Já aqui se falou de John Gibbons, da sua
estadia na aldeia transmontana de Coleja e do seu livro I Gathered No Moss/Não Criei Musgo, uma das grandes obras – das maiores!
– escritas por um estrangeiro sobre o Portugal do século XX. A obra, reeditada
pela Câmara Municipal de Carrazeda de Ansiães, não é fácil de encontrar, pelo
que bem justificaria uma difusão mais ampla. Escolheu-se um trecho, entre
muitos, da edição portuguesa, com tradução de Maria João Pacheco de Amorim.
Agora que começo a conhecer a povoação
onde estou um poucochinho melhor, vejo que é perfeitamente civilizada. Civilizada
a seu modo, não ao modo de Londres. Pode levar-me um tempo incrível a trepar ou
a descer esta montanha, mas qualquer criança daqui consegue andar sobre estas pedras
e seixos com a mesma facilidade com que eu atravesso uma rua de cidade.
Provavelmente, algumas destas pessoas ter-se-iam perdido em Londres. Será
possível imaginar um português sem saber uma palavra de inglês, digamos, qual
ilha de Eros encalhada no meio de Picadilly Circus? Um português já entrado na
idade, de vistas curtas e particularmente estúpido, sempre desajustado dos sinais
do polícia-sinaleiro, um português demasiado tímido para tentar a sua sorte
fazendo perguntas a quem vai a passar? Todas estas coisas nos parecem tão
simples, que nem nos detemos a pensar nelas, ,as imaginemos que ele escrevia
para o seu país, contando as impressões sobre Londres: cidade bastante pequena,
de alguns quilómetros quadrados, cidadezinha monótona, cidadezinha ridícula da
qual se torna impossível sair até às duas da manhã, altura em que as retretes
mais próximas estão estranhamente fechadas! Não poderia ser qualquer coisa
parecida com isto? Estou quase na posição daquele pobre português, só que aqui
ninguém seria tão tolo, e eu continuo a sê-lo. Ou, pelo menos, fui-o durante o
primeiro ou segundo dias.
Compreendo agora as coisas um pouco
melhor e vejo que a minha aldeia tem muito mais contactos com o exterior do que
a princípio supunha. Foi a minha própria máquina de escrever que me fez ter
consciência disso. Certamente é a primeira máquina
jamais vista nestas paragens e há sempre pessoas que gostariam de vê-la em
acção. Antes de eu partir, em Fevereiro, até cheguei a ter visitantes de um
lugarejo vizinho, que ficava alguns quilómetros acima na serra; depois de
conduzidos cerimoniosamente até ao meu quarto, pediam-me que lhes escrevesse os
nomes à máquina. Logo na primeira semana, na verdade, já eu tinha escrito à
máquina metade dos nomes da gente da minha aldeia. Provavelmente com erros de
ortografia, porque a maioria dos visitantes não sabia mais do que dizer-me os
seus nomes, que eram extremamente difíceis de apanhar em inglês. Depois, vieram
também outras pessoas daqui que sabiam escrever, para ver se eu lhes podia
escrever à máquina os envelopes, para parentes nos Estados Unidos, no Brasil ou
na África Portuguesa. Creio que faziam isso por graça, para mostrar aos seus
primos e parentes que o ancestral lugarejo já se gabava de ter uma máquina. Se
eu usasse a parte vermelha da fita, então ainda ficavam mais contentes! Alguns
dos endereços deixaram-me embasbacado. Isto pode ser um lugarejo longínquo e
primitivo, mas parecia ter-se espraiado pelas regiões mais sofisticadas do
globo. Por exemplo, na Califórnia não há nada de especialmente primitivo, e o
que atraiu os portugueses para os Estados Unidos foi possivelmente o clima.
(…)
Durmo lindamente e os meus sonhos são
melhores, apesar de ir para a cama muito mais cedo do que em Londres. Nove e
meia ou à volta disso é a hora a que nos recolhemos e, na noite passada, uma
hora depois, ainda eu estava de pé diante da janela aberta, em simples
contemplação. Havia uma lua enormíssima, sem comparação possível com a inglesa,
demasiado brilhante para ser verdadeira e cujo luar inefável iluminava uma
enorme extensão de serranias. Nada se movia ao longe. Nada mais que a lua e os
montes. Só aqui, mesmo por baixo de mim, havia uma aldeiazinha. Não se vê nada
que se assemelhe a uma rua, e as casinhas caiadas de branco trepam pelas costas
umas das outras formando os ângulos mais esquisitos, embora cada uma delas
esteja cuidadosamente construída de modo a assentar solidamente no seu rochedo
privativo. Apesar de ser pequenina, a aldeia arranja maneira de parecer ainda
mais pequena do que é na realidade. Não tem subúrbios! As casas amontoam-se
desordenadamente como se quisessem proteger-se mutuamente da imensidão do mundo
criado… À luz do luar, dá a sensação de ser irreal. Como um sonho. Para a
direita e lá para baixo no vale, a meus pés, fica um pombal em ruínas que surge
a esta luz com a aparência de uma torre medieval. As arestas das leiras em
socalcos bem poderiam ser os baluartes do castelo de um gigante encantado por
sortilégio. A única luz da aldeia é a da lua. O camponês dorme profundamente e
não se ouve sequer o choramingar de uma criança. Nada mais existe, para além
das montanhas e do imenso silêncio. Silêncio total! Não corre uma aragem e dá a
impressão que o mundo foi transformado numa eternidade envolta em prata. Não se
ouve à distância o ruído de qualquer automóvel numa estrada, porque, muito simplesmente,
não há estradas. Lá em baixo, no vale, não se ouvem apitos; também a estação
está adormecida. O silêncio apodera-se de mim. Talvez por eu ser londrino,
dirão. Não estou muito certo disso.
Estive naquela aldeiazinha desde o fim
de Outubro até ao começo de Fevereiro e foi-me dado ver uma quantidade de
coisas. A vida – pois não nasceu então o pequeno Abílio? –, a morte, tragédia,
comédia e farsa, tudo isso vi antes de a deixar. Algumas coisas compreendi-as
bastante bem, e a muitas outras acabei por habituar-me. Mas nunca àquelas
montanhas e àquele silêncio. Esse milagre impressionou-me tanto ao chegar como
ao partir.
John
Gibbons
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