segunda-feira, 24 de março de 2025

Usbequistão, encruzilhada de civilizações (20).

 

 

 

Para ir da cidade de Boukhara para a cidade de Khiva, há que atravessar o deserto de Kyzil Kum. É um dos maiores desertos do Mundo, estendendo-se por cerca de 300 000 quilómetros quadrados, uma área correspondente a três vezes a área de Portugal.

Apercebemo-nos como, no tempo da Rota da Seda, estas cidades eram oásis num longo e penoso caminho entre a China e o Mediterrâneo.

 





 

Khiva é considerada a mais intacta e remota cidade da Rota da Seda. Aqui os viajantes encontravam poços de água doce que saciavam a sede de quem fazia milhares de quilómetros em condições extremas. Mas era também cidade de ladrões e escravos. No Século XIX uma expedição militar, tentou sem sucesso libertar 3 000 escravos russos.

O Khan de Khiva foi destituído em 1919 para dar lugar a uma efémera República Soviética do Khorezu. Só em 1924 foi integrada no Usbequistão.

A cidade é de uma beleza extraordinária. As suas ruelas e os seus monumentos dão-lhe um encanto muito especial.

 








                                            Fotografias de 2 e de 3 de Outubro de 2024

                                                                                            José Liberato




sábado, 22 de março de 2025

Carta de Bruxelas.





                                                                A terra sobre os olhos



O historiador da arte Bernard Berenson nasceu Bernhard Valvrojenski, em Butrimonys, na Lituânia, numa família judia; tendo-se convertido ao cristianismo, foi episcopaliano quando a família emigrou Boston em 1875, e, em seguida, católico, quando já vivia em Itália, para onde se mudou depois de ter viajado na Europa em 1887, após a licenciatura. Berenson nunca deixou de se confrontar com a questão judaica; numa entrada do diário, de 2 de Setembro de 1953, deixou uma observação esperançosa. Via no poder nacional e no valor militar nele fundado uma carta de alforria, o caminho para a igualdade.

«Não serem objecto de desprezo» é do que os judeus precisam. Certamente, nenhum outro «povo» – quero dizer um grupo cuja coesão foi mantida por hábitos, usos, costumes, tradições, rituais – nenhum outro povo que chegou até aos nossos dias com uma história ininterrupta de uns bons três mil anos serviu tão bem a humanidade. Aos cristãos e aos maometanos deu-lhes a sua religião, nunca deixou de contribuir para o pensamento e a literatura, e, nos últimos 150 anos, nenhum outro povo esteve presente de modo tão criativo e tão fecundo em todos os aspectos da actividade humana, até na militar quando lhes foi permitido.  Que a maior parte dos não judeus sinta desprezo por eles, porém, não só os torna ressentidamente infelizes e servilmente ansiosos por serem bons burgueses, acatando as regras da média em todos os países, mas leva-os também a desprezarem-se a si mesmos até ao ponto de se suicidarem, como foi o caso de Weininger. A solução pode estar num Estado plus – um plus muito grande – a glória militar, o único valor que todos nós reconhecemos como supremo. Se os judeus criassem um Estado militar poderoso, desapareceria o desprezo de que são alvo.»

É uma concepção de uma época, de duas épocas atrás. Dos tempos em que os judeus ficavam à porta da sociedade, partilhando com outros grupos marginais e marginalizados a mesma condição de inferioridade. Apesar da emancipação civil e política, o ferrete das origens não desaprecia. Berenson vê no poder, entendendo que é antes de mais o poder de responder taco a taco, de armas na mão, armas iguais às dos agressores, a possibilidade de os judeus se constituírem como um povo em pé de igualdade com os outros povos. A derrota do nacional-socialismo seria o fim da discriminação; a fundação do Estado de Israel, soberano entre soberanos, a ratificação última da igualdade. E, no entanto, o nazismo não foi o derradeiro capítulo de uma história contínua, milenar de perseguição. Foi algo de novo. E essa novidade permaneceu. Na concepção nacional-socialista, a dualidade ariano-judeu constitui uma oposição insanável, que está para lá de todo e qualquer conflito político, são dois tipos absolutos e de igual poder. Para que um viva, o outro tem de morrer. Assim, o judeu foi guindado a uma posição insigne, negativamente insigne. Se no pós-guerra, um pós-guerra que começa uma década depois do fim das hostilidades (recorde-se as dificuldades de Isaac Schneersohn  para erigir um memorial do genocídio; inaugurado apenas em 1956, foi até ao início da década de 60 o único do mundo num espaço público), o judeu não é exactamente igual, isso deve-se ainda a ter sido alvo de todo o género de exacções e violências. O apoio da União Soviética a vários países do Médio Oriente assinalou o início do divórcio da opinião pública, por via esquerdina, é certo, mas não só por aí, relativamente a Israel. Paradoxalmente, foi ao mesmo tempo o início da entronização do estatuto que o nazismo atribuíra aos judeus. Os inimigos figadais de ontem geraram ambos o mesmo fruto e, nesta coincidentia oppositorum diabólica, os judeus tornaram-se a encarnação do mal absoluto e universal no mundo. O poder, em que tantos depositaram as esperanças da igualdade, revelou-se, numa desfiguração retroactiva, o elemento que apunha o selo definitivo no novo estado de coisas. Em grande medida, o 7 de Outubro de 2023 consumou o que veio à luz com o nacional-socialismo – foi a sua vitória. Por mais que custe dizê-lo. As meias tintas que vigoraram depois de 45 (mas também a Shoah, entendida quase sempre à luz da continuidade história) ficaram para trás, caracterizam uma época – hoje vista como indecisa pelo novo sentido que um novo acontecimento lhe impôs – que acabou por não ser um crédito adiantado, antes foi o início de uma dívida cuja cobrança coube por fim ao 7 de Outubro de 2023 e às suas repercussões. Pelo poder, a igualdade almejada retirou-se do mundo, e deixou cadáveres como a maré vazia deixa destroços numa praia. Cadáveres absolutos e universais de uma nova época.

 

                                                    João Tiago Proença


quinta-feira, 20 de março de 2025

São Cristóvão pela Europa (302).

 

 

 

É tempo de voltar ao nosso querido rectângulo. Visitei em Janeiro três freguesias todas no Norte de Portugal e tendo como orago São Cristóvão.

Comecei pela freguesia de Candemil na parte Sudeste do concelho de Amarante, junto ao concelho de Baião. A paróquia já é mencionada no Século VI, sendo chamada de Sancto Christophori de Candemir a partir de 1152, ou seja, antes da Lenda Dourada de Voragine que estabelece a história de São Cristóvão!

A igreja sofreu imensas alterações, as últimas das quais no Século XIX, sendo que todas as imagens foram roubadas no início do século seguinte.

No interior, uma imagem no altar-mor e outra na sacristia.

 

 





 

Totalmente remodelada no Século XVIII, a igreja Paroquial de Mondim de Basto, é hoje uma típica igreja de estilo barroco. De gótico, apenas a porta lateral. O tecto ostenta, no caixotão central, a imagem de São Cristóvão.

 




Finalmente, e também em Trás-os-Montes, a Igreja Paroquial de Parada de Cunhos no concelho de Vila Real é também barroca. Tem imagens de São Cristóvão num nicho da fachada, no tecto como na igreja de Mondim de Basto e no altar-mor.

 





                                Fotografias de 17 de Janeiro de 2015

                                                                      José Liberato




terça-feira, 11 de março de 2025

Usbequistão: encruzilhada de civilizações (19).

 

 

 

Nos arredores de Boukhara, o palácio Sitorai Mokhi Khosa, o que é traduzido de forma algo contraditória por Palácio das Estrelas como a Lua, era a Residência de Verão do Emir de Boukhara. O Palácio que se vê hoje foi construído no início do Século XX pelo último emir que, como já vimos, foi destituído em 1920. Não teve, pois, muito tempo para o gozar…

A decoração é de gosto predominantemente europeu.

 








Já na saída de Boukhara na direcção do deserto, a Necrópole Chor Bakr, construída no Século XVI, destinava-se a dar sepultura a muitos dos líderes religiosos, em especial a Abu Bakr-Said que viveu no Século X.

 




 

                             Fotografias de 1 e 2 de Outubro de 2025

                                                                         José Liberato



segunda-feira, 10 de março de 2025

Deste lugar onde escrevo.

 


                                                                                                                                       1951

 


Vivo aqui há trinta anos. Do lugar onde isto escrevo, a três, quatro minutos a pé, estiveram estacionadas as tropas de Afonso Henriques antes de tomarem a cidade aos mouros. Em resultado disso, o rei mandou que se erguesse um mosteiro, em cumprimento da promessa que fizera antes da batalha, cujo desfecho vitorioso permitiu que hoje eu possa escrever isto aqui, deste lugar onde escrevo. Mais tarde, já no tempo de outros reis, aqueles que nos ocuparam durante quase uma centúria inteira, o mosteiro foi reedificado pedra sobre pedra, adquirindo as formas que ainda hoje mantém, e que podem ser observadas nas selfies que os turistas vindos nos tuk-tuk depois propalam pelo Instagram fora, com eles no primeiro plano, e o monumento em segundo. Nos trinta anos que aqui levo, neste lugar onde escrevo, vi só um pedaço do mundo, mas muito mundo aqui vi: caíram o Muro e as Torres, mostrando a fragilidade dos impérios, houve um cortejo de guerras e de outros tantos desastres, uns mais naturais do que outros, migrações, turbulências, com um Portugal de permeio, governanças sucessivas, triunfos do Glorioso. Acontecimentos de grande impacto, que a todos por certo abalaram, mas que vistos de aqui pouco interessam, não sendo sequer falados. Problemas à séria, esses sim amplamente ventilados, são os do estacionamento e o dos buracos no pavimento, foi o não haver luz na rua meses a fio, anos quiçá, pese as múltiplas diligências e insistências dos moradores mais activos e interventivos junto da junta e da câmara, com cartas para a EDP, até em formato papel. No plano das instituições, o ódio à EMEL continua por aqui em níveis muito elevados e têm grafitado regularmente o palácio que o cantor espanhol famoso comprou ao lado do mosteiro, “Free Palestine” e assim, mas agora já vai em “Morte a Israel” e “Israel = Nazi” (esta, no coreto da Graça). Fechou, e isto já há um bom par de anos, a mercearia da dona Ana e do marido, cujo nome eu nunca soube, e onde punham os preços todos à mão, com autocolantes em cada artigo, um a um, o dia inteiro naquilo. À esquina, em frente de onde querem fazer um hotel, prossegue a bom ritmo e sem falta de freguesia a funerária que fez o enterro do Cunhal e espero que faça o meu. Abriu um indiano a meio da rua, mas fechou pouco depois, suspeito que por queixas de insalubridade feitas pelo comércio do lado, Zezé Cabeleireiro, o brasileiro que me apara o cabelo e faz a barba (na tropa diziam desfazer a barba). Além dos dois filhos que têm, um dos quais chamado Enzo, o Zézé e a Joyce, que abriu um salão na rua, mais abaixo do marido, trouxeram para casa há uns meses uma pretinha de São Tomé, cuja mãe teve nove de enfiada, todos dados para adopção. No mais, a carteira continua maluca e põe gorro vermelho por alturas do Natal, saiu a padeira bêbada para dar lugar a outra que fuma à porta, o João está a dormir no coreto e já não arruma no mosteiro, ficou só o Djaló. Por vezes, quadros de miséria: os drogaditos tão escanifraditos, coitaditos, os bêbados inchados roxos, uma mãe a gritar com o companheiro ao telemóvel, com a filha de ambos a chorar ao lado. Vai de vento em popa uma loja de artesanato chamada “By Nunes” e ao virar da esquina, já em Santa Marinha, o sr. Mohammed Taj Uddin, vindo do Bangladesh com a numerosa família, abriu uma loja de artigos variados (para que não houvesse erros na grafia do nome completo, pedi ao sr. Mohammed Taj Uddin que mo apontasse num papelito, que aqui transcrevo). Ao fundo da rua, grande sucesso de público tem tido, merecidamente, o restaurante sofisticado do casal Mário e Werner, um português de gema, o outro suíço de nascimento. Deste lugar onde escrevo, mesmo por baixo de mim, também permanece exitosa a loja de azulejos da Cristina, onde o Miguel-filho agora dá cursos e workshops a miúdas estrangeiras bem giras. A oficina-loja é na antiga farmácia do sr. Pereira, que agora vende relógios na Feira, e o ateliê onde o Miguel-filho dá aulas fica onde antes era uma padaria, cuja funcionária saudosa, uma bruxa já velhota e desdentada, gritava muitos filhos da puta! (com a variante filhos da puta dum cabrão!) sempre que na rua passavam carros com estrépito ou buzinadela. Neste lugar onde escrevo, muito turista, muito dragão tatuado, muita minissaia ululante, mas nota-se menos, não sei porquê, o corrupio matinal das mulheres das limpezas dos alojamentos locais, que outrora andavam sempre ajoujadas com muitos sacos azuis do IKEA, daqueles dos bons. Mas no ano em que isto escrevo, e já vamos em Novembro, o acontecimento mais marcante e impactante foi, sem sombra de qualquer dúvida, o encerramento há muito ameaçado d’O Cantinho, café-bar com esplanada, que também fazia as vezes de centro de dia e antro de batota, que a dona Fernanda e o sr. Zé aqui tinham tomado de trespasse no dia 2 de Agosto de 1986, 38 anos certinhos. Tinham vindo ambos do Norte, ele de Monção, ela de Góis, conheceram-se no Pereira de Alfama, o do cozido afamado, a Fernanda na cozinha, primeiro só a ajudar, ele a servir às mesas. Começou em 9 de Junho de 1975, ainda sabe a data certa de cor, e aí conheceu gente muito relevante dos tempos da revolução, o Rosa Coutinho e o outro, o Almeida Santos, e o outro que agora não me lembra o nome. Aqui cresceu-lhes um filho, o filho, o Filipe, que foi carteiro primeiro e depois mudou para a Uber, e que aqui casou, divorciou, foi pai de um menino e de uma menina, Leonor como a minha mais velha, e cujo sonho maior é ter um dia um iPhone (“daqueles da maçãzinha”, complementou o avô). Em contrapartida, poucos notaram a partida da dona Teresa, que desde que enviuvou ficou uma sombra, e já estava num lar, julgo que da Santa Casa. A vizinha ao lado dela, de quem nunca soube o nome e nem sei se tem filhos e netos (se tem, nunca os vi), continua a acenar-me sempre que lhe passo à janela, umas vezes com o cão, outras não. Um país em miniatura, Portugal dos Pequenitos visto da minha janela. Fiz obras em casa, tenho duas no Erasmus, e, pese o que para aí dizem sobre as alterações no clima, a luz de Lisboa continua um espanto. Assim morramos com ela.  


Escrito no dia da morte do meu amigo Pedro Machete (1965-2024).   

                                                                                     

                                                                               António Araújo





sexta-feira, 7 de março de 2025

São Cristóvão pela Europa (301).

 

 

 

Épernay, no departamento de Marne e na região de Grande Leste, é uma das capitais do champagne francês.

Aí se situa a Igreja de Nossa Senhora da Assunção. Foi inaugurada em 1915, num estilo neogótico, depois da demolição da anterior igreja praticamente arruinada. Mas logo em1918 foi vítima de bombardeamentos tendo de ser restaurada na década de 20.

No interior uma bela estátua de São Cristóvão.



A poucos quilómetros, situa-se uma das aldeias características da zona do champagne.

Chama-se Hautvillers e é a aldeia do célebre Don Perignon (1638-1715) que muitos consideram o inventor da bebida.

 




E aqui termino mais esta deambulação por São Cristóvãos de França.


                            Fotografias de 5 de Outubro de 2024

                                                                 José Liberato





Usbequistão, encruzilhada de civilizações (18).

 

 

 

Um dos monumentos importantes do centro histórico da cidade de Boukhara, Património Mundial da UNESCO, é o Chor Minor, quatro minaretes em persa, construído em 1807 por um comerciante turcomeno. Uma das torres caiu há 30 anos, mas foi rapidamente reconstruída.

 


A cidade tem vários ateliers de miniaturistas e calígrafos. Um dos mais interessantes é o de Toshev Davlat situado nos arredores num ambiente verdejante

São belíssimas as pinturas sobre papel artesanal:

 





Finalmente, o Conjunto arquitectural de Bahouddin Nakshband, importante local de peregrinação.

Bahouddin Nakshband (1318-1389) foi o fundador e o leader de uma das principais correntes sunitas sufis. Nasceu em Boukhara e o seu mausoléu ocupa um lugar proeminente no Complexo.

 

                        

    


    
                              Fotografias de 1 de Outubro de 2024


                                                                        José Liberato

quarta-feira, 5 de março de 2025

Que palavras guardaremos quando formos todos mortos?

 

 

 



Para quem sorria à pergunta, lembremos Ahmad Muaddamani, morto. Ou Omar Abu Anas, morto também. E as mais de 700 vítimas, das quais 63 crianças, do massacre de Daraya, perpetrado no Verão de 2012 pelo regime de Damasco, com o apoio do Hezbollah e do Irão. A 25 de Agosto desse ano, enquanto gozávamos férias, o centro de Daraya ficou pejado de cadáveres, muitos dos quais executados sumariamente e a sangue-frio, a tiro ou à baioneta. Dos cerca de 200 corpos descobertos nesse dia, 80 eram civis, massacrados no interior das próprias casas ou perto da mesquita Abu Suleiman Derane, já que então se celebrava o Eid al-Fitr, a data que no calendário islâmico assinala o fim do Ramadão.

No dia 27, o exército regressou para novas atrocidades. Cometidas provavelmente, à mesma hora em que, a partir de Nova Iorque, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, se mostrava consternado por aquele “crime terrível e brutal”, ou que a Alta-Comissária para os Direitos Humanos falava em possíveis “crimes de guerra e contra a humanidade”, exortando a uma “investigação imediata e completa”, que nunca seria feita: no Conselho de Segurança, a Rússia vetou a instauração de um processo no TPI contra Bashar al-Assad, este fugiu do país, vive hoje com a família num apartamento de luxo em Moscovo, e o principal responsável pela matança, Qathan Khalil, cognominado “Carniceiro de Daraya”, encontra-se em lugar incerto. Estima-se que, entre 2011 e 2024, a guerra civil na Síria tenha provocado mais de 600 mil mortos, sendo as forças governamentais responsáveis por 90% das baixas civis.  



 

          Uma fotografia, uma biblioteca

 

Em Outubro de 2015, a jornalista francesa Delphine Minoui, então a residir em Istambul, descobriu no Facebook uma estranha fotografia. A imagem encontrava-se na página de um colectivo de fotojornalistas, os “Humans for Syria”, e mostrava dois homens junto das estantes de uma biblioteca. À primeira vista, nada de mais, não fora o facto de essa biblioteca ficar situada em Daraya, um subúrbio de Damasco cercado pelas tropas governamentais desde 2012. Dos 250 mil habitantes da cidade, ainda nas mãos dos rebeldes, restavam uns 12 mil, não mais.

Através do Skype e do Whatsapp, Delphine conseguiu chegar à fala com o autor da fotografia, Ahmad Muaddami, um antigo estudante de engenharia de 23 anos, que, contra a vontade da família, decidiu permanecer na cidade e juntar-se aos rebeldes. Em finais de 2013, Ahmad e alguns companheiros – cerca de quarenta, todos na casa dos 20 anos –, começaram a resgatar livros dos escombros da cidade, apanhando-os na rua ou no entulho dos prédios bombardeados. Ao fim de uma semana, tinham conseguido salvar seis mil livros. Ao fim de um mês, quinze mil.

Formaram uma biblioteca num lugar secreto, com um gerador eléctrico improvisado e belas estantes feitas por voluntários, que repararam também os livros desfeitos, catalogando-nos pacientemente por ordem alfabética de autor, um a um. Em todos os livros, colocaram a lápis o nome dos proprietários, caso o soubessem, para que aqueles os recuperassem um dia, quando a tormenta passasse. Um comovente sinal de esperança.

Debaixo de bombas e de fogo constante, de ataques com gás sarin e napalm, a biblioteca de Daraya sobreviveu vários anos, abrindo todos os dias, excepto às sextas, das nove da manhã às cinco da tarde. Com cerca de vinte leitores presenciais por dia e empréstimos domiciliários, a biblioteca espalhou milhares, milhões de palavras entre os sitiados da cidade, servindo também de centro de debates e de universidade clandestina. Com uma fotocopiadora resgatada do entulho, os rebeldes produziram também um jornal de tiragem reduzida, 500 exemplares, com ensinamentos sobre como recolher a água da chuva ou cultivar verduras nos logradouros dos prédios. O Karkabeth, assim se chamava o periódico, tinha até crítica de cinema, palavras cruzadas e um horóscopo humorístico, com tiradas mordazes sobre a catástrofe em curso (“impossível trabalhar, as estradas estão todas cortadas”, dizia uma).

A biblioteca de Daraya foi, em suma, e nas certeiras palavras de Delphine Minoui, uma “arma de instrução maciça”. Entre as suas obras mais requisitadas, O Alquimista de Paulo Coelho, mas também Saint-Exupéry, O Príncipe de Maquiavel, Os Miseráveis de Vítor Hugo. Também muito populares os livros de autoajuda, com conselhos práticos de bem-estar e de ânimo, talvez porque, no meio daquele caos e da fome, eles transmitissem uma reconfortante sensação de normalidade e de que a vida continuava.






Alguns dos voluntários, como Ahmad Muaddamani ou Omar Abu Anas, acabaram sendo mortos pelas tropas de al-Assad, mas a biblioteca permaneceu aberta, pese ter sido alvo, em finais de 2015, de uma bomba que destruiu dois dos seus pisos.

Em Dezembro de 2014, um dos rebeldes, Shadi, conseguiu que lhe trouxessem uma Canon 70D. Foi levada por uma mulher, de que ele nunca soube o nome, que escondeu a máquina nas vestes e percorreu de noite o caminho até Daraya, uma das estradas mais perigosas e mais mortíferas da Síria. Graças a este gesto de tremenda coragem, Shadi pôde fotografar e filmar as bombas ainda no ar, prestes a explodir, ou os seus devastadores efeitos no solo, imagens depois transmitidas para o exterior através da Internet ou das redes sociais.

Em 2016, depois de 1.352 dias debaixo de bombas, sem água potável nem electricidade, e após umas breves tréguas, as tropas de al-Assad entraram finalmente na cidade. A biblioteca de Daraya teria o mesmo destino de outras livrarias-mártires: a de Sarajevo, em 1992, com perda de um milhão e meio de livros; a de Tombuctu, em 2013, 20 mil manuscritos destruídos pelas milícias islâmicas; a de Mosul, arrasada pelo Daesh em 2015; as mais de 700 bibliotecas da Ucrânia devastadas pelos russos e, há pouco, todas as treze bibliotecas de Gaza, destruídas ou seriamente danificadas.




Na sequência de um acordo precário, os rebeldes foram evacuados em três dezenas de autocarros rumo a Idlib, no noroeste do país. Ahmad e os seus companheiros levaram consigo o tesouro mais precioso que tinham – livros – e, mantendo o vício das palavras, ali montaram uma biblioteca itinerante, muito popular e sempre muito concorrida. A seguir, partiram para lugares longínquos. Residem hoje na Turquia e em França, por aí. Centenas de outros, mais de 700, entre os quais 63 crianças, tiveram menos sorte. Com que palavras morreram? 



 

          O mundo de ontem

 

Em 2017, um ano depois do fim do cerco, Delphine Minoui publicou em livro a história extraordinária da biblioteca de Daraya. Desde que o comprei há pouco, na livraria Palavra de Viajante (obrigado, Ana Coelho), tenho-me perguntado se um dia também ele não será resgatado por um grupo de jovens rebeldes das ruínas e dos escombros de uma guerra a cada hora mais iminente. Que palavras guardaremos quando formos todos mortos?

Muitas, decerto, pois o Zeitgeist é verboso, palavroso e, sobretudo nos últimos tempos, a incompreensão e o medo impelem-nos a falar em excesso, talvez como resposta à torrente de impropérios e desvergonhas que, num caudal demencial, aflui diariamente do outro lado do Atlântico, numa estratégia de “choque e pavor” a que inelutavelmente cedemos, pois, com as debilidades que acumulámos ao longo de décadas (v.g., na defesa, na economia, na tecnologia), outro remédio não temos. É espantoso observar como, em poucos dias ou semanas, as antigas batalhas das palavras, “woke” de um lado, “fascista” do outro, pertencem agora a um mundo de ontem, aquele em que éramos felizes e não sabíamos.

Enquanto a Oriente impera o mais loquaz dos silêncios, com a potência ascendente à espreita, sempre sábia, na Europa e no que resta da América os intelectuais e os opinion-makers concorrem entre si para encontrar o melhor qualificativo para o inqualificável, recorrendo a expressões como “autoritarismo democrático”, “autoritarismo competitivo”, “tecno-oligarquia” ou até “neofascismo”. Mesmo conceitos como “populismo” ou “polarização”, outrora tão em voga, parecem ter caído em desuso, ultrapassados que foram na voragem das palavras, a cada dia mais contundentes – e alarmantes.

Os mais eufemísticos falam de “um presidente transacional”, apresentando Trump como um fala-barato disposto a tudo negociar, até a mãe ou a Ucrânia, com isso ocultando o que de mais sinistro nele existe, um ditador em potência e já em acto. Outros, porventura mais ingénuos ou insensatos, referem-se um momento “disruptivo”, como se tudo não passasse afinal de um sonho mau, mas passageiro, do qual em breve todos acordaremos.

A desfaçatez vai ao ponto de nos quererem convencer de que estamos perante uma orteguiana “rebelião das massas”, um natural e saudável movimento contra as “elites” e as “oligarquias”, só por acaso protagonizado por um milionário corrupto várias vezes falido, com a cumplicidade submissa e interesseira dos homens mais ricos do planeta, aqueles de quem mais se esperaria coragem e independência, que nos venderam ser as grandes virtudes dos “empreendedores”.

Em todo este desconcerto, há, contudo, uma lógica e um propósito precisos, evidentes: quanto mais acreditarmos no inverosímil, mais este se torna real e assim tudo será permitido, até sair imune de um homicídio na 5.ª Avenida em pleno dia, de um assalto ao Capitólio ou de 34 condenações judiciais por fraude, uma das quais envolvendo o silêncio pago de uma actriz hard-core.

De facto, não precisa ser verdade, basta só que acreditemos. Que acreditemos no vice-presidente dos EUA quando este, num cúmulo de cinismo e hipocrisia, se arvora em paladino da “liberdade de expressão” na Europa, enquanto na Casa Branca impedem o acesso dos jornalistas que não adiram ao novel “golfo da América”. Ou que acreditemos em Musk, que em 2016 prometeu voos tripulados para Marte em 2022, três anos antes da data prevista, depois adiada para 2024, para 2025 e agora para… 2028. Não precisa ser verdade, basta só que acreditemos.

Por tudo isto, e o muito mais que ainda veremos, é hoje muito grande, e muito avassaladora, a sensação de cerco e sequestro, experienciada por cada qual no seu íntimo, na solidão do seu eu, no interior da família, no apertado círculo dos mais próximos. É como se estivéssemos todos na biblioteca clandestina de uma cidade sitiada pelos bárbaros, sem outro amparo que não o das palavras e das imagens, dos livros, dos jornais. Assim morramos com eles.

 

            António Araújo