domingo, 16 de outubro de 2016

Spínola e Soares Carneiro.

 
 
 
 




Durante a campanha eleitoral de 1980 para a presidência da República Portuguesa entre o General Ramalho Eanes, a concorrer para um segundo mandato, e o General Soares Carneiro, encontrava-me eu em Portugal, em viagem de estudos.



         Como sempre acontecia, por ocasião das minhas estadias em Portugal, procurava fazer pelo menos uma visita ao General Spínola, dada a nossa amizade desde o tempo em que, ao lado dele e doutros carolas, participei no MDLP (Movimento Democrático de Libertação de Portugal) e noutras aventuras... e desventuras.

         Ora acontece que, durante uma dessas estadias e dessas visitas, estava a decorrer a dita campanha eleitoral. Tendo ido visitar o General Spínola, no seu apartamento de Lisboa, depois da ceia, propôs-me, como já por mais de uma vez acontecera, que o acompanhasse no seu passeio diário ou "footing", como às vez ele chamava a essa hora de caminhada, em passo relativamente rápido, para os seus setenta anos.

         Eu acedi da melhor boa vontade, dado que sabia do benefício que esses passeios traziam à minha saúde e do agradável e instrutivo que era conversar com um dos pioneiros da nova democracia portuguesa.

         E durante a hora que durou esse passeio através das ruas e avenidas de Lisboa, falou-se de várias coisas, sobretudo de natureza política, incluindo o nosso convívio no Brasil e nos Estados Unidos. A determinado momento, aproveitei uma aberta e perguntei ao General Spínola por que é que ele não apoiava pública e formalmente a candidatura do General Soares Carneiro, uma vez que a ideologia política do General Spínola se harmonizava melhor com a da coligação dos partidos políticos PSD, CDS e PPM (ou AD) que apoiavam oficialmente esse candidato do que com a do partido (PS) que apoiava oficialmente o seu adversário, o General Ramalho Eanes.

         O General, em vez de responder-me directamente, perguntou-me se eu tinha lido não sei que jornal português do dia anterior. Ao responder-lhe que não, ele disse-me que esse jornal, num longo artigo, de primeira página, tinha declarado que ele, General Spínola, era a consciência da nação. E sendo “a consciência da nação”, achava que era sua obrigação moral manter-se à margem, neutro, ou melhor dito – esclarecia –, acima de qualquer facção partidária nessas eleições presidenciais, ou noutras.

         Eu disse-lhe que isso soava muito bem, academicamente, e jornalisticamente também, mas que na prática ele perdia uma oportunidade única de fazer a diferença numa eleição presidencial, de extrema importância para Portugal, em minha modesta opinião. Tanto mais que ele sabia muito bem que o outro candidato não só era apoiado pelo Partido Socialista, repeti enfaticamente, mas também pelo Partido Comunista e pelos outros partidos ainda mais à esquerda do Partido Comunista, como vinha sendo tradição.

         E ao ver que eu persistia em argumentar contra a neutralidade assumida por ele, o General Spínola aproveitou para me repetir o que já uma vez me dissera: que ele tinha uma grande admiração pelo General Soares Carneiro, homem culto, de um espírito de profissionalismo exemplar e de uma grande integridade; que tinha intervindo pessoalmente para impedir que os Capitães de Abril o saneassem, permitindo, dessa forma, que ele fosse elevado ao cargo de Governador interino de Angola em 1974, logo após o golpe militar, mas que tinha chegado à conclusão que era seu dever cívico não desperdiçar o capital político que representava o ser o único homem em Portugal aclamado publicamente e universalmente como “a consciência da nação”.

         Perante todo esse esforço do General Spínola em justificar a sua neutralidade nessas eleições presidenciais, não pude deixar de pensar para comigo que não só todo o mundo, mas também os homens, inclusive os militares, mesmo os aparentemente estóicos e coerentes, estavam sujeitos a mudanças. É que eu tinha sido testemunha ocular e auricular da animosidade que em tempos o General Spínola tinha nutrido em relação a Mário Soares. E também muito só para mim pensei, e creio que com muito boa razão, que ali andava o dedinho inteligentíssimo e habilidoso de Veiga Simão, por sua vez manipulado pelo dedinho malabarista de Almeida Santos.

         E por falar em Veiga Simão, ocorre-me um facto que o General Spínola me contou no verão seguinte, por ocasião de uma visita que lhe fiz em casa.

         Por esse tempo andava Spínola ocupado na escrita de um livro sobre a descolonização portuguesa, que os responsáveis por ela tinham baptizado de “descolonização exemplar”, com a conivência descarada e irresponsável dos meios de comunicação social de maior envergadura.

         Como havia muita gente viva, inclusive poderosos políticos na vida activa, entre os quais sobressaía Almeida Santos, o qual, como principal responsável “pela descolonização exemplar”, na sua capacidade de Ministro da Coordenação Interterritorial nos primeiros quatro governos provisórios, estava justamente apreensivo quanto ao que o General Spínola pudesse vir a dizer nesse livro, a esse respeito, Veiga Simão, que devia sobretudo a Almeida Santos a sua reabilitação política, após o auto-exílio de quase três anos nos Estados Unidos, acompanhava com o maior interesse a escrita desse livro, preocupado em que o seu grande amigo e padrinho político António viesse a ser prejudicado com a sua publicação. E para que isso não viesse a acontecer, visitava o General Spínola com frequência, pedia-lhe para que lhe mostrasse o manuscrito e aproveitava para sugerir que fizesse esta ou aquela alteração.

         Como que a rematar essas informações, o General volta-se para mim e diz-me com um ar ligeiramente malicioso e divertido, que tão raramente lhe aflorava ao rosto:

         − Mas sabe o que eu faço, Professor? Logo que ele sai, volto a pôr tudo como estava dantes. 

          E, proferidas estas palavras, o homem do monóculo, de semblante espartanamente austero, por natureza e por feitio, auto-felicitava-se com um largo sorriso, a traduzir uma esperteza esfumadamente marota. 

         Representada esta cena, o General Spínola voltava ao seu natural, o que quer dizer que tornava a afivelar a máscara do estatuto que um jornal de Lisboa lhe emprestara e de que ele se enamorara: o de haver sido solenemente proclamado urbi et orbi “a consciência da nação”.

 

António Cirurgião





















        







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