Joseph Kessel (1898-1979)
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Os
Amantes do Tejo, de Joseph Kessel (1898-1979), não é certamente um grande
romance. Publicado originalmente em 1954, perde-se na frondosa – e calamitosa –
produção literária do seu autor. Entre nós, foi publicado em 1974 pelo Círculo
de Leitores, com tradução de Antónia Vieira. Algumas passagens são ilustrativas
dos clichés e lugares-comuns que marcam esta e diversas outras abordagens de
estrangeiros a Portugal. O livro, claro, é do género sentimental-arrebatador e
a acção decorre em 1945, razão pela qual se intitulou este post «Lisboa, 1945».
O S.S.
Lydia, paquete que servia a linha Southampton, Rio de Janeiro, Buenos Aires,
tinha ancorado no Tejo por algumas horas. O sol-poente punha cores e sombras
nas duas margens, na água do largo rio, na cidade de relevo bastante desigual
por estar assente sobre colinas.
Todos os passageiros do Lydia desembarcaram. A maior parte,
somente em escala, deveriam abandonar Lisboa ao amanhecer. Eram os mais apressados.
Uma multidão de
carregadores-descarregadores, vendedores de recordações, guias e motoristas de
táxis chamavam-nos em altos gritos, com grandes sorrisos e gestos. Entre estes
homens de pequena estatura, corpo e rosto de uma mobilidade extrema, muito morenos,
cheios de movimento e amabilidade, Antoine, alto, de ombros largos, maxilares
pesados e olhar imóvel, fumava em silêncio, apoiado à capota do seu táxi.
Nunca ia à caça de clientes. Não se
interessava muito por dinheiro e possuía um grande sentido de dignidade. Nem
por isso tinha menos trabalho, especialmente de estrangeiros. O seu aspecto
calmo atraía-os, bem como a etiqueta que colara no vidro, onde se lia: English spoken.
Quando a primeira onda de passageiros
sem bagagem chegou ao cais e à cidade, os que não iam para além de Lisboa
começaram a desembarcar.
Um oficial do navio aproxima-se de Antoine
e pergunta-lhe:
- Sabe realmente
inglês, amigo?
- Não sou um amigo,
e quando prometo cumpro - diz Antoine.
O oficial era muito novo. Corou um
pouco e julgou-se obrigado a explicar:
- É para uma
passageira que nunca saiu do nosso país… Compreende.
- Compreendo muito
bem -
diz Antoine.
Agarrou numa mala transportada por dois
carregadores e, com um golpe de rins, colocou-a sobre o tejadilho do táxi. Num
dos lados da mala estava pintado o nome de Kathleen Dinver.
Chega um carregador com duas malas
pequenas, seguido de uma mulher jovem. Os cabelos eram de um castanho quente,
acobreado, e a sua pele de uma brancura doce e mate. Tinha um ar tímido, quase
desajeitado. Parecia impaciente por deixar o oficial do Lydia, que a rodeava de atenções.
- Um bom hotel no
centro, se faz favor - disse a jovem a Antoine.
Levou-a para o Avenida.
Ao passar pela Praça do Comércio,
Antoine conduzia muito lentamente. Os estrangeiros gostavam sempre do oval
admirável da praça, das fachadas e da escadaria imperial que, num movimento
insensível, descia até ao Tejo e unia assim Lisboa ao rio, e este ao oceano, no
qual os antigos navegadores portugueses tinham lançado as suas caravelas.
Antoine deitou um olhar por cima do
ombro. A jovem estava de olhos fechados. Tomou pela Rua Augusta e dirigiu-se
para o Rossio. Esta praça era célebre pelo seu movimento e pelos seus cafés. Antoine
abrandou de novo a marcha, olhou uma vez mais por cima do ombro, A jovem tinha
os olhos fixos no tapete do táxi.
Alguns instantes mais tarde, desceu
junto do Hotel Avenida e disse timidamente:
- Ainda não possuo
dinheiro português… Não tinha pensado…
Deu, desajeitadamente, uma nota de
libra a Antoine.
- É muito -
disse este.
A jovem pareceu não compreender. O
porteiro descarregou a bagagem e ela entrou precipitadamente no átrio do hotel.
(…)
A esta hora, em frente à estação do
elevador que levava à parte alta da cidade. Os pequenos vendedores de jornais
recebiam das tipografias as últimas edições da noite. Pés descalços, com o fato
esfarrapado, sujos, sobreexcitados, morenos e de dentes brilhantes,
assemelham-se tanto uns aos outros como as vespas num enxame.
Contudo, em deles sobressaía dos
restantes. Embora da mesma idade, era mais alto, mais forte que os seus
camaradas, e tinha os cabelos sedosos e os olhos azuis. Chamava-se José, mas os
rapazes alcunhavam-no de «o Ianque», porque o seu pai era um empregado americano
da Fruit Line.
Tal como os outros, estendia
freneticamente as mãos para o homem que distribuía as folhas ainda húmidas. Gritava
até ficar sem voz, suplicava com gestos, com o rosto, com o olhar. Dizia-se que
a vida destes rapazes dependia de alguns segundos. Quando um deles obtinha o
seu maço de jornais, precipitava-se pela rua gritando o título com um clamor
triunfal. José, o Ianque, foi servido entre os primeiros, pois era o mais
forte, e desapareceu em direcção ao Rossio. Atrás dele, ficava uma esteira como
um grito de guerra.
(…)
Maria tinha uma casa numa das colinas
de Lisboa, num bairro bastante pobre, mas dos mais antigos e belos, a qual
havia sido comprada para ela pelo americano da Fruit Line, quando aceitara um
emprego melhor em Melburne. Isto acontecera no fim da guerra. José tinha agora
onze anos. Maria, trinta.
Era baixa e gorda. Quando o pai de José
a deixara, começara, para se consolar, a comer muitas guloseimas. O desgosto
durou menos que a sua inclinação para os doces, que lhe ficou para toda a vida.
Maria gostava da sua gordura, que era
bem suportada pelas mulheres da sua condição e do seu povo, E, além disso,
quando se ria, o que sucedia muito facilmente, Maria sentia agitarem-se todas
as pregas do seu corpo, e assim esse prazer era multiplicado até ao infinito.
Aconteceu isso quando Maria, da sua
cozinha, viu Antoine e José aproximarem-se da casa pela ruela inclinada ladeada
de velhos muros. A amizade entre eles espantava-a e encantava-a.
«Um homem que viu tanto do mundo e que
gosta tanto da companhia do meu filho», dizia Maria para consigo enquanto ria em
silêncio, com todo o seu corpo, desde o duplo queixo até às coxas gordas.
Para o jantar havia peixe pescado no
Tejo, pimentos recheados e um enorme bolo de mel e amêndoas. Antoine era o
único que bebia um vinho forte, um pouco adocicado.
Comia-se sem falar muito. Todos tinham
fome. Mas quando o café veio para a mesa, Maria e José não se calaram mais. Só
se viam à noite…
Joseph
Kessel
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