sábado, 8 de outubro de 2016




impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

 

 

# 76 - STEVE LACY


 

 
É tentador idealizar uma simetria entre a linha quebrada que denota o percurso musical de Steve Lacy, o qual evoluiu por uma espécie de salto quântico, e as igualmente fracturadas – e fracturantes – causas que o elegeram para vir a Lisboa em 1972 como celebrante do 6º aniversário do programa radiofónico “Cinco minutos de jazz”.
Na segunda metade da década de 50 há muito que o saxofone soprano havia caído em desuso e não conhecia progressos. Dos seus dois derradeiros protagonistas, Johnny Hodges pusera-o de lado faziam 20 anos e Sidney Bechet estava praticamente retirado, a caminho de finar-se em 1959. Ou porque viu nesse instrumento preterido uma boa oportunidade para erguer o seu domicílio musical com desafogo de tempo e espaço para inovação, na sobrelotada cena do jazz daquele período, ou por qualquer outra razão desconhecida, Steve Lacy vinculou-se ao saxofone soprano desde os primeiros instantes da sua carreira. Foi assim que teve de tirocinar com os vetustos patriarcas do dixieland, por esta altura a repisarem incessantemente os êxitos do seu remoto sucesso, diante de plateias nostálgicas. Henry "Red" Allen e Pee Wee Russell apadrinharam, portanto, o primeiro disco em nome próprio de Steve Lacy, que vincava a sua especialidade intitulando-se “Soprano Sax”.
Nesta obra de 1957 os processos antigos do dixieland e as novas formas do jazz procuram a felicidade nupcial, casório que trouxe o autor à ribalta da cena coeva. Mas em “Soprano Sax” já se talhava a fenda que abriria um rasgão na música de Steve Lacy, capaz de transitar em poucos anos do passado quase arqueológico do jazz para o futuro proposto pelo free. O terceiro tema do disco é “Work”, uma composição de Thelonious Monk, que revela o imperecível fascínio de Lacy pela angulosa e misteriosa arquitectura harmónica do pianista.

 
Estilhaços: Live in Lisbon
1972 (2012)
Versão original: Sassetti, Guilda da Música - 114 03 001
Versão actual: Clean Feed Records - CF247CD
Steve Lacy (saxophone soprano), Steve Pots (saxophone alto), Irene Aebi (violoncelo), Kent Carter (contrabaixo), Noel Mcghie (bateria).
 
 
A ligeira e desconfiada abertura condescendida pelo Antigo Regime a partir de 1969, trouxe um breve desafogo à taciturna actividade cultural e artística portuguesa que de cosmopolitismo quase restrito a Paris e a Londres, destas luzes apenas recolhia fogachos. O Cascais Jazz, lançado em 1971, terá sido dos poucos benefícios que se recordam de tal abertura. Mas ao contrário do que as erosões da memória fazem crer, o Cascais Jazz de Luís Villas-Boas não foi unânime e críticas se fizeram ouvir ao carácter comemorativo, contemporizante e até comercial – horrível pecado à época… – de uma organização que trazia a Portugal históricos e consagrados intérpretes, porém nenhum de vanguarda.
Esse mérito coube então a José Duarte autor e apresentador de "Cinco Minutos de Jazz" emitido diariamente às 23:30 na Rádio Renascença, dentro do programa "23ª Hora". A fim de celebrar o 6º aniversário deste seu farol que bruxuleava o jazz na penumbra portuguesa, José Duarte foi a Paris convidar os Art Ensemble of Chicago para um concerto em Lisboa. Mas como estavam indisponíveis trouxe Steve Lacy, que desde 1970 também havia emigrado para a Europa, por ter aqui encontrado condições e audiências com muito mais apetite para as experiências do free jazz do que as nova-iorquinas.
O concerto realizou-se no dia 29 de Fevereiro do ano bissexto de 1972 e compôs de maneira muito aceitável 1182 lugares da sala do Teatro Monumental, apesar da transmissão radiofónica em directo. A estes dois fenómenos (lotação e emissão numa rádio comercial) hoje inalcançáveis e, mesmo, inconcebíveis, junte-se o facto de o concerto ter sido registado para gravação em disco com direitos de distribuição mundiais, um feito pioneiro no panorama musical português.
Esteve muito bem quem teve a ideia de chamar “Estilhaços” à obra de Steve Lacy, que no apogeu da sua inspiração catártica iniciou o recital com a captação, a partir de um transístor fanhoso, de um sinal de rádio local, projectando sobre essa sonoridade rudimentar e pobre, uma linha melódica, repetitiva, estridente, eriçada, num uníssono do saxofone soprano com o alto de Steve Potts (outro emigrado que se tornaria visita frequente a Portugal depois de 1974). Em “Estilhaços” a música decorre, portanto, de uma ideia de palimpsesto e de fragmentação para os quais qualquer base sonora é aproveitável.
Ficou nos anais a noite de Steve Lacy, inédita na Lisboa e no país de então, premonitória no que preconizava de radicalismo, simbólica no que manifestava da tensão emocional e do desassossego que latejava nesse Portugal pretérito.
  
 
José Navarro de Andrade
 
 
 

 

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