quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Lisboa, 1941.

 
 
Nubar Gulbenkian (1896-1972)

 
A vinda de Calouste Sarkis Gulbenkian para Portugal e as circunstâncias em que esta se processou são sobejamente conhecidas. Também o seu legado, de que ainda hoje desfrutamos. O episódio é recordado pelo seu filho Nubar (1896-1972) nas suas memórias, publicadas em inglês com o título Pantaraxia. Nesta tradução, feita sem especiais pretensões de rigor, usou-se a edição francesa dessa obra, intitulada Nous, les Gulbenkian. Les aventures dorées du pétrole (Paris, Stock, 1967). Existe edição portuguesa de Pantaraxia, da Labirinto de Letras, com tradução de Adriana Barreiros e José António Barreiros, saída em 2015.   
 
 
Refugiados em Lisboa, no navio Serpa Pinto
Setembro de 1941
 
Quando os meus pais se instalaram em Portugal, passei várias temporadas de três e quatro semanas em Lisboa, que na altura era um ninho de espiões. Encontrava-se aí muita gente – será que os poderíamos classificar verdadeiramente como espiões? – que fazia a vida trabalhando para todos os países, e com total imparcialidade. Penso, por exemplo, em Rapetti, um italiano que era maître d’hôtel no Hotel Ritz. Nem chegava a dissimular que tirava um belo rendimento do seu trabalho de informador: todos os dias, assinalava a quem de direito que Fulano almoçara com Beltrano, enriquecendo os seus relatórios de pedaços de conversas que ouvia quando estava de serviço. Dirigia-se em primeiro lugar à P.I.D.E. (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), ou seja, à polícia secreta portuguesa, depois ia à legação da Alemanha, de seguida às embaixadas inglesas e americana e, por fim, movido por uma réstia de patriotismo, à legação de Itália. Cada um dos seus «clientes» dava-lhe cinquenta escudos por dia. Nenhum reclamava exclusividade: o que lhe exigiam é que as informações fossem precisas. Rapetti acabou por adquirir um apurado sentido de objectividade e por vencer a propensão natural que tinha para abrilhantar as suas informações.
Devido ao seu estatuto de país neutral, Portugal era um centro de atracção para os espiões, mas aquela neutralidade causava incómodo em algumas pessoas, como o adido militar inglês, um coronel. Um dia, almoçávamos juntos, e lembro-me que parecia estar a chorar ao meu colo; na verdade, os seus lamentos passavam-me por cima da cabeça, pois dirigiam-se, isso sim, a um general português que estava sentado noutra mesa, à nossa frente.
- Nem dá para acreditar que os Portugueses sejam os nossos mais antigos aliados! A única coisa que lhes interessa é preservar a sua neutralidade. Veja bem: há meses que me encontro neste posto e ainda nem tive sequer oportunidade de me avistar nem com o Ministro da Guerra, nem como o comandante-chefe do exército, nem com o general que comanda a praça de Lisboa! Tem sido impossível encontrar as pessoas com as quais deveria relacionar-me…
O general português que escutava estes lamentos, e que a ele eram dirigidos por interposta pessoa, não se moveu um milímetro. Limitei-me a abanar a cabeça.
- No outro dia, prosseguiu o meu coronel, no outro dia esperava visitar a Escola de Cavalaria de Mafra. Tinham-me prometido que lá iria. Sabe o que se passou? No último minuto, mudaram de opinião e mostraram-me os cavalos de Núncio – os cavalos das touradas.
– Mas isso é muito interessante, murmurei.
– Certo, não o nego. Fiquei muito contente por montar, mas a questão não é essa. Acho que os Portugueses têm muito a perder ao manter-me à margem. Creio que lhes poderia ser muito útil.
– De que forma?
– Procedi a um estudo aprofundado da defesa de Atenas, respondeu o adido militar, que falava já quase directamente para o seu conviva da mesa do lado. Não percebe que a defesa de Atenas coloca, no essencial, os mesmos problemas que a defesa de Lisboa? Não vê que se trata de defender uma capital situada sobre colinas e com livre acesso ao mar de um ataque feito por via terrestre? Estou certo de que, com base no estudo que fiz, estou em condições de dar conselhos preciosos aos Portugueses.
Então, e pela primeira vez, o general português reagiu. E perguntou, com uma voz tranquila:
– Desculpe-me, meu caro amigo, mas a guerra evolui tão rapidamente nos nossos dias que nem sempre estamos a par dos acontecimentos… desculpe-me, mas poderia dizer-me quem é que controla actualmente Atenas?
Estávamos em 1941; eram incontestavelmente os alemães.
A neutralidade foi, sem dúvida, favorável aos Portugueses. Tiveram a astúcia de receber dinheiro dos dois lados. A sorte dos Portugueses foi terem uma das raras fontes de urânio então existentes; tirando habilmente partido dessa vantagem, deixaram que os ingleses e os alemães, em despique, inflacionassem os preços, não tanto para se apropriarem do precioso metal mas para impedir que o inimigo o fizesse. Em resultado disso, o urânio atingiu valores astronómicos e os camponeses portugueses chegaram a vender as suas casas porque as pedras com que foram construídas continham aquele minério. 
Portugal conservou a sua neutralidade até ao fim e, contrariamente a Atenas, Lisboa não caiu nas mãos dos alemães. Mas essa possibilidade chegou a colocar-se, e alguns prepararam-se para ela. Enquanto decorreram as hostilidades, um iate de uma vintena de toneladas permaneceu ancorado no cais de Alcântara. Estava equipado com um motor auxiliar e manteve-se pronto a meter-se ao largo se acaso os exércitos alemães entrassem em Portugal ou se pára-quedistas fossem lançados sobre Lisboa. Suficientemente pequeno para não chamar as atenções, o iate era, ainda assim, suficientemente rápido para, em dois ou três dias, alcançar um navio de resgate em alto mar. De certo modo, esse iate era a saída de emergência dos agentes americanos que actuavam em Lisboa.
Nubar Gulbenkian
(tradução de António Araújo)
 
 
 
 

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