Nubar Gulbenkian (1896-1972)
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Prosseguindo
a tradução de um trecho de Pantaraxia,
de Nubar Gulbenkian, iniciado ontem, entra-se agora no período em que Calouste
e a sua família se refugiam em Portugal, em 1942. O livro autobiográfico de Nubar encontra-se publicado entre nós pela Labirinto de Letras, 2015, com tradução de Adriana Barreiros e José António Barreiros, que não foi cotejada com aquela que agora realizei.
Em Setembro de 1942, quando o Irão
entrou na guerra ao lado dos Aliados, os meus pais foram obrigados a abandonar
Vichy e instalaram-se em Portugal. O meu pai pensava então, muito seriamente,
fixar-se na Suíça e fui eu que insisti para que o não fizesse; julgo que as
autoridades portuguesas não tiveram conhecimento desta minha intervenção. O meu
pai conhecia a Suíça, que tinha por um país civilizado e confortável, sendo eu
o único membro da família a conhecer um pouco Portugal, sobre o qual à época se
tinha a impressão de ser no fim do mundo. Disse-lhe que o clima era aí mais
ameno e que os bens materiais eram mais abundantes e que, ao contrário da
Suíça, não era um território fechado: em caso de necessidade, uma fuga para a
América seria muito mais rápida. Sem se aperceber, o ministro suíço em Vichy
ajudou a que levasse a água ao meu moinho. Quando o seu governo lhe solicitou
informações sobre o meu pai, que sondara a possibilidade de se fixar na Suíça,
aquele fez um relatório cheio de reservas: Calouste Gulbenkian, dizia ele, era
um financeiro arménio cujos negócios tinham ramificações internacionais; era,
sem dúvida, um homem rico, mas desconhecia-se ao certo em que consistiam as suas
actividades. A atitude do ministro helvético assemelhava-se à de uma alta
personalidade inglesa que nunca viu a nossa família com bons olhos: os
Gulbenkian eram «muito manhosos», afirmava, pois «o pai está em Vichy e o
pequeno Nubar em Inglaterra; assim, seja qual for o vencedor, sabem que
ganharão sempre». Por muito que isto desiluda algumas pessoas, devo dizer que
as nossas movimentações nunca obedeceram a esse tipo de estratégia.
Quando os meus pais tiveram de abandonar
Vichy, as autoridades francesas foram extremamente corteses e prestáveis. Forneceram-lhe
combustível e colocaram à sua disposição um vagão especial para que
transportasse os seus haveres. Os franceses lamentaram muito o facto de serem
obrigados a tomarem aquelas medidas, impostas pelas circunstâncias,
relativamente a pessoas que residiam no seu país há tanto tempo e eram aí tão
estimadas.
Em Portugal, os meus pais viviam em
hotéis. A minha mãe e a sua dama de companhia instalaram-se no Palácio, no
Estoril, mais calmo do que o centro de Lisboa, ao passo que o meu pai fixou
residência no primeiro andar do lendário Hotel Aviz, que foi posteriormente
demolido mas que na altura era um local fantástico que fazia lembrar um palácio
hollywoodesco. Tratava-se de uma antiga residência particular adaptada a hotel.
Os donos, os irmãos Ruggeroni, naturais de Gibraltar, eram anglófilos até à
medula; durante toda a guerra, recusaram-se a hospedar alemães ou italianos.
Por vezes, isto causava alguns problemas; sendo Portugal um país neutro, essa discriminação
era proibida. No entanto, como o número de quartos era limitado, o chefe de
recepção conseguia facilmente dizer que o hotel estava cheio – o que não
impedia, de vez em quando, que um alemão tentasse forçar a entrada.
O estabelecimento tinha apenas trinta
apartamentos: havia uma casa de banho por quarto e, em regra, todos os quartos
tinham um salão adjacente. A capacidade máxima era de cerca de cinquenta hóspedes
e o pessoal ao serviço correspondia aproximadamente ao dobro da clientela. O
Aviz tinha a marca do luxo, mas de um luxo ostensivo. O átrio, de grandes dimensões,
era coberto por uma carpete de vários centímetros de espessura, onde tínhamos a
sensação de que nos afundávamos. Existia também uma grelha alta, com três
metros, flanqueada por duas águias, que à primeira vista parecia ser de ferro
forjado mas, quando observada de perto, se concluía ser de madeira.
A minha mãe vinha a Lisboa duas ou três
vezes por semana e o meu pai também se deslocava com frequência ao Estoril,
pelo que nos víamos praticamente todos os dias. Havia ainda um sem-número de
recepções importantes onde nos encontrávamos. O meu pai detestava estas
mundanidades, mas quando se tratava de se avistar seja com personalidades
portuguesas, seja com membros da embaixada inglesa ou da embaixada americana, ultrapassava
essa repulsa e lá fazia o seu papel na vida social.
A sua vida não diferia muito da que
fazia anteriormente. Era acordado às oito da manhã, lia o correio, folheava os
jornais, fazia exercícios físicos e tomava o pequeno-almoço. Seguiam-se as
massagens e os exercícios de relaxamento. Ainda que cuidasse da saúde e
seguisse os que lhe ensinava a sua experiência e os conselhos dos melhores
médicos franceses, ingleses e portugueses, não poderia ser considerado um
hipocondríaco. Aliás, recusava-se sequer a admitir a ideia de doença; pelo
contrário, sendo dotado de uma enorme força de vontade, dizia que se sentia sempre
jovem e não tolerava sequer que alguém julgasse que sofria de algum mal […].
Após os exercícios, repousava um pouco e, de seguida, vestia-se e descia à rua
por volta do meio-dia. Era a hora do seu passeio, que geralmente tinha lugar
nos arredores de Lisboa ou, por vezes, no Estoril. Uma vez que o seu motorista
francês não quisera abandonar o seu país, o meu pai achou que o mais simples
seria alugar um automóvel à semana ou ao mês; isto evitava que tivesse de contratar
um motorista e de se preocupar com os problemas de oficina. Pretendia um bom
automóvel, mas que não fosse ostentatório – um Buick de seis lugares, de
preferência a um Rolls ou a um Cadillac. Como era seu hábito, controlava os
gastos de gasolina. Levava sempre no automóvel um pequeno caderno onde anotava
à noite os quilómetros percorridos durante o dia. Não verificava diariamente se
tudo estava correcto, mas o motorista ficava a saber que os gastos poderiam ser
controlados a qualquer momento.
Quando o pai chegou a Lisboa, vinha
acompanhado do seu cozinheiro oriental, dos seus dois criados de quarto e de
Mme. Theis, a sua fiel secretária, que se sentava a seu lado no automóvel.
Sempre que o pai saía, levavam uma cadeira portátil e, após ter caminhado uma
hora, trabalhava ao ar livre com a sua secretária. No entanto, a pouco e pouco
tornou-se cada vez mais difícil encontrar um lugar onde pudessem trabalhar em
tranquilidade. Ao princípio, nunca se recusava a distribuir umas moedas pelas
crianças, mas acabou por ter de estabelecer uma regra: se elas quisessem,
poderiam estar junto dele enquanto trabalhava, desde que não fizessem barulho.
No final, daria a cada um uma moeda, mas, se alguma criança não cumprisse o
prometido, ninguém receberia nada. Os rapazes acabaram por organizar uma polícia
para melhor defenderem os seus interesses.
Com o passar do tempo, o pai começou a
almoçar cada vez mais tarde, a ponto de se sentar à mesa por volta das três da
tarde. Sabendo que este horário seria para nós impraticável, autorizou que eu e
a mãe almoçássemos a uma hora mais normal (cerca da uma da tarde), e depois tomávamos
o café com ele. Tornou-se alvo de curiosidade pela clientela do Aviz, uma vez
que, sendo de baixa estatura, mandou colocar um estrado para a sua mesa, ao
canto da sala das refeições. Mais tarde – e contra o seu desejo –, quando se
tornaram públicos os conflitos que o opunham aos grupos petrolíferos, «Mr.
Gulbenkian do Hotel Aviz» tornou-se um monumento público de interesse
turístico, exactamente como o Mosteiro dos Jerónimos ou a corrida à portuguesa.
Habitualmente, almoçava sozinho ou na companhia da devota Mme. Theis. E, mesmo
quando convidava alguém, não apreciava ter mais do que um conviva para almoço,
os quais eram, nessa altura, pessoas ligadas ao mundo das artes (como John
Walker, conservador da National Gallery of Art, de Washington, ou Kenneth
Clark, que dirigiu a National Gallery de Londres nos últimos tempos da guerra),
experts portugueses ou um ou outro
homem de negócios importante, em trânsito para os Estados Unidos, para a Europa
ocupada ou para o Médio Oriente, e a quem o meu pai sempre chamava para obter informações
sobre o que ia ocorrendo no resto do mundo.
Por maiores que fossem as suas
vantagens, Portugal tinha um grande inconveniente: a língua. A minha mãe nunca
chegou a aprendê-la. Um dia, encontrando-me com ela no Buçaco, uma terra
situada a uns cento e cinquenta quilómetros de Lisboa, conhecida dos
historiadores por ter sido o teatro de uma das mais terríveis batalhas das
guerras peninsulares, passou-se um episódio curioso. O Buçaco tem um
maravilhoso hotel, que é ponto de encontro dos veraneantes.
Nesse dia, a minha mãe tinha convidado
três amigas para tomarem chá na sua suíte. O chá foi servido. Havia alguns pãezinhos,
mas nada de manteiga. A mãe chamou o empregado:
- Buter, disse em inglês. Du beurre, repetiu em francês.
Incompreensão manifesta do empregado.
- Burro, disse a senhora, no que julgava
ser a palavra adequada em português. O homem eclipsou-se. O tempo passava e a
manteiga não chegava. A minha mãe, que começava a enervar-se, chamou de novo o
empregado e repetiu a ordem. O empregado voltou a desaparecer. Ao fim de uma
longa espera, tocou o telefone. Era o porteiro.
- O burro já está cá em baixo, anunciou.
- Não percebo
porque tenho de descer para tomar chá, replicou a mãe, já em cólera. Peço-lhe
que faça subir o burro.
- Mas, senhora,
retorquiu o porteiro, é impossível colocá-lo no elevador, pode fugir.
Só um pouco mais tarde é que a mãe se
apercebeu de que burro não quer dizer
«manteiga» mas «asno»!
[…]
Sempre adorei as minhas viagens a
Lisboa, durante e depois da guerra. Na época em que a cidade ainda não começara
a expandir-se, o campo estava ao alcance da mão; aí, o ar era puro e a vista
que se tinha do alto das colinas que dominam o estuário do Tejo e o mar é
admirável. Gostava também da sociedade extremamente cosmopolita que aí se
encontrava, entre as quais existiam numerosas famílias reais no exílio.
Vivia lá Umberto de Itália, que reinou
apenas algumas semanas; o almirante Horthy, que foi regente da Hungria entre as
duas guerras; o pretendente ao trono de Espanha, Don Juan, e a sua encantadora
família: Don Juan Carlos, o seu filho, um jovem que adorava montar a cavalo,
nadar e pregar partidas a toda a gente (na altura, preparava-se para suceder a
Franco); o seu jovem irmão, Don Alfonsito, que morreu tragicamente num acidente
de caça, e as suas duas irmãs, das quais a mais velha, Doña Pilar, era a
coqueluche de todos.
Havia também Mme. Magda Lupescu, de
ascendência plebeia; casou com o ex-rei da Roménia, Carol, que dela fez uma
princesa, a princesa Helena. Através desse casamento obteve, não importa como,
o título de princesa de Magda de Hohenzollern, mas preferia chamar-se Helena da
Roménia (talvez para melindrar a primeira mulher de Carol, nascida princesa
Helena da Grécia, de quem ele se divorciou?). Conseguiu alcançar este seu
objectivo contraindo casamento quando se julgava que estava às portas da morte.
A cerimónia realizou-se no Brasil. Após a sua melhoria «milagrosa», conseguiu
obter das autoridades brasileiras um autorização de residência não em nome de
Magda de Hohenzollern mas de Helena da Roménia. Munida deste documento,
dirigiu-se à legação da Suécia, então responsável por gerir os assuntos da
Roménia, e pediu um passaporte. Perante este fait accompli, o funcionário não teve outro remédio senão curvar-se
perante ela, sendo assim que obteve um documento oficial redigido em nome da
princesa Helena da Roménia, título a que se agarrou tenazmente desde então. Era
uma mulher muito inteligente e com uma forte presença. A sua conversa era
sempre agradável, pois tinha uma grande experiência de vida – adquirida antes e
depois do casamento – e falava com imenso espírito.
Devo fazer aqui um salto no tempo:
passemos a 1955 para assistir a um dos grandes momentos da vida dos exilados de
Lisboa – a princesa Maria Pia, filha de Umberto, o último rei de Itália, casou
nesse ano com o príncipe Alexandre da Jugoslávia. De toda a Europa afluíram
cabeças coroadas, umas ainda em funções, outras já sem elas. Os convidados
deveriam assistir à cerimónia em jaqueta com as suas condecorações, o que levou
uma língua viperina (de alguém que não foi convidado) a dizer que o cortejo
parecia um desfile de antigos combatentes em Whitehall. O casamento teve lugar
na capela de Cascais. Fui dos privilegiados que a ele assistiram. A cerimónia
foi desconcertante: todos os padres levaram uma câmara consigo, sendo o altar,
por assim dizer, invadido por fotógrafos.
Centenas de pessoas reuniram-se no
Palácio, onde teve lugar a recepção. Assim que a noiva cortou o bolo monumental
com uma espada, o seu véu não tardou a ser feito em pedaços pelos convidados,
ansiosos por guardarem uma recordação do acontecimento.
Apenas dezasseis pessoas estiveram no
almoço íntimo, entre os quais o embaixador da Bélgica, o barão Suzette,
representando o rei Leopoldo, tio da noiva; a embaixatriz não foi convidada,
pelo que teve de almoçar junto da multidão. Tive de a consolar, empresa
bem-sucedida graças a um prato de lagosta e a um outro de peru frio e de foie gras.
Nubar
Gulbenkian
(tradução
de António Araújo)
Don Alfonsito, o "jovem irmão" do príncipe Don Juan Carlos, futuro rei de Espanha, não "morreu tragicamente num acidente de caça", como reza o texto, mas morreu numa sexta-feira santa com um tiro de pistola com que os dois príncipes estavam a brincar na garagem da vivenda, chamada "La Giralda", localizada na Avenida da Inglaterra do Estoril.
ResponderEliminarDeliciosa a história do burro do Buçaco!
ResponderEliminarParabéns. O seu blog tem textos muito interessantes. É um prazer vir aqui
ResponderEliminarUm abraço