2016

Lisboa, 1975.

 
 
 
Gérard de Villiers (1929-2013)
 
 
 
 
         Autor dos romances de espionagem da série «SAS», Gérard de Villiers  (1929-2013) dedicou um deles ao Portugal revolucionário, Les Sorciers du Tage (1975), publicado entre nós em 2010, sob o título A Revolução dos Cravos de Sangue, com tradução de Sérgio Gonçalves. Se o levarmos a sério, como acontece aqui, o livro merece, de facto, ser vergastado; mas, como também observou um comentador anónimo, quando falámos pela primeira vez desta obra, aqui, «a História também se faz de chachadas destas e das suas intenções». Um pormenor curioso: apesar do tremendo sucesso das suas dezenas e dezenas de romances, Gérard de Villiers morreu endividado, praticamente na miséria.

 
 

 
Lisboa, 1975.
Fotografia de A. Moura



 
Um velho Boeing 707 com as cores da TAP, que se preparava para aterrar no aeroporto de Lisboa, passou a rugir sobre a auto-estrada que segue em direcção ao Norte do País. Mais refugiados vindos de Angola. Estavam a chegar quinhentos por dia, e mais de 250 mil brancos ainda esperavam em Luanda que os retirassem de lá. Joe Walker, com as suas máquinas a tiracolo, acabou de urinar e voltou, sem se apressar, pelo caminho poeirento que ia dar à auto-estrada, ao longo dos muros brancos do quartel do Regimento de Artilharia Ligeira nº 1. Com as suas jeans cheias de remendos e rotas atrás, os seus óculos escuros quadrados de lentes espessas como lupas, o rosto avermelhado e o cabelo ralo no topo do seu 1,95m de altura, Joe Walker não passava despercebido. Mas nada nele evocava o capitalismo, o que era essencial em Portugal, em Maio de 1975, sobretudo no local em que se encontrava.
O Ralis, como lhe chamavam, encontrava-se praticamente a em estado de insurreição desde o golpe de 25 de Abril de 1974. «Sovietes» de simples soldados haviam substituído os oficiais e ninguém sabia quem dava ordens. Os que se aventuravam a ir ao interior do quartel nunca sabiam o que os aguardava.
Joe Walker passou em frente à velha motocicleta que a Associated Press pusera à sua disposição, verificou se estava bem encostada, e meteu um filme num dos bolsos.
Inquieto, consultou o relógio. Afonso e Guadalupe tinham passado pelo portão branco três quartos de hora antes. Com passo indolente, aproximou-se da multidão que se encontrava à entrada do quartel. Várias centenas de jovens, rapazes e raparigas, brandiam bandeiras vermelhas ornamentadas com a foice e o martelo do MRPP, um dos partidos de esquerda mais virulentos do novo Portugal, berrando slogans antifascistas a intervalos regulares.
Manifestações de apoio ao Ralis. Na verdade, pressão directa sobre os artilheiros para os levar a agir sobre o Conselho da Revolução, considerado muito à direita apesar de já ter nacionalizado todos os bancos, amordaçado a Imprensa e feito fugir 60 mil ricos para o Brasil. Mas, para alguns, isso não era suficiente. Publicamente, o general Otelo Saraiva de Carvalho queixara-se de que não havia bastantes fuzilamentos.
Joe Walker avançou prudentemente por entre os grupos e aproximou-se do portão. Dois soldados com fardas camufladas guardavam-no, com G3 automáticas ao ombro. Barbudos, sujos, colares de pérolas multicores ao pescoço, brincavam com os manifestantes. Pelo canto do olho, Joe Walker inspeccionou a parada do quartel vazia. Os manifestantes aguardavam o regresso de uma delegação que se deslocara ao interior com os seus votos de vitória. Perto da entrada, alguns soldados estavam indolentemente estendidos sobre uma auto-metralhadora, arrumada no meio da parada. Um deles tocava guitarra. Nenhum sinal de Guadalupe e de Afonso. Joe Walker cuspiu para o chão. Era o que os portugueses faziam todo o dia. Sentia-se inquieto. Reinava em Lisboa uma atmosfera pesada.
Todo o bairro comercial, entre o Rossio e o mar, estava sempre assim sujo, quente, cheio de movimento, mas as paredes desapareciam por baixo dos cartazes vermelhos e das bandeiras – anunciando a passagem à autogestão de determinada empresa ou proclamando o apoio de diversos partidos à luta antifascista. Os cartazes do MFA – Movimento das Forças Armadas – eram omnipresentes, representando um soldado e um camponês com a legenda: «MFA É O POVO. O POVO É O MFA». Já ninguém prestava atenção, há muito tempo, aos militares de camuflado que deambulavam pelas ruas esmagadas pelo calor e vazias de turistas. Estes tinham fugido da revolução. Na sua maior parte, os hotéis estavam desertos. Os preços tinham aumentado 35 % em seis meses, ao passo que o salário mínimo fora fixado em apenas quatro mil escudos. Apenas o Sol continuava a aquecer as velhas pedras do Castelo de São Jorge, que domina as ruelas tortuosas de Alfama. Ao lado de Joe Walker, uma rapariga oleosa como uma azeitona levantou o punho e berrou: «Abaixo o fascismo!» Depois, mais calma, sorriu para o fotógrafo. Joe correspondeu ao sorriso, interrogando-se sobre o que faria a multidão se soubesse que um agente da CIA assistia aos seus folguedos…
Joe Walker era fotógrafo freelancer e informador em part-time da Central Intelligence Agency. Metendo-se no meio das manifestações, colhia aqui e ali pequenas informações que lhe eram mesquinhamente pagas, ou então servia de contacto ou agente de ligação. Tal como naquele dia. Alguns daqueles que informavam os americanos não queriam contactar os seus agentes na embaixada.
Em Portugal, a CIA começara por se deixar surpreender. Depois, quis recuperar o que perdera. Todo o pessoal da embaixada fora substituído. O funcionário mais antigo estava no seu posto há onze meses… Steve Thomas, o novo chefe da «Company», queria aproveitar todas as oportunidades. Bastara uma má surpresa: a «Company» soubera do golpe do 25 de Abril pelos jornais.
 
Gérard de Villiers
 
 

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