impulso!
100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !
# 76 - STEVE LACY
É
tentador idealizar uma simetria entre a linha quebrada que denota o percurso
musical de Steve Lacy, o qual evoluiu por uma espécie de salto quântico, e as
igualmente fracturadas – e fracturantes – causas que o elegeram para vir a
Lisboa em 1972 como celebrante do 6º aniversário do programa radiofónico “Cinco
minutos de jazz”.
Na
segunda metade da década de 50 há muito que o saxofone soprano havia caído em
desuso e não conhecia progressos. Dos seus dois derradeiros protagonistas,
Johnny Hodges pusera-o de lado faziam 20 anos e Sidney Bechet estava
praticamente retirado, a caminho de finar-se em 1959. Ou porque viu nesse
instrumento preterido uma boa oportunidade para erguer o seu domicílio musical
com desafogo de tempo e espaço para inovação, na sobrelotada cena do jazz
daquele período, ou por qualquer outra razão desconhecida, Steve Lacy
vinculou-se ao saxofone soprano desde os primeiros instantes da sua carreira. Foi
assim que teve de tirocinar com os vetustos patriarcas do dixieland, por esta
altura a repisarem incessantemente os êxitos do seu remoto sucesso, diante de plateias
nostálgicas. Henry "Red" Allen e Pee Wee Russell apadrinharam, portanto,
o primeiro disco em nome próprio de Steve Lacy, que vincava a sua especialidade
intitulando-se “Soprano Sax”.
Nesta
obra de 1957 os processos antigos do dixieland e as novas formas do jazz procuram
a felicidade nupcial, casório que trouxe o autor à ribalta da cena coeva. Mas
em “Soprano Sax” já se talhava a fenda que abriria um rasgão na música de Steve
Lacy, capaz de transitar em poucos anos do passado quase arqueológico do jazz
para o futuro proposto pelo free. O terceiro tema do disco é “Work”, uma
composição de Thelonious Monk, que revela o imperecível fascínio de Lacy pela
angulosa e misteriosa arquitectura harmónica do pianista.
Estilhaços: Live in Lisbon
1972 (2012)
Versão original:
Sassetti, Guilda da Música - 114 03 001
Versão actual: Clean Feed Records - CF247CD
Steve Lacy
(saxophone soprano), Steve Pots (saxophone alto), Irene Aebi (violoncelo), Kent
Carter (contrabaixo), Noel Mcghie (bateria).
A
ligeira e desconfiada abertura condescendida pelo Antigo Regime a partir de
1969, trouxe um breve desafogo à taciturna actividade cultural e artística
portuguesa que de cosmopolitismo quase restrito a Paris e a Londres, destas
luzes apenas recolhia fogachos. O Cascais Jazz, lançado em 1971, terá sido dos
poucos benefícios que se recordam de tal abertura. Mas ao contrário do que as
erosões da memória fazem crer, o Cascais Jazz de Luís Villas-Boas não foi
unânime e críticas se fizeram ouvir ao carácter comemorativo, contemporizante e
até comercial – horrível pecado à época… – de uma organização que trazia a
Portugal históricos e consagrados intérpretes, porém nenhum de vanguarda.
Esse
mérito coube então a José Duarte autor e apresentador de "Cinco Minutos de
Jazz" emitido diariamente às 23:30 na Rádio Renascença, dentro do programa
"23ª Hora". A fim de celebrar o 6º aniversário deste seu farol que
bruxuleava o jazz na penumbra portuguesa, José Duarte foi a Paris convidar os
Art Ensemble of Chicago para um concerto em Lisboa. Mas como estavam
indisponíveis trouxe Steve Lacy, que desde 1970 também havia emigrado para a
Europa, por ter aqui encontrado condições e audiências com muito mais apetite
para as experiências do free jazz do que as nova-iorquinas.
O concerto realizou-se no dia 29 de
Fevereiro do ano bissexto de 1972 e compôs de maneira muito aceitável 1182
lugares da sala do Teatro Monumental, apesar da transmissão radiofónica em
directo. A estes dois fenómenos (lotação e emissão numa rádio comercial) hoje
inalcançáveis e, mesmo, inconcebíveis, junte-se o facto de o concerto ter sido
registado para gravação em disco com direitos de distribuição mundiais, um
feito pioneiro no panorama musical português.
Esteve muito bem quem teve a ideia de
chamar “Estilhaços” à obra de Steve Lacy, que no apogeu da sua inspiração
catártica iniciou o recital com a captação, a partir de um transístor fanhoso,
de um sinal de rádio local, projectando sobre essa sonoridade rudimentar e
pobre, uma linha melódica, repetitiva, estridente, eriçada, num uníssono do
saxofone soprano com o alto de Steve Potts (outro emigrado que se tornaria
visita frequente a Portugal depois de 1974). Em “Estilhaços” a música decorre,
portanto, de uma ideia de palimpsesto e de fragmentação para os quais qualquer
base sonora é aproveitável.
Ficou nos anais a noite de Steve Lacy,
inédita na Lisboa e no país de então, premonitória no que preconizava de
radicalismo, simbólica no que manifestava da tensão emocional e do desassossego
que latejava nesse Portugal pretérito.
José Navarro de Andrade
Sem comentários:
Enviar um comentário