terça-feira, 25 de outubro de 2016

Douro, 1939.

 

 
 
 

         aqui se falou de John Gibbons, da sua estadia na aldeia transmontana de Coleja e do seu livro I Gathered No Moss/Não Criei Musgo, uma das grandes obras – das maiores! – escritas por um estrangeiro sobre o Portugal do século XX. A obra, reeditada pela Câmara Municipal de Carrazeda de Ansiães, não é fácil de encontrar, pelo que bem justificaria uma difusão mais ampla. Escolheu-se um trecho, entre muitos, da edição portuguesa, com tradução de Maria João Pacheco de Amorim.  
 
 
Imagem de Não Criei Musgo
 
         Agora que começo a conhecer a povoação onde estou um poucochinho melhor, vejo que é perfeitamente civilizada. Civilizada a seu modo, não ao modo de Londres. Pode levar-me um tempo incrível a trepar ou a descer esta montanha, mas qualquer criança daqui consegue andar sobre estas pedras e seixos com a mesma facilidade com que eu atravesso uma rua de cidade. Provavelmente, algumas destas pessoas ter-se-iam perdido em Londres. Será possível imaginar um português sem saber uma palavra de inglês, digamos, qual ilha de Eros encalhada no meio de Picadilly Circus? Um português já entrado na idade, de vistas curtas e particularmente estúpido, sempre desajustado dos sinais do polícia-sinaleiro, um português demasiado tímido para tentar a sua sorte fazendo perguntas a quem vai a passar? Todas estas coisas nos parecem tão simples, que nem nos detemos a pensar nelas, ,as imaginemos que ele escrevia para o seu país, contando as impressões sobre Londres: cidade bastante pequena, de alguns quilómetros quadrados, cidadezinha monótona, cidadezinha ridícula da qual se torna impossível sair até às duas da manhã, altura em que as retretes mais próximas estão estranhamente fechadas! Não poderia ser qualquer coisa parecida com isto? Estou quase na posição daquele pobre português, só que aqui ninguém seria tão tolo, e eu continuo a sê-lo. Ou, pelo menos, fui-o durante o primeiro ou segundo dias.
         Compreendo agora as coisas um pouco melhor e vejo que a minha aldeia tem muito mais contactos com o exterior do que a princípio supunha. Foi a minha própria máquina de escrever que me fez ter consciência disso. Certamente é a primeira máquina jamais vista nestas paragens e há sempre pessoas que gostariam de vê-la em acção. Antes de eu partir, em Fevereiro, até cheguei a ter visitantes de um lugarejo vizinho, que ficava alguns quilómetros acima na serra; depois de conduzidos cerimoniosamente até ao meu quarto, pediam-me que lhes escrevesse os nomes à máquina. Logo na primeira semana, na verdade, já eu tinha escrito à máquina metade dos nomes da gente da minha aldeia. Provavelmente com erros de ortografia, porque a maioria dos visitantes não sabia mais do que dizer-me os seus nomes, que eram extremamente difíceis de apanhar em inglês. Depois, vieram também outras pessoas daqui que sabiam escrever, para ver se eu lhes podia escrever à máquina os envelopes, para parentes nos Estados Unidos, no Brasil ou na África Portuguesa. Creio que faziam isso por graça, para mostrar aos seus primos e parentes que o ancestral lugarejo já se gabava de ter uma máquina. Se eu usasse a parte vermelha da fita, então ainda ficavam mais contentes! Alguns dos endereços deixaram-me embasbacado. Isto pode ser um lugarejo longínquo e primitivo, mas parecia ter-se espraiado pelas regiões mais sofisticadas do globo. Por exemplo, na Califórnia não há nada de especialmente primitivo, e o que atraiu os portugueses para os Estados Unidos foi possivelmente o clima.
         (…)
         Durmo lindamente e os meus sonhos são melhores, apesar de ir para a cama muito mais cedo do que em Londres. Nove e meia ou à volta disso é a hora a que nos recolhemos e, na noite passada, uma hora depois, ainda eu estava de pé diante da janela aberta, em simples contemplação. Havia uma lua enormíssima, sem comparação possível com a inglesa, demasiado brilhante para ser verdadeira e cujo luar inefável iluminava uma enorme extensão de serranias. Nada se movia ao longe. Nada mais que a lua e os montes. Só aqui, mesmo por baixo de mim, havia uma aldeiazinha. Não se vê nada que se assemelhe a uma rua, e as casinhas caiadas de branco trepam pelas costas umas das outras formando os ângulos mais esquisitos, embora cada uma delas esteja cuidadosamente construída de modo a assentar solidamente no seu rochedo privativo. Apesar de ser pequenina, a aldeia arranja maneira de parecer ainda mais pequena do que é na realidade. Não tem subúrbios! As casas amontoam-se desordenadamente como se quisessem proteger-se mutuamente da imensidão do mundo criado… À luz do luar, dá a sensação de ser irreal. Como um sonho. Para a direita e lá para baixo no vale, a meus pés, fica um pombal em ruínas que surge a esta luz com a aparência de uma torre medieval. As arestas das leiras em socalcos bem poderiam ser os baluartes do castelo de um gigante encantado por sortilégio. A única luz da aldeia é a da lua. O camponês dorme profundamente e não se ouve sequer o choramingar de uma criança. Nada mais existe, para além das montanhas e do imenso silêncio. Silêncio total! Não corre uma aragem e dá a impressão que o mundo foi transformado numa eternidade envolta em prata. Não se ouve à distância o ruído de qualquer automóvel numa estrada, porque, muito simplesmente, não há estradas. Lá em baixo, no vale, não se ouvem apitos; também a estação está adormecida. O silêncio apodera-se de mim. Talvez por eu ser londrino, dirão. Não estou muito certo disso.
         Estive naquela aldeiazinha desde o fim de Outubro até ao começo de Fevereiro e foi-me dado ver uma quantidade de coisas. A vida – pois não nasceu então o pequeno Abílio? –, a morte, tragédia, comédia e farsa, tudo isso vi antes de a deixar. Algumas coisas compreendi-as bastante bem, e a muitas outras acabei por habituar-me. Mas nunca àquelas montanhas e àquele silêncio. Esse milagre impressionou-me tanto ao chegar como ao partir.  
 
John Gibbons
 

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