terça-feira, 18 de outubro de 2016

Portugal, 1936.


 
 
Conchita Cintrón (1922-2009)
 


 
         Em 1936, Concepción «Conchita» Cintrón, também conhecida por «A Deusa de Ouro», veio pela primeira vez a Portugal. Nascida em Antofagasta, em 1922, morreu em Lisboa em 2009. A sua carreira como cavaleira tauromáquica e a sua ligação a Portugal são sobejamente conhecidas. Quando chegou a Portugal, vinda da Galiza, pela mão do seu mestre, Ruy Zarco da Câmara, encontrava-se no início de um percurso que a iria celebrizar mundialmente. Mais tarde, dedicar-se-ia à criação de cães, devendo-se a ela a popularidade de que os cães-de-água portugueses gozam nos Estados Unidos. Escreveu Recuerdos, editados em Madrid pela Espasa-Calpe, em 1962. A passagem em que descreve a sua entrada em Portugal constitui um interessante apontamento, tingido de romantismo, de uma certa visão idílica da vida no «Minho pitoresco». E, do mesmo passo, dá-nos um retrato curiosíssimo do que era o quotidiano de um fidalgo excêntrico de Braga, a idolátrica. Em 1995, Conchita Cintrón foi agraciada com a Medalha de Mérito Cultural. Morreu em Lisboa, em Fevereiro de 2009, de paragem cardíaca.
 
 
 
 

Em Vigo, esperava-nos Ruy da Câmara e, entrando pelo norte de Portugal, seguimos viagem até à bela «Casa dos Biscainhos», em Braga, que pertencia a um primo do Ruy, o visconde de Paço Nespereira.
         Aquela paragem foi a minha introdução ao Velho Mundo. A entrada da antiquíssima casa fica por baixo de um enorme arco de pedra. Seguindo por essa entrada, chega-se directamente às cavalariças e aos seculares jardins e fontes. O automóvel parou junto ao arco, frente aos degraus maciços que nos levariam ao majestoso portão da casa. Havia humidade no ar e musgo nas pedras. O candeeiro que iluminava o pátio empedrado irradiava uma tímida luz amarela. Pensei no criado que nos iria franquear a entrada; teria, seguramente, como em todos os palácios, uma grande peruca branca.
         A porta abriu-se e deparámo-nos com um ser incrível. Uma mulher magríssima, de idade incerta e cabelos lisos. Vestia calças de montar e uma jaqueta de toureiro. Cobria a cabeça com um velhíssimo tricórnio de veludo preto e levava ao pescoço um lenço vermelho, atado à cow-boy.
         - Sou a menina Alipin - informou-nos, sorrindo, e mostrando encantada as suas gengivas, de onde apenas floresciam dois dentes enormes.
         - Coisas do Gaspar… - disse Ruy com naturalidade, fazendo-nos entrar.
         Depois de atravessarmos um hall cujas janelas davam para um pátio interior coberto de trepadeiras, entrámos numa grande sala. Veio ao nosso encontro um homem extremamente parecido ao rei Jorge V de Inglaterra; a sua barba e o seu bigode, e até o seu modo de pentear-se, faziam lembrar o rei. Vestia um fato cinzento-escuro ao estilo de 1900. O casaco, algo curto, e as calças justas numa s botas afiladas.
         - Não vejo necessidade de actualizar-me em matéria de vestuário - explicou-me mais tarde.
         Ruy e Gaspar abraçaram-se efusivamente e, em seguida, fizeram as apresentações.
         - Vamos ver a minha mãe - disse-nos o dono da casa. - Espero que tenhas gostado de conhecer a menina Alipin - acrescentou, virando-se para o Ruy. - Como deves ter reparado, é uma lindíssima rapariga toureira que descobri aqui em Braga.
         Disse isto com um ar tão sério que eu não soube o que haveria de pensar.
         Numa sala extraordinária, cheia de retratos, quadros e obras de arte, estava a viscondessa-mãe, uma senhora extremamente distinta.
         (…)
         Nini, a lindíssima mulher de Gaspar, chegou um pouco depois, acompanhada dos seus filhos. Conversou-se até à hora do jantar e então voltámos a encontrar, sentada à mesa da sala, a menina Alipin. A viscondessa-mãe saudou-a como se fosse uma duquesa, e todos ocupámos os nossos lugares. Duvidava que a «Menina» fosse muito normal, mas estava tão encantada com aquele papel que fui incapaz de ter pena dela.
         Era incrível a facilidade com que, durante o jantar, a conversa passava do sério ao cómico. Gaspar e Ruy tanto falavam de política como, logo de seguida, brincavam com a menina Alipin. Esta, com as suas respostas que a todos faziam rir, lembrava-me o pouco que sabia dos bobos das cortes.
         O horário da vida de Gaspar era exactamente o oposto ao de quase todas as outras pessoas. Acordava às três da tarde, almoçava às cinco, tomava chá às oito e jantava à uma da manhã. De seguida, e até às três ou quatro da madrugada, mantinha animadas tertúlias com alguns amigos de inclinações boémias, após o que lia ou escrevia até às sete da manhã, altura em que dava por terminado o seu dia. A minha mãe deliciou-se com este horário mas, como eu me deitava cedo, Gaspar autorizou-me a que levasse pela manhã o seu cavalo, o qual tinha, segundo ele, pavor a automóveis, já que o seu dono só saía do picadeiro de madrugada.
         Braga estava envolta num manto de neblina matinal quando fui despertada por um coro de vozes femininas. Acerquei-me da janela e vi que as mulheres trabalhavam nas sementeiras e que o seu cantar vinha dos campos através da bruma que rodeava a casa. A paisagem tinha algo de belo e de misterioso.
         Cavalgando pelas ruas empedradas da cidade antiga, já o sol reluzia, cruzei-me com camponeses que se dirigiam ao mercado envergando, na maioria dos casos, os coloridos trajes típicos da região. Olhavam para mim ao passar, curiosos, saudando-me com um amável bom dia, enquanto os homens se descobriam, cortesmente. Alguns deles conduziam carroças puxadas por juntas de bois cuja enorme cornadura e os seus grandes olhos lhes davam um aspecto de animais de Walt Disney. Os jugos, que sobressaíam meio metro por cima do dorso dos bois, eram de madeira talhada, com adornos pintados à mão nas mais variadas cores,
         Sobre os montes próximos giravam lentamente as velas de moinhos velhos, e os campos estavam tão bem lavrados que pareciam um quadro cuidadosamente restaurado, enquanto as vacas melancólicas faziam andar as noras. Algumas jovens enchiam os seus cântaros em fontes de pedra que mais pareciam relíquias de tempos passados. Não era difícil imaginar por ali Santo António de Lisboa, que, segundo a lenda, há mais de setecentos anos arranjou cântaros partidos frente a uma fonte semelhante. Entre graças e risos, as jovens carregavam os cântaros ao ombro ou levando-os à cabeça, como coroas que encimavam as suas tranças loiras. Tudo aquilo deu-me uma sensação de paz, a paz que Deus ofereceu aos homens de boa vontade.
         Depois de almoço, metemo-nos no automóvel rumo a Lisboa. Gaspar acompanhou-nos com grande sacrifício, pois, segundo disse, teve de levantar-se de madrugada para estar pronto às três da tarde. A viagem foi amenizada pela sua conversa divertida e pela sua personalidade invulgar, abrilhantada por uma ponta de loucura e por uma cultura incomum.
         - Não me apertem, que não sou um gato! ­- protestava todas as vezes que entrava no carro.
         Nunca percebi porque é que ele achava que estar apertado era próprio dos gatos. Coisas de Gaspar, como a fúria que teve quando uma antiga criada da casa, ao limpar uma cómoda, mudou o lugar de alguns retratos.
         - Não pode ser! - gritava, fora de si - Os retratos dos vivos devem estar deste lado e os dos mortos daquele. Onde se viu juntar os vivos e os mortos?
         Em Lisboa, onde Ruy me levou aos picadeiros, conheci um dos grandes cavaleiros daquela época; o senhor José Manuel da Cunha Menezes. Trabalhava na altura dois cavalos fantásticos: um, castanho; outro, chamado Baudelaire, ruano. Este magnífico animal era capaz até de galopar para trás, em três patas ou de lado. Era perfeito na alta escola. Um dia, vendo-me tão absorta a observar o seu engenho, o senhor José Manuel tirou os arreios ao seu cavalo, e prosseguiu os exercícios. Maravilhada, perguntei-lhe há quando tempo adestrava cavalos:
         - Vinte anos - respondeu.
         O que me esperava!
         Nesse picadeiro montavam os melhores cavaleiros tauromáquicos da época; Simão da Veiga e João Núncio. Foram ambos muito simpáticos, a ponto de me oferecerem os seus cavalos. No dia da minha apresentação, montei com Núncio, e justamente com um cavalo que me havia emprestado, o Santander. Se encontrar a fotografia, hei de colocá-las nestas memórias, porque, como se vê na imagem, Núncio estava mais preocupado em ver como se comportava o meu cavalo do que com a sua própria actuação.
         (…)
         Durante a nossa estadia, que durou dois meses, conhecemos toda a família de Assunção e de Ruy, que nos receberam divinalmente. No tempo que tínhamos livre, eu praticava com os cavalos, a minha mãe não perdia um museu e à avozinha não escapava um restaurante. Só as ouvi falar de quadros e de paisagens, de peixe e de mariscos. Já que não falavam de tentaderos, como os de Núncio ou do duque de Palmela, onde fui tourear, preferia ficar no hotel. Comia um frango assado no quarto, brincava no banho com um barquinho com motor e só pensava em regressar ao picadeiro no dia seguinte. Conhecendo-me bem, a minha mãe teve paciência para me ensinar algumas canções, que ela acompanhava à guitarra, Tive, assim, um bom entretenimento para as horas de solidão.
         (…)
Em Lisboa, naquele ano de 1936, conheci no hotel vários refugiados da guerra espanhola. Encontrava-os no salão, enquanto aguardavam notícias da rádio de Espanha. Já era suficientemente crescida para compreender o tremendo drama daquelas pessoas. Na verdade, era impressionante vê-los, tombados nas cadeiras, as mãos crispadas de angústia, os olhos tensos e semicerrados, enquanto escutavam uma voz que, vinda da sua terra, lhes dava notícias que afectavam, definitivamente, as vidas dos seus pais, filhos e irmãos.
 
Conchita Cintrón
 
(tradução de António Araújo)
 
 
 
 

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