A
vinda de Calouste Sarkis Gulbenkian para Portugal e as circunstâncias em que esta
se processou são sobejamente conhecidas. Também o seu legado, de que ainda hoje
desfrutamos. O episódio é recordado pelo seu filho Nubar (1896-1972) nas suas memórias,
publicadas em inglês com o título Pantaraxia.
Nesta tradução, feita sem especiais pretensões de rigor, usou-se a edição
francesa dessa obra, intitulada Nous, les
Gulbenkian. Les aventures dorées du pétrole (Paris, Stock, 1967). Existe edição portuguesa de Pantaraxia, da Labirinto de Letras, com tradução de Adriana Barreiros e José António Barreiros, saída em 2015.
Refugiados em Lisboa, no navio Serpa Pinto
Setembro de 1941
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Quando
os meus pais se instalaram em Portugal, passei várias temporadas de três e
quatro semanas em Lisboa, que na altura era um ninho de espiões. Encontrava-se
aí muita gente – será que os poderíamos classificar verdadeiramente como
espiões? – que fazia a vida trabalhando para todos os países, e com total
imparcialidade. Penso, por exemplo, em Rapetti, um italiano que era maître d’hôtel no Hotel Ritz. Nem
chegava a dissimular que tirava um belo rendimento do seu trabalho de
informador: todos os dias, assinalava a quem de direito que Fulano almoçara com
Beltrano, enriquecendo os seus relatórios de pedaços de conversas que ouvia
quando estava de serviço. Dirigia-se em primeiro lugar à P.I.D.E. (Polícia
Internacional e de Defesa do Estado), ou seja, à polícia secreta portuguesa,
depois ia à legação da Alemanha, de seguida às embaixadas inglesas e americana
e, por fim, movido por uma réstia de patriotismo, à legação de Itália. Cada um
dos seus «clientes» dava-lhe cinquenta escudos por dia. Nenhum reclamava exclusividade:
o que lhe exigiam é que as informações fossem precisas. Rapetti acabou por
adquirir um apurado sentido de objectividade e por vencer a propensão natural
que tinha para abrilhantar as suas informações.
Devido
ao seu estatuto de país neutral, Portugal era um centro de atracção para os
espiões, mas aquela neutralidade causava incómodo em algumas pessoas, como o
adido militar inglês, um coronel. Um dia, almoçávamos juntos, e lembro-me que
parecia estar a chorar ao meu colo; na verdade, os seus lamentos passavam-me
por cima da cabeça, pois dirigiam-se, isso sim, a um general português que
estava sentado noutra mesa, à nossa frente.
-
Nem dá para acreditar que os Portugueses sejam os nossos mais antigos aliados! A
única coisa que lhes interessa é preservar a sua neutralidade. Veja bem: há
meses que me encontro neste posto e ainda nem tive sequer oportunidade de me
avistar nem com o Ministro da Guerra, nem como o comandante-chefe do exército,
nem com o general que comanda a praça de Lisboa! Tem sido impossível encontrar
as pessoas com as quais deveria relacionar-me…
O
general português que escutava estes lamentos, e que a ele eram dirigidos por
interposta pessoa, não se moveu um milímetro. Limitei-me a abanar a cabeça.
-
No outro dia, prosseguiu o meu coronel, no outro dia esperava visitar a Escola
de Cavalaria de Mafra. Tinham-me prometido que lá iria. Sabe o que se passou?
No último minuto, mudaram de opinião e mostraram-me os cavalos de Núncio – os
cavalos das touradas.
–
Mas isso é muito interessante, murmurei.
–
Certo, não o nego. Fiquei muito contente por montar, mas a questão não é essa.
Acho que os Portugueses têm muito a perder ao manter-me à margem. Creio que
lhes poderia ser muito útil.
–
De que forma?
–
Procedi a um estudo aprofundado da defesa de Atenas, respondeu o adido militar,
que falava já quase directamente para o seu conviva da mesa do lado. Não
percebe que a defesa de Atenas coloca, no essencial, os mesmos problemas que a
defesa de Lisboa? Não vê que se trata de defender uma capital situada sobre
colinas e com livre acesso ao mar de um ataque feito por via terrestre? Estou
certo de que, com base no estudo que fiz, estou em condições de dar conselhos
preciosos aos Portugueses.
Então,
e pela primeira vez, o general português reagiu. E perguntou, com uma voz
tranquila:
–
Desculpe-me, meu caro amigo, mas a guerra evolui tão rapidamente nos nossos
dias que nem sempre estamos a par dos acontecimentos… desculpe-me, mas poderia
dizer-me quem é que controla actualmente Atenas?
Estávamos
em 1941; eram incontestavelmente os alemães.
A
neutralidade foi, sem dúvida, favorável aos Portugueses. Tiveram a astúcia de
receber dinheiro dos dois lados. A sorte dos Portugueses foi terem uma das
raras fontes de urânio então existentes; tirando habilmente partido dessa
vantagem, deixaram que os ingleses e os alemães, em despique, inflacionassem os
preços, não tanto para se apropriarem do precioso metal mas para impedir que o
inimigo o fizesse. Em resultado disso, o urânio atingiu valores astronómicos e
os camponeses portugueses chegaram a vender as suas casas porque as pedras com
que foram construídas continham aquele minério.
Portugal
conservou a sua neutralidade até ao fim e, contrariamente a Atenas, Lisboa não
caiu nas mãos dos alemães. Mas essa possibilidade chegou a colocar-se, e alguns
prepararam-se para ela. Enquanto decorreram as hostilidades, um iate de uma
vintena de toneladas permaneceu ancorado no cais de Alcântara. Estava equipado
com um motor auxiliar e manteve-se pronto a meter-se ao largo se acaso os
exércitos alemães entrassem em Portugal ou se pára-quedistas fossem lançados
sobre Lisboa. Suficientemente pequeno para não chamar as atenções, o iate era,
ainda assim, suficientemente rápido para, em dois ou três dias, alcançar um
navio de resgate em alto mar. De certo modo, esse iate era a saída de
emergência dos agentes americanos que actuavam em Lisboa.
Nubar Gulbenkian
(tradução de António Araújo)
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarConfunde urânio com volfrâmio...
ResponderEliminarEu vi, meu caro amigo, mas optei por não corrigir.
EliminarGrande abraço
António
Mais um excelente olhar sobre Lisboa e o país de outros tempos.
ResponderEliminarRitz em Lisboa só em 59.
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