Em Junho de 1942, o fotógrafo e artista britânico
Cecil Beaton (1904-1980) passou uma temporada em Lisboa, onde fotografou a
cidade e, sobretudo, as suas elites (à excepção de Salazar). Vinha de Lagos, em África, tendo
desembarcado num hidroavião, como conta nos seus diários (The Years Between. Diaries, 1939-1944), aqui parcialmente
traduzidos e transcritos, na parte relativa a Portugal. A sua faceta de esteta
e amante das artes fica bem patente nestas páginas, onde são frequentes as
referências a pormenores arquitectónicos ou a mestres da pintura. A dado passo,
Beaton refere-se ao «aspecto Rip van Winkle» de Lisboa, numa alusão à
personagem do conto homónimo de Washington Irving;
e, noutro momento, alude à famosa família Sitwell,
sendo estas duas referências, porventura, as únicas que carecem de uma nota
complementar que facilite a compreensão de um texto traduzido sem preocupações
de rigor e fidedignidade. A passagem de Beaton por Lisboa é sobejamente
conhecida, tendo já merecido até uma exposição, cuja crítica de Alexandre Pomar
pode ser lida aqui.
Marcello Caetano, fotografado por Cecil Beaton
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Quando, finalmente, sobrevoámos a orla
costeira montanhosa e descemos até à baía azul de Lisboa, a porta do nosso
hotel flutuante abriu-se para um cenário ameno e soalheiro. Diante de nós,
pequenas bandeiras agitavam-se ao vento e as ondas azul-turquesa desfaziam-se
em espuma branca, como num quadro de Tissot.
De súbito, sentimo-nos de regresso à
atmosfera anterior à guerra, ao tempo das férias passadas em Espanha ou no Sul
de França.
Saberiam alguma coisa da minha visita?
Não, o adido de imprensa não sabia de nada. Mas dois jovens da embaixada, Stewart
e Herbert, acompanharam-me com entusiasmo e empenho, e telefonaram para vários
organismos públicos procurando saber se havia por lá algum trabalho à minha
espera. Sim! O Ministério do Ar tinha
procurado indagar da minha chegada, mas as investigações subsequentes nada
revelaram. Tive a sensação de que talvez me encontrasse aqui por engano.
Stewart era de opinião de que me deveria ir embora, uma vez que nada tinha para
fazer em Portugal. Herbert, em contrapartida, afirmou que o melhor seria
contactar o Ministério do Ar, pois seria péssima ideia regressar a casa para
depois ser imediatamente chamado de novo a Lisboa. Stewart sorriu e marcou-me
um hotel, fazendo questão de me levar pessoalmente até lá.
Não admira que tivesse sorrido, pois o
Hotel Aviz revelou ser um fenómeno. Assemelhando-se a uma mansão de um
milionário vitoriano, era decorado com mobiliário de mogno ricamente trabalhado,
estatuária medieval, azulejos portugueses, ferros forjados do século XVIII,
enormes carpetes espanholas e terrinas incrustadas de prata, impropriamente
cheias de flores horríveis. O ambiente era de tal forma opulento e diferente de
tudo o que víamos desde o início da guerra que parecia que o desmesurado
relógio barroco do átrio tinha sido atrasado uns vinte ou mesmo uns quarenta
anos. Tendo perguntado quem estava no quarto ao lado (era uma alemã ou
italiana), Stewart deixou-me ali, para que eu pudesse tomar banho, barbear-me,
vestir roupa lavada e mais apropriada e, enfim, tomar uma refeição.
O almoço era um acontecimento. Numa sala de
jantar estilo Luís XVI, envolta em reflexos rosa, algumas mesas, poucas, eram
ocupadas por um sortido de personagens de antes da guerra, e de várias
nacionalidades. A um canto, de costas para a parede, sentava-se o Senhor
Calouste Gulbenkian, rei do petróleo e do caviar e patrono das artes. Um
silêncio completo dominava a sala, enquanto eram servidas as refeições mais
sumptuosas e extravagantes. Os meus olhos quase saltaram das órbitas quando vi
os carrinhos com as entradas a passarem diante de mim. Só as entradas já eram
um banquete. Não sei como fui capaz de ingerir ainda mais três pratos, mas o certo
é que quase nada comera nas últimas semanas; apesar disso, já não tive espaço
para os morangos gargantuescos.
O meu quarto, com o seu mobiliário cor
de alperce, os abajures forrados de seda na cabeceira da cama, e o marulhar das
palmeiras vindo da varanda, era um oásis. A cela despida, fria e húmida da
messe da RAF em Lagos foi esquecida até tirar o meu fato mais formal da mala;
aí afluiu às minhas narinas o cheiro a mofo, o que me fez recordar a cama e a
almofada onde dormira, pejadas de humidade e fungos.
Como é óbvio, estava feliz por ter sido
obrigado a parar aqui (ainda que continuasse a não saber por que razão!) Deambulei
pela cidade e, saborosamente, saciei o meu apetite de turista. Os encantadores
edifícios setecentistas e os ornatos decorativos rococó representavam algo pelo
qual eu estava faminto desde que a guerra começara.
Muitas fachadas eram pintadas com um
vermelho-coral e um branco fortes, com ornatos em estuque brotando do cimo das
pilastras. Nas balaustradas dos telhados, erguiam-se obeliscos e vasos de
pedra. Por um acaso, passei por algumas praças gloriosas, de mármore branco,
decoradas com arcos ornamentais e estátuas. Admirei jardins com bustos
clássicos que surgiam de pilares completamente cobertos de folhagem. Foi delicioso
sentar-me e gozar o verdor da sombra projectada por um Neptuno que contemplava
a fonte formada com a água saída do cântaro que carregava num dos seus braços.
É espantoso ver as lojas cheias de
produtos alimentícios raros, guloseimas, bebidas alcoólicas, de todas aquelas
coisas que não temos entre nós – meias de seda, relógios, batons. Estou também espantado
com a quantidade de quiosques que vendem diversos jornais e revistas inglesas
(muito mais do que aqueles que conseguimos encontrar em Inglaterra). Folheei um
exemplar da Illustrated London News
para ver se apareciam algumas das minhas fotografias de guerra, mas verifiquei
apenas que na nossa terra os meses vão passando, que toda a gente está a usar
agora roupas diferentes e que a Princesa Isabel cresceu, deixando de ser
criança e tornando-se uma jovem senhora.
No Secretariado, percorri uma pilha de
revistas de propaganda alemã. As suas fotografias de guerra, quer a cores, quer
a preto e branco, são muito mais originais do que as nossas. Não só conhecem a
necessidade de contenção no uso da cor como são muito mais ousados do que nós. Mostram
apenas manchas trágicas – fotografias tiradas numa semiobscuridade, entre fumo,
chuva ou nevoeiro, o que cria um tremendo efeito dramático. Ainda assim, é desconcertante
ver que estas revistas, tão próximas do espírito contemporâneo, continuam a
apelar à abolição da «arte decadente» quando, em simultâneo, o seu espírito e o
seu gosto se mostram muito mais flexíveis do que o nosso.
O aspecto Rip van Winkle de Lisboa tem
as suas desvantagens. Portugal é indubitavelmente o refúgio das «ratazanas» e o
Hotel Aviz é o epicentro dos colaboracionistas, que aqui vêm fazer os seus
negócios. Talvez a cegueira face à situação mundial tenha custado a Portugal a
perda da sua antiga grandeza, sendo este um país que vive actualmente o
crepúsculo da sua existência. Mas, devo reconhecê-lo, talvez estas elucubrações
tortuosas tenham resultado do mero facto de não ter conseguido encontrar um
táxi. Nesta terra de luxos, só falta uma coisa – a gasolina. As ruas estão
quase vazias de trânsito, e uma vez que há racionamento de carvão, tem de se
poupar na electricidade, pelo que até no Hotel Aviz as luzes são desligadas às
10 da noite.
O Ministério da Informação acabou,
finalmente, por mandar um telegrama dizendo estarem interessados em que eu
fotografasse todos os membros do Governo e todas as celebridades locais.
Mandaram uma lista das pessoas a retratar, desde o Presidente a Salazar, desde
almirantes a cardeais. Julgo que isto não vai interessar a ninguém, e
certamente não terá qualquer «importância»; em todo o caso, permitir-me-á fazer
um contraste com as fotografias que tenho tirado.
A organização deste trabalho revelou-se
uma tarefa terrível. No Secretariado, um homem chamado Almeida deveria dar-me
uma licença para utilizar uma câmara (ao que parece, em Lisboa pode-se ser
preso por andar com uma máquina fotográfica, e por vezes passam-se semanas na
cadeia até se conseguir ser libertado). Porém, a primeira dificuldade foi encontrar
o senhor Almeida à sua mesa de trabalho. Devido às políticas de austeridade
impostas pelas reformas de Salazar, com vista a alcançar o equilíbrio
orçamental após anos e anos de caos financeiro, muitos tiveram de fazer grandes
sacrifícios, incluindo os funcionários públicos. Por isso, muitos deles
acumulam funções com outro emprego, pelo que nunca chegam ao serviço antes das
cinco da tarde. Quando, finalmente, o Senhor Almeida apareceu, sentado à sua
secretária, tratou-nos de uma forma histriónica. Rodeado de telefones como se
fosse um agente de Hollywood, tinha longas conversas sempre que recebia uma
chamada. Passava o tempo a marcar números, incessantemente, gritava com a
telefonista, desligava e de imediato voltava a marcar outro número. Enquanto falava
ao telefone, gesticulava selvaticamente, fazendo esgares parecidos aos de um
louco torturado. Tendo-nos deixado ali, a mim e a Herbert, a presenciar aquela
cena durante uma meia hora, Almeida disse que iria chamar três polícias, para
nossa protecção. Oh, como era difícil a sua vida, que tinha de estar a
trabalhar até àquela hora, enquanto a maioria das pessoas já há muito tinha ido
embora, para beber cervejas ou comer gelados nos cafés! Por fim, após a sua
actuação histérica ao telefone ter ido em crescendo, exclamou: «As coisas estão
a ir bem e depressa!» Eu não podia deixar de rir, mas Herbert explicou-me que
era mesmo assim: ter paciência é a primeira coisa a aprender para quem vive em
Portugal, uma vez que o tempo, como sabemos, não existe (nenhum correspondente
de guerra consegue mandar notícias para casa sem que antes passem dez dias de
insistência e obstinação).
Fernanda de Castro, fotografada por Cecil Beaton
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Quando, por fim, me libertei daquilo,
Marcus Cheke apareceu para me mostrar a cidade. Estava livre? Claro, que outra
coisa tinha para fazer senão esperar? O meu regozijo foi tanto maior quanto
este meu companheiro, que escreveu uma obra romanceada sobre o Directoire chamada Papilée, tinha sido uma das mais surpreendentes descobertas
literárias das minhas primeiras leituras. Nenhum inglês conhece tão bem
Portugal como ele; escreveu há pouco uma biografia de Pombal, o grande ditador
do século XVIII. Na verdade, Cheke é, ele próprio, uma personagem do século
XVIII: elusivo, excêntrico, temperamental (o que passa por «artístico»), mas
impregnado de um charme discreto.
Encontrei nele um excelente guia, detentor
de informações fascinantes. Deleita-se com os Portugueses mas considera que os
lisboetas estão contaminados pelos artifícios do mundo moderno. Apesar disso,
continuam a ser pouco sofisticados, ineficientes e acriançados: um dos seus
maiores prazeres é o fogo-de-artifício, a ponto de um aristocrata e toureiro,
cujo apelido de família se destacou durante séculos pela sua coragem, ter como
passatempo visitar duas vezes por semana o jardim zoológico, onde lança
foguetes para a aldeia dos macacos.
Hoje, o nosso táxi, por puro gozo, e
animado por uma fúria que só os taxistas portugueses têm, subiu a toda a brida
pelas íngremes calçadas de paralelepípedos do bairro mourisco, Alfama. Esta é a
parte da cidade que sobreviveu ao catastrófico terramoto de 1755, quando dois
terços de Lisboa desapareceram em apenas quinze minutos. Quando observado de
cima, os telhados do casario assemelham-se a uma manta de retalhos feita de um
tecido grosseiro. Por perto, o mercado de peixe, onde as mulheres, levando à
cabeça enormes canastas, se exaltam e brigam permanentemente, esbofeteando-se
umas às outras com rodovalhos ou lagostas.
O táxi lançou-se depois pelas colinas
abaixo. Correndo em duas rodas, navegava de forma alucinante por curvas
apertadas, em ruas protegidas da precipitação da chuva por delicadas grelhas de
ferro. Depositou-nos à porta da escola equestre do século XVIII, onde se
encontra a maior colecção de coches [do mundo?]. Além dos coches, ficamos
maravilhados pelos uniformes que eram usados nos cortejos pelos cocheiros,
pelos arautos, pelos músicos e pelos criados a pé. Os trajes bordados da
aristocracia eram de uma enorme riqueza, com fios de ouro e prata e botões de
porcelana, mosaico, esmalte e jóias. Até as fivelas dos sapatos parecem
molduras feitas de joalharia. Esta visita a um museu, a primeira desde que a
guerra começara, trouxe-me a memória vívida daqueles dias longínquos em que,
tendo os Sitwells «descoberto» o barroco, passávamos férias na Baviera em sua
companhia.
Será possível descrever o prazer que
sentimos ao visitar o Palácio de Queluz pela primeira vez? Até mesmo Beckford,
nas suas cartas, foi incapaz de fazer justiça a este palácio de Cinderela,
pintado de rosa e verde-pistácio. É mais belo do que tudo quanto existe na
Baviera, com mais liberdade criativa e fantasia de tudo quanto existe em
França. É a apoteose da arquitectura «fondant». Um dos edifícios, com empenas
holandesas e o telhado em dupla mansarda, exibe uma fachada ornamentada com
esfinges, anjos tocando trompetas e varandas rendilhadas. Uma mostra desarmante
de pirotecnia arquitectónica.
Terça-feira,
14 de Julho
A batalha de Alamein permitiu um
período de acalmia durante cinco dias. Conseguimos causar alguns danos nas
linhas inimigas e até fizemos cerca de 2.000 prisioneiros. No entanto, o perigo
continua a ser tão intenso como dantes. A natureza humana permite que nos
habituemos a praticamente tudo. A proximidade do inimigo a Alexandria, que até
há pouco era motivo de alarme, é agora aceite com tranquilidade.
Quarta-feira,
15 de Julho
Acabaram-se as manhãs ociosas.
Finalmente, conseguiu-se obter as autorizações para usar a minha câmara, um
sinal de boa vontade. Uma primeira passagem pelo Gabinete de Imprensa fez-me
adivinhar que iria ter de passar vários dias a adular as pessoas mais
importantes de Lisboa. Homens de Estado,
marquesas vestidas de negro rodeadas de admiradores esvoaçantes, um almirante
octogenário, o cardeal patriarca e outros dignitários da Igreja, os comandantes
do exército, da defesa civil, da Cruz Vermelha, uma poetisa – todas estas
figuras viviam num mundo à parte, só deles, muito distante do modo como
intensamente então se vivia e morria em África.
Num castelo inteiramente renovado no
século XIX, o Presidente Carmona – a quem já chamaram o Botha de Salazar/Smuts
– recebeu-me com a graciosidade do antigamente, apesar de ter dado havia pouco
uma dolorosa piqûre na sua perna.
Nascido na década de 1860, o Presidente Carmona liderou o coup d’État que em 1926 levou à fundação do actual Estado Novo
português, Hoje, após quinze anos como Presidente da República, goza de tanto
prestígio como um soberano regente, tem o exército como uma força unida atrás
de si e é respeitado e amado por todas as classes sociais. O antigo
revolucionário tornou-se um velho grand
seigneur, apresentando-se com o seu modo delicado apesar do desapontamento
óbvio de nenhum de nós ser o coronel que o Secretariado lhe disse que iria
comparecer perante ele. Parecendo uma ilustração de Caran d’Ache com a sua
figura esbelta e aprumada – uma herança dos tempos da tropa –, envergando um
casaco preto e calças listradas, posava como um dândi doutros tempos. A
decoração vitoriana do castelo prestava-se a fotografias maravilhosas, com as
paredes forradas de brocado cor de mostarda, retratos parecendo oleografias, e
um gigantesco relógio de pêndulo colocado sob uma campânula de vidro. Em
algumas das muitas molduras de prata expostas, encontram-se fotografias de uma
senhora que dizem ser a sua antiga cozinheira, com quem se casou recentemente.
Será, porventura, boa cozinheira; não é, seguramente, uma mulher bonita.
A cada dia que passava, mais
personagens: homens idosos em uniformes resplandecentes, aristocratas em
jardins forrados de azulejos azuis e brancos. Mas a cada dia surgiam também
mais reservas por parte de Salazar. No fim, convenci os meus chefes que havia
que pôr termo a este cansativo jogo de esconde-esconde, e autorizaram-me a
regressar a casa sem o líder-Garbo [Garboesque]
no meu portefólio.
Após a minha última sessão fotográfica
(o chefe da Marinha, um almirante com um longo nariz entortado para a esquerda
e cabelo cinzento cortado em franja), deixei cair a minha máquina numa
escadaria de pedra. Este acidente freudiano fez com que me apercebesse da
estúpida autoconfiança, mas também da incrível sorte que tive, ao ter embarcado
para a minha viagem ao Médio Oriente munido apenas de uma câmara. A Rolleiflex,
que me acompanhou incólume, com típica eficiência germânica, através de
tempestades de areia e viagens de jipes aos solavancos, encontrava-se agora
inutilizada, justamente quando eu, do ponto de vista psicológico, devia dar por
terminada esta minha missão.
Aguardo agora a autorização do
Ministério da Informação para poder regressar a casa. As delícias setecentistas
e frívolas desta linda cidade cor de pistácio, e os surpreendentes privilégios
de uma atmosfera pacífica começam a desvanecer-se, sendo agora mais forte o
desejo de regressar a casa. Além disso, não conhecendo naturais do país e sendo
incapaz de falar a sua língua, sinto que abusei em excesso da hospitalidade de
Marcus Cheke e de algumas pessoas da embaixada, onde sinto que começo a ser um
estorvo.
Hoje, em vez de comer sozinho, almocei
no restaurante do hotel com uma jovem castelhana cujos pais tinham ido almoçar
fora. Adoro a companhia de meninas desta idade, absolutamente fascinantes. Esta,
então, era particularmente encantadora, dano um ar de desamparo pungente.
«Oh!», disse ela, «é terrível ter catorze anos!» Não se importava de ter onze e
ansiava por já ter dezanove anos – mas doze, treze, catorze, quinze, dezasseis,
isso era terrível, pois pretendia assumir uma postura adulta sendo incapaz de
disfarçar que era ainda uma criança. Está a escrever as suas memórias. Começam
pelo «êxodo» da Alemanha quando ocorreu a rendição da França.
É uma sensação estranha estar num país
neutral e ouvir em primeira mão histórias dos territórios ocupados. A
rapariguinha falou-me de Paris sob ocupação germânica e do facto de todos
detestarem os boches mas não
expressarem essa animosidade por receio de irem parar à prisão. Quando o seu
pai a levou ao Luna Parque, dois alemães decidiram andar numas cabines que se
moviam no ar como moinhos de vento. O dono da atracção viu aí uma oportunidade para
se divertir e duplicou a velocidade com que a cabine se movia no céu. Uma
multidão de franceses olhou para o céu, morrendo a rir à medida que os alemães
iam subindo cada vez mais alto. No meio da multidão, um jovem soldado alemão
virou-se para uma menina que gritava de alegria. «São muito engraçados, não
são?», perguntou-lhe. A menina ficou calada, parecendo aterrorizada, e fugiu
dali.
Os judeus têm de usar estrelas amarelas
na lapela, que dizem «Eu sou judeu». A rapariga viu uma das suas colegas de
escola usar o distintivo no jardim e ficou tão incomodada que não se atreveu
sequer a falar com ela. «Mas os judeus não estão em pânico?», «Não, estão bem,
são eles que controlam o mercado negro». A minha pequena amiga contou-me também
uma série de mexericos sobre amigos comuns, sobre as suas inclinações
políticas, sobre os efeitos da Ocupação no comércio («Os negócios vão de vento
em popa – os alemães pagam bem!»). «Que dizem os franceses dos raids da RAF sobre França?», «Oh, estão
muito divertidos!», «Não estão em pânico?», «Não, nada disso, julgam que a RAF
apenas irá atingir as fábricas. Ouvem as bombas explodir e só depois é que toca
a sirene de alarme». Rimo-nos juntos com histórias antigermânicas e observámos
com espanto uma festa de oito hunos selvagens que estavam a devorar um almoço
de oito pratos na mesa ao lado da nossa.
Cecil Beaton
(tradução
de António Araújo)
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