Em 1936, Concepción «Conchita» Cintrón,
também conhecida por «A Deusa de Ouro», veio pela primeira vez a Portugal.
Nascida em Antofagasta, em 1922, morreu em Lisboa em 2009. A sua carreira como
cavaleira tauromáquica e a sua ligação a Portugal são sobejamente conhecidas. Quando
chegou a Portugal, vinda da Galiza, pela mão do seu mestre, Ruy Zarco da
Câmara, encontrava-se no início de um percurso que a iria celebrizar
mundialmente. Mais tarde, dedicar-se-ia à criação de cães, devendo-se a ela a
popularidade de que os cães-de-água portugueses gozam nos Estados Unidos.
Escreveu Recuerdos, editados em
Madrid pela Espasa-Calpe, em 1962. A passagem em que descreve a sua entrada em
Portugal constitui um interessante apontamento, tingido de romantismo, de uma
certa visão idílica da vida no «Minho pitoresco». E, do mesmo passo, dá-nos um
retrato curiosíssimo do que era o quotidiano de um fidalgo excêntrico de Braga,
a idolátrica. Em 1995, Conchita Cintrón foi agraciada com a Medalha de Mérito
Cultural. Morreu em Lisboa, em Fevereiro de 2009, de paragem cardíaca.
Em
Vigo, esperava-nos Ruy da Câmara e, entrando pelo norte de Portugal, seguimos
viagem até à bela «Casa dos Biscainhos», em Braga, que pertencia a um primo do
Ruy, o visconde de Paço Nespereira.
Aquela paragem foi a minha introdução
ao Velho Mundo. A entrada da antiquíssima casa fica por baixo de um enorme arco
de pedra. Seguindo por essa entrada, chega-se directamente às cavalariças e aos
seculares jardins e fontes. O automóvel parou junto ao arco, frente aos degraus
maciços que nos levariam ao majestoso portão da casa. Havia humidade no ar e
musgo nas pedras. O candeeiro que iluminava o pátio empedrado irradiava uma
tímida luz amarela. Pensei no criado que nos iria franquear a entrada; teria,
seguramente, como em todos os palácios, uma grande peruca branca.
A porta abriu-se e deparámo-nos com um ser
incrível. Uma mulher magríssima, de idade incerta e cabelos lisos. Vestia
calças de montar e uma jaqueta de toureiro. Cobria a cabeça com um velhíssimo
tricórnio de veludo preto e levava ao pescoço um lenço vermelho, atado à cow-boy.
- Sou a menina Alipin
-
informou-nos, sorrindo, e mostrando encantada as suas gengivas, de onde apenas
floresciam dois dentes enormes.
- Coisas do Gaspar…
-
disse Ruy com naturalidade, fazendo-nos entrar.
Depois de atravessarmos um hall cujas janelas davam para um pátio
interior coberto de trepadeiras, entrámos numa grande sala. Veio ao nosso
encontro um homem extremamente parecido ao rei Jorge V de Inglaterra; a sua
barba e o seu bigode, e até o seu modo de pentear-se, faziam lembrar o rei.
Vestia um fato cinzento-escuro ao estilo de 1900. O casaco, algo curto, e as
calças justas numa s botas afiladas.
- Não vejo
necessidade de actualizar-me em matéria de vestuário -
explicou-me mais tarde.
Ruy e Gaspar abraçaram-se efusivamente
e, em seguida, fizeram as apresentações.
- Vamos ver a minha
mãe -
disse-nos o dono da casa. - Espero que tenhas gostado de conhecer a
menina Alipin -
acrescentou, virando-se para o Ruy. - Como deves ter
reparado, é uma lindíssima rapariga toureira que descobri aqui em Braga.
Disse isto com um ar tão sério que eu
não soube o que haveria de pensar.
Numa sala extraordinária, cheia de
retratos, quadros e obras de arte, estava a viscondessa-mãe, uma senhora
extremamente distinta.
(…)
Nini, a lindíssima mulher de Gaspar,
chegou um pouco depois, acompanhada dos seus filhos. Conversou-se até à hora do
jantar e então voltámos a encontrar, sentada à mesa da sala, a menina Alipin. A
viscondessa-mãe saudou-a como se fosse uma duquesa, e todos ocupámos os nossos
lugares. Duvidava que a «Menina» fosse muito normal, mas estava tão encantada
com aquele papel que fui incapaz de ter pena dela.
Era incrível a facilidade com que,
durante o jantar, a conversa passava do sério ao cómico. Gaspar e Ruy tanto
falavam de política como, logo de seguida, brincavam com a menina Alipin. Esta,
com as suas respostas que a todos faziam rir, lembrava-me o pouco que sabia dos
bobos das cortes.
O horário da vida de Gaspar era
exactamente o oposto ao de quase todas as outras pessoas. Acordava às três da
tarde, almoçava às cinco, tomava chá às oito e jantava à uma da manhã. De
seguida, e até às três ou quatro da madrugada, mantinha animadas tertúlias com
alguns amigos de inclinações boémias, após o que lia ou escrevia até às sete da
manhã, altura em que dava por terminado o seu dia. A minha mãe deliciou-se com
este horário mas, como eu me deitava cedo, Gaspar autorizou-me a que levasse
pela manhã o seu cavalo, o qual tinha, segundo ele, pavor a automóveis, já que
o seu dono só saía do picadeiro de madrugada.
Braga estava envolta num manto de
neblina matinal quando fui despertada por um coro de vozes femininas. Acerquei-me
da janela e vi que as mulheres trabalhavam nas sementeiras e que o seu cantar
vinha dos campos através da bruma que rodeava a casa. A paisagem tinha algo de
belo e de misterioso.
Cavalgando pelas ruas empedradas da
cidade antiga, já o sol reluzia, cruzei-me com camponeses que se dirigiam ao
mercado envergando, na maioria dos casos, os coloridos trajes típicos da
região. Olhavam para mim ao passar, curiosos, saudando-me com um amável bom dia, enquanto os homens se
descobriam, cortesmente. Alguns deles conduziam carroças puxadas por juntas de
bois cuja enorme cornadura e os seus grandes olhos lhes davam um aspecto de
animais de Walt Disney. Os jugos, que sobressaíam meio metro por cima do dorso
dos bois, eram de madeira talhada, com adornos pintados à mão nas mais variadas
cores,
Sobre os montes próximos giravam
lentamente as velas de moinhos velhos, e os campos estavam tão bem lavrados que
pareciam um quadro cuidadosamente restaurado, enquanto as vacas melancólicas
faziam andar as noras. Algumas jovens enchiam os seus cântaros em fontes de
pedra que mais pareciam relíquias de tempos passados. Não era difícil imaginar por
ali Santo António de Lisboa, que, segundo a lenda, há mais de setecentos anos
arranjou cântaros partidos frente a uma fonte semelhante. Entre graças e risos,
as jovens carregavam os cântaros ao ombro ou levando-os à cabeça, como coroas
que encimavam as suas tranças loiras. Tudo aquilo deu-me uma sensação de paz, a
paz que Deus ofereceu aos homens de boa vontade.
Depois de almoço, metemo-nos no
automóvel rumo a Lisboa. Gaspar acompanhou-nos com grande sacrifício, pois,
segundo disse, teve de levantar-se de madrugada para estar pronto às três da
tarde. A viagem foi amenizada pela sua conversa divertida e pela sua
personalidade invulgar, abrilhantada por uma ponta de loucura e por uma cultura
incomum.
- Não me apertem,
que não sou um gato! - protestava todas as vezes que entrava no
carro.
Nunca percebi porque é que ele achava
que estar apertado era próprio dos gatos. Coisas de Gaspar, como a fúria que
teve quando uma antiga criada da casa, ao limpar uma cómoda, mudou o lugar de
alguns retratos.
- Não pode ser! -
gritava, fora de si - Os retratos dos vivos devem estar deste
lado e os dos mortos daquele. Onde se viu juntar os vivos e os mortos?
Em Lisboa, onde Ruy me levou aos
picadeiros, conheci um dos grandes cavaleiros daquela época; o senhor José Manuel
da Cunha Menezes. Trabalhava na altura dois cavalos fantásticos: um, castanho;
outro, chamado Baudelaire, ruano.
Este magnífico animal era capaz até de galopar para trás, em três patas ou de
lado. Era perfeito na alta escola. Um dia, vendo-me tão absorta a observar o
seu engenho, o senhor José Manuel tirou os arreios ao seu cavalo, e prosseguiu
os exercícios. Maravilhada, perguntei-lhe há quando tempo adestrava cavalos:
- Vinte anos -
respondeu.
O que me esperava!
Nesse picadeiro montavam os melhores
cavaleiros tauromáquicos da época; Simão da Veiga e João Núncio. Foram ambos
muito simpáticos, a ponto de me oferecerem os seus cavalos. No dia da minha
apresentação, montei com Núncio, e justamente com um cavalo que me havia
emprestado, o Santander. Se encontrar
a fotografia, hei de colocá-las nestas memórias, porque, como se vê na imagem,
Núncio estava mais preocupado em ver como se comportava o meu cavalo do que com
a sua própria actuação.
(…)
Durante a nossa estadia, que durou dois
meses, conhecemos toda a família de Assunção e de Ruy, que nos receberam
divinalmente. No tempo que tínhamos livre, eu praticava com os cavalos, a minha
mãe não perdia um museu e à avozinha não escapava um restaurante. Só as ouvi
falar de quadros e de paisagens, de peixe e de mariscos. Já que não falavam de tentaderos, como os de Núncio ou do
duque de Palmela, onde fui tourear, preferia ficar no hotel. Comia um frango
assado no quarto, brincava no banho com um barquinho com motor e só pensava em
regressar ao picadeiro no dia seguinte. Conhecendo-me bem, a minha mãe teve
paciência para me ensinar algumas canções, que ela acompanhava à guitarra,
Tive, assim, um bom entretenimento para as horas de solidão.
(…)
Em
Lisboa, naquele ano de 1936, conheci no hotel vários refugiados da guerra
espanhola. Encontrava-os no salão, enquanto aguardavam notícias da rádio de
Espanha. Já era suficientemente crescida para compreender o tremendo drama
daquelas pessoas. Na verdade, era impressionante vê-los, tombados nas cadeiras,
as mãos crispadas de angústia, os olhos tensos e semicerrados, enquanto
escutavam uma voz que, vinda da sua terra, lhes dava notícias que afectavam,
definitivamente, as vidas dos seus pais, filhos e irmãos.
Conchita
Cintrón
(tradução
de António Araújo)
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