Fotografias
de morte e sofrimento, ou a morte e o sofrimento fotografados
As fotografias associadas à morte são as que causam
mais distúrbio entre os observadores. Mas não todas. Tal como na realidade não mediada,
um corpo despedaçado é chocante, mas não o é um cadáver bem tratado, vestido,
colocado num caixão com as mãos juntas sobre o abdómen. Os mortos têm que estar
prontos para receber os vivos antes da sua última despedida. Também têm de
estar no local certo para os vivos: uma capela, uma igreja, uma sala, um salão
caseiro ou nobre, qualquer lugar que os vivos considerem tão digno quanto a
apresentação do cadáver.
Isso, porém, é depois do momento da morte: antes da
dignidade com que profissionais ou familiares envolvem o corpo. No momento da
passagem, há dor, violência, sofrimento, extenuação infligida ou autoinfligida.
O corpo apresenta-se aos vivos sem aquilo a que os vivos chamam dignidade.
Estão contorcidos, disformes, ensanguentados, de olhos e boca abertos, mal
vestidos, nus, dilacerados. Os vivos não gostam de os ver. E a fotografia
regista, fixa, mostra, divulga e publicita aos vivos o que não gostam de ver:
mortos antes que a dignidade da apresentação pública dos mortos esconda a
brutalidade da morte e do seu momento exacto. O momento decisivo, o mais
decisivo: definitivo.
A fotografia da morte também inquieta porque não
escapa à temporalidade que o observador lhe acrescenta: há um antes e um depois
daquele momento, uma narrativa inventada ou adivinhada pelo observador,
sucessão de imagens cerebrais que o observador acrescenta, cola, fixa à imagem
fixa.
A célebre fotografia da criança africana (1) com um
abutre à distância é exemplar neste processo de invenção narrativa pelos
observadores. O que mostra? Um campo, uma criança nua, apenas com um colar, ar
famélico, de cócoras, com os cotovelos na terra e a cabeça caída. Não se lhe vê
a cara. A alguma distância, que parece menor devido ao tipo de lente usada pelo
fotógrafo, está um abutre pousado, virado em direcção à criança. De relevante,
nada mais. A aproximação aos dois elementos fulcrais da composição — a criança
e o abutre — não permite saber onde estavam, se havia mais alguém em redor.
Também não sabemos o antes (porque está a criança ali? Porque está naquela
posição? É habitual haver abutres na proximidade de pessoas?) e muito menos
sabemos o depois (a criança morreu? O abutre aproximou-se e comeu o seu
cadáver?). Todavia, interpretações correntes desde que a fotografia foi
divulgada discorreram sobre o destino da criança — a morte certa, iminente! — e
sobre o cinismo do fotógrafo, que não teria salvo a criança, assumindo que o
fotógrafo estava só num campo africano com aquela criança, assumindo que o
fotógrafo virou costas e vendeu a fotografia. Nada disso, porém, está na
fotografia, está na cabeça dos observadores, que vêem um filme onde está uma
imagem fixa. Só o contexto pode responder a algumas das questões.
O mesmo se poderia dizer da fotografia (2) mostrando o
que se supõe ser um imigrante africano ilegal arrastando-se numa praia, numa
posição de fraqueza, como a criança africana, enquanto ao fundo três
veraneantes conversam no areal; nenhum deles olha para o negro. Pode
condenar-se os veraneantes (ou o fotógrafo) por não ajudarem o imigrante?
Precisaria este, quereria ele ajuda? E tê-lo-á alguém ajudado? Nem mesmo
sabemos se os veraneantes se aperceberam da situação: é a fotografia que os
coloca no mesmo enquadramento e no mesmo eixo narrativo, uma diagonal que
começa no negro que “entra” no que se supõe ser o país de destino (“entra” para
a esquerda da imagem, o passado narrativo) e que conduz aos três brancos meio
deitados na praia. Esta diagonal “assassina” estava igualmente presente na
primeira fotografia, começando no abutre virado para a criança e terminando
nesta, próximo da direita baixa, isto é a morte que sobrevirá na narrativa
inventada pelo observador.
A diagonal, de novo, domina a célebre imagem de um casal jovem, branco, sob um guarda-sol, numa praia, e termina num corpo ao fundo, deitado na areia molhada (3). Sabemos, pelo contexto, que é já cadáver, mas a foto não o comprova, apesar da posição contorcida. O casal, com a sua geleira e latas de Coca-Cola, olha para o mar, enquanto o corpo está virado para terra, o seu destino de imigrante ilegal. A imagem, como a anterior, sugere indiferença do homem branco, sugere a banalidade da morte na costa, mas, de novo, essa é uma narrativa que a fotografia não comprova. As três fotos parecem resultar do uso de teleobjectiva e resultam, sem qualquer dúvida, do enquadramento escolhido, que é o elemento vital do seu apelo estético. Elemento essencial na apreciação deste tipo de imagens: elas chocam por partilharem códigos de representação que o observador associa à arte. Em qualquer delas, a composição é perfeita, o que sugere que os fotógrafos procuraram estetizar o sofrimento e a morte. Essa é a sua profissão, uma foto só é “boa” se evidenciar ou sugerir a utilização de códigos estéticos partilhados com a pintura canónica ou, sei lá, os nossos padrões cerebrais inatos. Isso torna-as mais chocantes do que fotos sem intrínsecas qualidades artísticas, no ponto de vista, no enquadramento e na composição. A beleza do objecto fotográfico acentua a criação do sentimento de culpa ocidental. O observador, se não quer assumi-la, transfere o ónus da culpa para o fotógrafo mensageiro.
A fotografia dos cadáveres de Benito Mussolini e de
Clara Petacci (4), sem essa qualidade estética, é menos chocante. Choca a morte
e o estado dos cadáveres, o seu desalinho, a posição: a falta de dignidade,
acima referida, era essencial para matar o mito. A fotografia é, assim, mais
próxima do seu referente: as mãos de personagens fora do campo visual seguram
as cabeças dos mortos para que os observadores saibam quem eram e qual foi o
seu fim. As outras fotografias referidas, para além do carácter referencial
inerente à fotografia de informação, adquirem também, pelo seu valor estético,
um carácter indicial e simbólico: sugerem outras crianças esfomeadas e
moribundas, outros imigrantes, outros corpos, e simbolizam a normalidade do
incidente e a indiferença generalizada no país onde chegaram ou no país de quem
observa a imagem. Não sabemos quem é a criança negra, nem quem são os
negros na praia dos brancos. Não tem a mínima importância, pois nem para o
fotógrafo nem para os observadores a identidade é importante. No caso da
fotografia de Mussolini e Petacci a identificação é vital: por isso as mãos
seguram a cabeça dos cadáveres, para que possamos identificá-los.
O impacto estético está igualmente presente nas fotos
de WeeGee da violência em Nova York e nas recentes fotografias indianas
reproduzidas no Malomil. Na primeira destas (5), o ponto de vista do fotógrafo
mostra os corpos cortados em dois; não em picado, da posição do observador de
pé, mas do ponto de vista do último micro-segundo de vida dos mortos, ao nível
da via férrea. Colocando a câmara sobre a via férrea, tornou possível imaginar
o momento anterior à morte. Todavia, essa proximidade com a experiência que os
mortos viveram no último instante não cria para com as vítimas a simpatia no
observador, que a rejeita. Preferiria o ponto de vista dos vivos, de pé,
olhando os corpos de uma posição de superioridade, e, já agora, com a linha do
comboio correndo horizontalmente e não, como a vemos, verticalmente, caindo
sobre aqueles corpos e, em nossa direcção, sobre nós mesmos. Vem aí o comboio!
Os corpos atiram-se à linha! Nós vemos! O comboio continua a sua marcha!
A outra fotografia (6) potencia o mesmo choque
emocional no observador, apesar de a suicida não estar em primeiro plano, que é
protagonizado por um homem (o contexto informa-nos que é irmão da vítima),
chorando ao telefone. O Ocidente criou o interdito da representação do
suicídio: não se descreve, não se mostra, nem mesmo se noticia. Não só é pecado
e crime, como se considera que a sua representação pode ter efeitos nefastos
pela imitação. O choque, aqui deste lado do mundo, é duplo: físico e cultural.
Deveria o homem falar ao telefone? Com o corpo ainda pendurado? Falou ao
fotógrafo antes de falar à polícia? Invenções do observador. Visível, só um
drama terrível. A morte crua. O choro do homem. E visível esteticamente: um
enquadramento perfeito, com os dois protagonistas em perfeito equilíbrio na
composição, ambos de olhos fechados, ambos inclinados para o interior da
fotografia, o interior do drama, ela para a direita, ele para a esquerda. ambos
com uma mão visível, a dela pendente, morta, a dele levantada, viva, ambos com
as cabeças inclinadas no mesmo ângulo, ela no sossego da morte, ele no
desespero da vida, ambos iluminados com luz artificial, de drama pobre, ela por
detrás, ele pela frente. A vida é uma prisão? Ela enforcou-se atrás das grades
caseiras, ele agarra-se a elas, e as grades concretizam a distância enorme que
há entre eles, cada um encostado a seu canto. Revela-nos essa distância espacial uma distância simbólica, humana, imaginada — a que impediu o suicídio?
As fotografias impedem-nos de recusarmos ver a
violência do mundo. Estetizam a violência? Vemos melhor ainda. Rejeitamos, mas
não esquecemos. Benditas sejam.
Eduardo Cintra Torres
engraçado, no outro dia, depois de ver o filme "O Príncipe do Deserto" (Black Gold), (lutas tribais em território árabe por causa do inicio da extracção de petróleo), fiquei a pensar que o cinema era precisamente o contrário do que o Eduardo afirma sobre a fotografia, que de resto concordo, «As fotografias impedem-nos de recusarmos ver a violência do mundo.» parece-me que o cinema nos ajuda a mascarar a realidade. e enquanto comemos pipocas!
ResponderEliminarabraço
O fotógrafo que retratou a cena do abutre e da criança (Kevin Carter) suicidou-se. Alguns atribuíram a depressão às críticas de que foi alvo por ter tirado a foto em vez de ajudar a criança.
ResponderEliminarOs relatos de outras pessoas que estavam com ele em África nessa altura não confirmam essa teoria.
http://anibal-eter.blogspot.pt/
Chocam-me muito mais as fotos dos vivos em situações degradantes e de miséria do que as dos mortos. Os mortos não sofrem!
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