quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Lisboa, 1945.

 
 
Joseph Kessel (1898-1979)
 
 
 
         Os Amantes do Tejo, de Joseph Kessel (1898-1979), não é certamente um grande romance. Publicado originalmente em 1954, perde-se na frondosa – e calamitosa – produção literária do seu autor. Entre nós, foi publicado em 1974 pelo Círculo de Leitores, com tradução de Antónia Vieira. Algumas passagens são ilustrativas dos clichés e lugares-comuns que marcam esta e diversas outras abordagens de estrangeiros a Portugal. O livro, claro, é do género sentimental-arrebatador e a acção decorre em 1945, razão pela qual se intitulou este post «Lisboa, 1945».
 

 
 
         O S.S. Lydia, paquete que servia a linha Southampton, Rio de Janeiro, Buenos Aires, tinha ancorado no Tejo por algumas horas. O sol-poente punha cores e sombras nas duas margens, na água do largo rio, na cidade de relevo bastante desigual por estar assente sobre colinas.
         Todos os passageiros do Lydia desembarcaram. A maior parte, somente em escala, deveriam abandonar Lisboa ao amanhecer. Eram os mais apressados.
         Uma multidão de carregadores-descarregadores, vendedores de recordações, guias e motoristas de táxis chamavam-nos em altos gritos, com grandes sorrisos e gestos. Entre estes homens de pequena estatura, corpo e rosto  de uma mobilidade extrema, muito morenos, cheios de movimento e amabilidade, Antoine, alto, de ombros largos, maxilares pesados e olhar imóvel, fumava em silêncio, apoiado à capota do seu táxi.
         Nunca ia à caça de clientes. Não se interessava muito por dinheiro e possuía um grande sentido de dignidade. Nem por isso tinha menos trabalho, especialmente de estrangeiros. O seu aspecto calmo atraía-os, bem como a etiqueta que colara no vidro, onde se lia: English spoken.
         Quando a primeira onda de passageiros sem bagagem chegou ao cais e à cidade, os que não iam para além de Lisboa começaram a desembarcar.
         Um oficial do navio aproxima-se de Antoine e pergunta-lhe:
         - Sabe realmente inglês, amigo?
         - Não sou um amigo, e quando prometo cumpro - diz Antoine.
         O oficial era muito novo. Corou um pouco e julgou-se obrigado a explicar:
         - É para uma passageira que nunca saiu do nosso país… Compreende.
         - Compreendo muito bem - diz Antoine.
         Agarrou numa mala transportada por dois carregadores e, com um golpe de rins, colocou-a sobre o tejadilho do táxi. Num dos lados da mala estava pintado o nome de Kathleen Dinver.
         Chega um carregador com duas malas pequenas, seguido de uma mulher jovem. Os cabelos eram de um castanho quente, acobreado, e a sua pele de uma brancura doce e mate. Tinha um ar tímido, quase desajeitado. Parecia impaciente por deixar o oficial do Lydia, que a rodeava de atenções.
         - Um bom hotel no centro, se faz favor - disse a jovem a Antoine.
         Levou-a para o Avenida.
         Ao passar pela Praça do Comércio, Antoine conduzia muito lentamente. Os estrangeiros gostavam sempre do oval admirável da praça, das fachadas e da escadaria imperial que, num movimento insensível, descia até ao Tejo e unia assim Lisboa ao rio, e este ao oceano, no qual os antigos navegadores portugueses tinham lançado as suas caravelas.
         Antoine deitou um olhar por cima do ombro. A jovem estava de olhos fechados. Tomou pela Rua Augusta e dirigiu-se para o Rossio. Esta praça era célebre pelo seu movimento e pelos seus cafés. Antoine abrandou de novo a marcha, olhou uma vez mais por cima do ombro, A jovem tinha os olhos fixos no tapete do táxi.
         Alguns instantes mais tarde, desceu junto do Hotel Avenida e disse timidamente:
         - Ainda não possuo dinheiro português… Não tinha pensado…
         Deu, desajeitadamente, uma nota de libra a Antoine.
         - É muito - disse este.
         A jovem pareceu não compreender. O porteiro descarregou a bagagem e ela entrou precipitadamente no átrio do hotel.
         (…)
         A esta hora, em frente à estação do elevador que levava à parte alta da cidade. Os pequenos vendedores de jornais recebiam das tipografias as últimas edições da noite. Pés descalços, com o fato esfarrapado, sujos, sobreexcitados, morenos e de dentes brilhantes, assemelham-se tanto uns aos outros como as vespas num enxame.
         Contudo, em deles sobressaía dos restantes. Embora da mesma idade, era mais alto, mais forte que os seus camaradas, e tinha os cabelos sedosos e os olhos azuis. Chamava-se José, mas os rapazes alcunhavam-no de «o Ianque», porque o seu pai era um empregado americano da Fruit Line.
         Tal como os outros, estendia freneticamente as mãos para o homem que distribuía as folhas ainda húmidas. Gritava até ficar sem voz, suplicava com gestos, com o rosto, com o olhar. Dizia-se que a vida destes rapazes dependia de alguns segundos. Quando um deles obtinha o seu maço de jornais, precipitava-se pela rua gritando o título com um clamor triunfal. José, o Ianque, foi servido entre os primeiros, pois era o mais forte, e desapareceu em direcção ao Rossio. Atrás dele, ficava uma esteira como um grito de guerra.
         (…)
         Maria tinha uma casa numa das colinas de Lisboa, num bairro bastante pobre, mas dos mais antigos e belos, a qual havia sido comprada para ela pelo americano da Fruit Line, quando aceitara um emprego melhor em Melburne. Isto acontecera no fim da guerra. José tinha agora onze anos. Maria, trinta.
         Era baixa e gorda. Quando o pai de José a deixara, começara, para se consolar, a comer muitas guloseimas. O desgosto durou menos que a sua inclinação para os doces, que lhe ficou para toda a vida.
         Maria gostava da sua gordura, que era bem suportada pelas mulheres da sua condição e do seu povo, E, além disso, quando se ria, o que sucedia muito facilmente, Maria sentia agitarem-se todas as pregas do seu corpo, e assim esse prazer era multiplicado até ao infinito.
         Aconteceu isso quando Maria, da sua cozinha, viu Antoine e José aproximarem-se da casa pela ruela inclinada ladeada de velhos muros. A amizade entre eles espantava-a e encantava-a.
         «Um homem que viu tanto do mundo e que gosta tanto da companhia do meu filho», dizia Maria para consigo enquanto ria em silêncio, com todo o seu corpo, desde o duplo queixo até às coxas gordas.
         Para o jantar havia peixe pescado no Tejo, pimentos recheados e um enorme bolo de mel e amêndoas. Antoine era o único que bebia um vinho forte, um pouco adocicado.
         Comia-se sem falar muito. Todos tinham fome. Mas quando o café veio para a mesa, Maria e José não se calaram mais. Só se viam à noite…
 
 
Joseph Kessel
 

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