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segunda-feira, 10 de março de 2025

Deste lugar onde escrevo.

 


                                                                                                                                       1951

 


Vivo aqui há trinta anos. Do lugar onde isto escrevo, a três, quatro minutos a pé, estiveram estacionadas as tropas de Afonso Henriques antes de tomarem a cidade aos mouros. Em resultado disso, o rei mandou que se erguesse um mosteiro, em cumprimento da promessa que fizera antes da batalha, cujo desfecho vitorioso permitiu que hoje eu possa escrever isto aqui, deste lugar onde escrevo. Mais tarde, já no tempo de outros reis, aqueles que nos ocuparam durante quase uma centúria inteira, o mosteiro foi reedificado pedra sobre pedra, adquirindo as formas que ainda hoje mantém, e que podem ser observadas nas selfies que os turistas vindos nos tuk-tuk depois propalam pelo Instagram fora, com eles no primeiro plano, e o monumento em segundo. Nos trinta anos que aqui levo, neste lugar onde escrevo, vi só um pedaço do mundo, mas muito mundo aqui vi: caíram o Muro e as Torres, mostrando a fragilidade dos impérios, houve um cortejo de guerras e de outros tantos desastres, uns mais naturais do que outros, migrações, turbulências, com um Portugal de permeio, governanças sucessivas, triunfos do Glorioso. Acontecimentos de grande impacto, que a todos por certo abalaram, mas que vistos de aqui pouco interessam, não sendo sequer falados. Problemas à séria, esses sim amplamente ventilados, são os do estacionamento e o dos buracos no pavimento, foi o não haver luz na rua meses a fio, anos quiçá, pese as múltiplas diligências e insistências dos moradores mais activos e interventivos junto da junta e da câmara, com cartas para a EDP, até em formato papel. No plano das instituições, o ódio à EMEL continua por aqui em níveis muito elevados e têm grafitado regularmente o palácio que o cantor espanhol famoso comprou ao lado do mosteiro, “Free Palestine” e assim, mas agora já vai em “Morte a Israel” e “Israel = Nazi” (esta, no coreto da Graça). Fechou, e isto já há um bom par de anos, a mercearia da dona Ana e do marido, cujo nome eu nunca soube, e onde punham os preços todos à mão, com autocolantes em cada artigo, um a um, o dia inteiro naquilo. À esquina, em frente de onde querem fazer um hotel, prossegue a bom ritmo e sem falta de freguesia a funerária que fez o enterro do Cunhal e espero que faça o meu. Abriu um indiano a meio da rua, mas fechou pouco depois, suspeito que por queixas de insalubridade feitas pelo comércio do lado, Zezé Cabeleireiro, o brasileiro que me apara o cabelo e faz a barba (na tropa diziam desfazer a barba). Além dos dois filhos que têm, um dos quais chamado Enzo, o Zézé e a Joyce, que abriu um salão na rua, mais abaixo do marido, trouxeram para casa há uns meses uma pretinha de São Tomé, cuja mãe teve nove de enfiada, todos dados para adopção. No mais, a carteira continua maluca e põe gorro vermelho por alturas do Natal, saiu a padeira bêbada para dar lugar a outra que fuma à porta, o João está a dormir no coreto e já não arruma no mosteiro, ficou só o Djaló. Por vezes, quadros de miséria: os drogaditos tão escanifraditos, coitaditos, os bêbados inchados roxos, uma mãe a gritar com o companheiro ao telemóvel, com a filha de ambos a chorar ao lado. Vai de vento em popa uma loja de artesanato chamada “By Nunes” e ao virar da esquina, já em Santa Marinha, o sr. Mohammed Taj Uddin, vindo do Bangladesh com a numerosa família, abriu uma loja de artigos variados (para que não houvesse erros na grafia do nome completo, pedi ao sr. Mohammed Taj Uddin que mo apontasse num papelito, que aqui transcrevo). Ao fundo da rua, grande sucesso de público tem tido, merecidamente, o restaurante sofisticado do casal Mário e Werner, um português de gema, o outro suíço de nascimento. Deste lugar onde escrevo, mesmo por baixo de mim, também permanece exitosa a loja de azulejos da Cristina, onde o Miguel-filho agora dá cursos e workshops a miúdas estrangeiras bem giras. A oficina-loja é na antiga farmácia do sr. Pereira, que agora vende relógios na Feira, e o ateliê onde o Miguel-filho dá aulas fica onde antes era uma padaria, cuja funcionária saudosa, uma bruxa já velhota e desdentada, gritava muitos filhos da puta! (com a variante filhos da puta dum cabrão!) sempre que na rua passavam carros com estrépito ou buzinadela. Neste lugar onde escrevo, muito turista, muito dragão tatuado, muita minissaia ululante, mas nota-se menos, não sei porquê, o corrupio matinal das mulheres das limpezas dos alojamentos locais, que outrora andavam sempre ajoujadas com muitos sacos azuis do IKEA, daqueles dos bons. Mas no ano em que isto escrevo, e já vamos em Novembro, o acontecimento mais marcante e impactante foi, sem sombra de qualquer dúvida, o encerramento há muito ameaçado d’O Cantinho, café-bar com esplanada, que também fazia as vezes de centro de dia e antro de batota, que a dona Fernanda e o sr. Zé aqui tinham tomado de trespasse no dia 2 de Agosto de 1986, 38 anos certinhos. Tinham vindo ambos do Norte, ele de Monção, ela de Góis, conheceram-se no Pereira de Alfama, o do cozido afamado, a Fernanda na cozinha, primeiro só a ajudar, ele a servir às mesas. Começou em 9 de Junho de 1975, ainda sabe a data certa de cor, e aí conheceu gente muito relevante dos tempos da revolução, o Rosa Coutinho e o outro, o Almeida Santos, e o outro que agora não me lembra o nome. Aqui cresceu-lhes um filho, o filho, o Filipe, que foi carteiro primeiro e depois mudou para a Uber, e que aqui casou, divorciou, foi pai de um menino e de uma menina, Leonor como a minha mais velha, e cujo sonho maior é ter um dia um iPhone (“daqueles da maçãzinha”, complementou o avô). Em contrapartida, poucos notaram a partida da dona Teresa, que desde que enviuvou ficou uma sombra, e já estava num lar, julgo que da Santa Casa. A vizinha ao lado dela, de quem nunca soube o nome e nem sei se tem filhos e netos (se tem, nunca os vi), continua a acenar-me sempre que lhe passo à janela, umas vezes com o cão, outras não. Um país em miniatura, Portugal dos Pequenitos visto da minha janela. Fiz obras em casa, tenho duas no Erasmus, e, pese o que para aí dizem sobre as alterações no clima, a luz de Lisboa continua um espanto. Assim morramos com ela.  


Escrito no dia da morte do meu amigo Pedro Machete (1965-2024).   

                                                                                     

                                                                               António Araújo





domingo, 25 de fevereiro de 2024

Cesário Verde.


 



Neste mesmo dia, em 1855, nasceu na baixa de Lisboa um filho de comerciantes. O pai tinha uma loja de ferragens na Rua dos Fanqueiros e esse filho, varão primogénito, foi encaminhado para a gestão dos negócios. Assim foi: em adulto, geriu a loja e lidou, também, com a exportação de fruta e vinhos, outro negócio da família. 

Acontece que este jovem chamado Cesário Verde viu morrer duas irmãs e um irmão. E que também ele, dos 22 anos até aos 31 com que morreu, padeceu da tuberculose que matou dois desses irmãos. Tamanho sofrimento familiar, mais as leituras que o moldaram, fizeram dele um observador sensível ao que o rodeava, em particular às vivências dos mais desfavorecidos. 

A poesia de Cesário Verde relata a pulsão de vida e o dinamismo do comércio na baixa lisboeta: os navios que chegavam e partiam, o rebuliço de gente, a força e a graça das varinas. Mas mais do que isso, fala-nos da sujidade, da pobreza, dos moribundos de cólera, peste e tuberculose, doenças que grassavam nos bairros pobres. Conta-nos, também, que nas noites sepulcrais de Lisboa, que lhe despertavam “um desejo absurdo de sofrer”, se ouvia um barulho aterrador vindo do Aljube: eram as “velhinhas e crianças” lá presas a baterem nas grades. 

A essa Lisboa decadente, e também à soturnidade industrial de Londres e de Liverpool, Cesário preferia o ar puro e a viçosidade da quinta de família em Linda-a-Pastora, nos arredores de Lisboa: a terra que sempre fazia brotar vida, as abelhas que “engordavam na vindima” e polinizavam, a poda das videiras, o trabalho braçal, dele próprio, dos seus e dos contratados. 

Tanto os seus poemas urbanos e decadentistas, entre eles “O Sentimento de um Ocidental”, como os pastoris, de que se destaca “Nós”, foram ridicularizados ou simplesmente ignorados pela crítica literária da época. Os poetas queriam-se eruditos e românticos, não a versejar sobre “o peixe podre [que] gera os focos de infecção”. Cesário Verde morreu sem saber que viria a ser considerado um dos principais poetas da modernidade portuguesa. Para isso foram essenciais o seu amigo Silva Pinto, que coligiu os seus poemas em livro, e Álvaro de Campos, o heterónimo de Fernando Pessoa que venerava Cesário Verde. 

Republicano convicto, é homenageado em Lisboa, desde o início da década de 1920, através de um Jardim Cesário Verde. E o Estado Novo, que nele se inspirou para a propaganda da ruralidade, acrescentou a esse jardim o busto que aqui vemos.  

 

                                                           Rui Passos Rocha


quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

A inenarrável maldição que caiu sobre o Martim Moniz.

 

 



 

Martim Moniz, Como o desentalar e passar a admirar, por José Ferreira Fernandes, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2023, dá-nos um olhar pessoal sobre um lugar/região que vive há décadas num tremendo desconforto como espaço histórico de deslumbrante e enigmática paisagem com uma envolvente de mamarrachos e uma estrambótica ocupação da praça que dá arrepios. Recordo em 1951 o Teatro Apolo, já à beira do camartelo, num ambiente de passado mal gerido, a igreja do Socorro, como em miúdo também frequentei o Cinema Piolho, de nome Salão Lisboa, e o espanto que senti vendo passar o elétrico em direção ao cemitério do Alto de S. João por debaixo do Arco do Marquês do Alegrete. Creio que os paisagistas, urbanistas, presidentes da edilidade, olissipógrafos, nunca se entenderam muito bem nesta culminância da Av. Almirante Reis, as bermas da Mouraria e seus caminhos para S. Tomé e rua do Benformoso, por um lado, e toda aquela encosta que decliva para S. Domingos e que sobe para o Desterro. Deitava-se abaixo sobras do terramoto e teatros, reformavam-se palácios, e depois os autores da terraplanagem ficavam embasbacados com o terreno ermo que veio a servir de parque automóvel, de teatro abarracado e que deu origem a dois centros comerciais que desfiguram a paisagem, não houve coragem de limpar do terreno a Senhora da Saúde, que lá se aguenta perto da rua do Capelão, e de paredes meias com pavilhão de vendas multiétnico. O espantoso de tudo é que a malta de dezenas de países que aqui vêm buscar dinheiro para mandar para as famílias e até segurança que não encontram nas pátrias por ali circulam, mercadejam, nas redondezas pernoitam e durante o dia circulam pela praça, certamente atraindo a curiosidade dos muitos milhares de turistas que por ali vão tomar o elétrico 28.

Gosto muito do olhar de Ferreira Fernandes, dos seus comentários ousados para que se encontre uma solução para este Martim Moniz que se transformou numa marca d’água do Portugal universal. “Este livrinho não é para traçar riscos na cidade, não sou arquiteto, urbanista, político ou visionário. É só para relembrar o largo pelo tanto que ele merece. Simples lisboeta, instado pelas autoridades camarárias a pronunciar-me como qualquer cidadão, digo o que há para dizer: oxalá!” E entram em cena o boxeur Blarmino, que deu um excelente filme de Fernando Lopes, em 1964, já a igreja do Socorro e o palácio do Marquês do Alegrete tinham sido arrasados a seguir à Segunda Guerra Mundial, bem como o Teatro Apolo e o Arco do Marquês do Alegrete. Tudo arrasado, agora é a minha vez de recordar, meteram para ali uns armazéns com lojas de ourivesaria, sapataria, flanelas e roupa de cama, autênticos pavilhões a ocupar a praça que aguardava uma solução estética. Em frente a S. Domingos cresceu o Hotel Mundial, com saídas e entradas paradoxais: uma saída que passava junto à abside de S. Domingos, as lojas Porfírios, com saídas para a Travessa Barros Queirós e Praça da Figueira; do outro lado, sai-se para o largo do Martim Moniz, com vistas para um correnteza de prédios comerciais de estética duvidosa, viramos à direita entra-se num local histórico de nome Poço do Borratém, ou virando à esquerda fica-se confrontado pela Mouraria, o visitante detém-se na praça, e pode ficar de frente de construções de traça louvável e harmoniosa que pode levar para o Desterro ou enfiar, infletindo à esquerda para a colina de Santana. Mas o paradoxal e grotesco da praça ali está, de pedra e cal.

Ferreira Fernandes socorre-se de imagens antigas, fica-se abismado diante de uma fotografia tirada por Judah Benoliel, em 1958, a capelinha da Senhora da Saúde e a praça arrasada, o contraste é brutal com outra foto revelando prédios de habitação, tudo desaparecido.

E houve o Martim Moniz das tascas e fadistas, no fundo no sopé da Mouraria, recordam-se as imediações, como e quando António Costa, então presidente da Câmara, se instalou num Intendente então de pouca fama, fala-se da camioneta fantasma e do assassinato do Almirante Machado dos Santos, dos espantos da Mouraria, do longo percurso histórico desta praça que entupia a cidade, não faltam os sonhos megalómanos de edis que aqui pretenderam fazer experiências revolucionárias, consta que se quer avançar para aprazível jardim, um misto de local de passagem e de repouso (coisa difícil de acreditar), Ferreira Fernandes recorda o passado dos teatros e não se esquece de referir o Bolero Bar, antro onde se misturavam as prostitutas com os intelectuais, tinha engraxador e o bife da casa. Depois aconteceu a implantação dos centros comerciais, com cheiros a especiarias e têxteis asiáticos, faz-se o reparo às esculturas de Gracinda Candeias na estação do metro de Martim Moniz e até ao trabalho artístico de Eduardo Nery, obviamente que se fala da Severa e do Fado Malhoa e assim avançamos para o grande final, o cronista e repórter sonha que esta praça, riquíssimo património do passado, mal enjorcada, poderá ter um futuro ridente, um cruzamento para dezenas e dezenas de pessoas de outros povos aqui se encontrarem, até mesmo abrirem tenda, uma coisa assim:

“O milagre é o dia, um primeiro domingo de maio, em que um político português – um de qualquer cor, mas inteligente, solidário e ambicioso – se meter na posição de Nossa Senhora da Saúde. Perguntaram-lhe porquê e ele confessou: ‘Procuro um upgrade na minha vida pública, quero tudo!’ O facto é que durante a procissão ele teve uma visão. Confirmando que o que ele queria mesmo era fazer em grande, candidatou-se, em 2025, a presidente da Câmara de Lisboa. Que maior glória pode ter um político português do que ter na mão o destino da praça Martim Moniz?”

Ferreira Fernandes tem um sonho bom ao gerar este espaço de diálogo entre pessoas, num tu cá, tu lá, gente de vários orientes, então mulheres que não aceitam a segregação nem a discriminação, aqui se reunirem para que todas as mulheres sintam o sabor da grandeza de que é aprender a ler e ganharem autonomia…

É um sonho de tornar esta praça um encontro de todos os continentes, uma forma de sarar feridas de tanto derrube de igrejas, palácios, teatros e de centros comerciais de mau gosto, mas onde felizmente circulam gentes enérgicas e mexidas. Não passa de um sonho, o que se escreve neste livro é a tal viagem a uma praça confusa e fascinante, praça radial e radiosa, lugar de fado e do cinema português, dos marialvas, artistas e imigrantes. De população antiga e de recém-chegados. O autor tem uma certeza: o Martim Moniz saberá reinventar-se. Oxalá seja verdade.



                                                                        Mário Beja Santos

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Não há memórias da Lisboa do Estado Novo como estas.

 

 



 

Jorge Calado, nascido em 1938, doutor em Química-Física, professor catedrático jubilado, escritor e publicista (continua como crítico cultural do Expresso desde 1986), dá-nos um livro surpreendente (Mocidade Portuguesa, por Jorge Calado, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2022), não se cansa de nos advertir de que goza de uma memória ímpar e sobre ela tece considerações avulsas que acabam por enriquecer a viagem inesquecível que nos proporciona, assim: “A memória é multidirecional e funciona nos dois sentidos: na juventude, usamos a memória para projetar o futuro, na velhice, para recordar o passado. A inflexão ocorre algures pelo meio. Quando relatava factos, usos e costumes da minha infância, notava que grande parte dos meus interlocutores os haviam esquecido, enquanto os jovens me escutavam como se eu estivesse a contar histórias da carochinha.” Dirá mais adiante: “Hoje vejo a memória como um museu cujo conteúdo é preciso estudar, preservar e divulgar.”

Estamos, pois, em finais de 1930, o Jorge nasceu em casa, com acompanhamento da parteira, não esqueceu a tradição do Dia de Reis, pois nasceu a 6 de janeiro, e lembra-nos as guloseimas daquele tempo, não nos vai encobrir as suas predileções de gastrófilo e gastrónomo: “Tenho saudades dos sabores da minha infância, quase todos oriundos do Ribatejo: os bolos-de-cabeça, a broa de milho, a morcela de arroz, a uva-maçã cor-de-rosa e carnuda, a erva-doce das broas de Todos-os-Santos, os ouregos para temperar o tomate acabado de colher.” Despertou pela observação e a cozinha foi um dos seus laboratórios: “Gostava de seguir as mãos habilidosas da minha mãe moldando as massas cruas em formas estranhas. Uns pós ou cristais (farinha, açúcar, fermento ou bicarbonato de sódio, às vezes sal) mais uns líquidos (água, leite, porventura um cálice de licor ou de vinho do Porto) e uma pasta (manteiga), vida em miniatura (ovos), e proporções variáveis, formavam o barro primordial de que eram feitos doce e salgados. Verifiquei que no girar e bater é que estava a graça, e que a consistência, isto é, a viscosidade e plasticidade da massa, mudava com o trabalho mecânico da colher de pau. Eram as minhas primeiras aulas de reologia, a ciência que estuda a deformação dos materiais sob a ação do trabalho aplicado. A cozinha não era o estômago, mas sim o coração da casa.”

Tudo vai da hora a que o leitor se vai assombrando com esta narrativa, haverá sempre o despertar o apetite com sopas e guisados. Segue-se o quadro das refeições, não esqueceu o papel axial das sobras, naqueles tempos a palavra desperdício era anátema. E descreve a vida doméstica, apresenta-nos os familiares, vive num ambiente de classe média que não fugia ao paradigma de que a poupança era dogma de fé, na sua juventude conhecerá as senhas de racionamento, claro está que os portugueses procuravam o tradicional desenrascanço. E para os mais novos aborda um tema que deve ser sentido como historieta e nada mais: “A roupa passava dos mais velhos para os mais novos. Fatos antigos e gastos do meu pai eram oferecidos aos membros mais necessitados da família, e depois adaptados ao novo corpo. Coisas velhas, avariadas ou partidas não se deitavam fora; antes eram recicladas e/ou remendadas ou passajadas. Aplicavam-se cotoveleiras às mangas de casacos e camisolas puídas pelo uso, e nós fundilhos aos calções gastos; viravam-se punhos e colarinhos às camisas coçadas do meu pai; os sapatos levavam tacões, biqueiras, meias solas ou solas inteiras novas (…)”. Não esquece as costureiras e o seu papel crucial na economia doméstica. Rememora a lida da casa, então toda ela manual, só pelo adiante é que lá apareceram o frigorífico e o aspirador (e o esquentador?). E há recordações da comunicação social da época, a rádio estava então no altar. E traz para primeiro plano uma questão higiénica, não completamente ultrapassada, mas de aspetos momentosos no tempo: “É difícil imaginar hoje o que era a vida quotidiana numa época em que não havia inseticidas e antibióticos. Ele era percevejos, pulgas, piolhos, formigas, melgas, além das omnipresentes moscas e baratas. As técnicas usadas para os exterminar eram as mais variadas. Para as baratas usava-se a barateira, uma espécie de gaiola de madeira com janelas de rede metálica, e uma entrada única no topo onde se enfiava uma manga de vidro. À noite, atraídas por um isco – em geral um naco de pão embebido em vinagre – as baratas entravam mas não conseguiam sair; na manhã seguinte eram escaldadas com água a ferver. O cheiro da barata cozida era nauseabundo, e passado pouco tempo tinha de se substituir a barateira porque o odor da barata cozida também as repelia.”

O Jorge dá-nos a saber o que era ler, escrever e contar, faz-nos emergir na sua instrução primária, nas suas leituras. Voltamos ao universo doméstico, ao pessoal que ali trabalhava, são descrições tocantes, o que ele guardou do mundo de lazeres, das audições radiofónicas é impressionante, como o abastecimento feito pelo comércio local. Outra história da carochinha é a alusão que ele faz à vizinhança, outra descrição primorosa, vamos percorrer aquele prédio da rua da Artilharia 1 por inteiro. Nesta altura da narrativa o leitor mais arredio já foi apanhado pela gola do casaco, a leitura passou a ser compulsiva, a descrição que Jorge Calado nos dá do azul é macroscópica, irrepetível. E daqui saltamos para Campolide e arredores. As pessoas dialogavam: “As fachadas dos prédios não eram mudas, como é o caso no tempo presente. As pessoas tinham tempo para estar à janela a ver quem passava na rua ou para traquinar na varanda. Como na ópera em tempos remotos, a varanda ou sacada era um camarote de observação e negócio. Conversava-se com os vizinhos, regateava-se com os vendedores ambulantes, acenava-se a amigos e conhecidos.” E há o bulício da rua e do bairro, os vendedores e as vendedeiras e os seus pregões, era um grande espetáculo.

Estamos, pois, em Campolide e vamos conhecer as redondezas. Aquela memória é exclusiva, vamos entrar na Farmácia Lab, na rua Rodrigo da Fonseca, o Jorge ia lá às vezes com a prima São comprar ventosas e/ou bichas, rebuçados peitorais, alguém vinha da farmácia dar injeções a casa. Aqui ou ali há apontamentos pessoais, é o caso do professor Pulido Valente, havia a consideração pelos mestres da ciência e do civismo. Entraremos no âmago familiar, não faltarão tias-avós e muitos primos, e por vezes acontecia um imprevisto como a chegada do tio Benjamim que foi viver lá para casa, um acontecimento. Não conheço memórias como estas, está aqui a moldura do Estado Novo vista do lado de uma classe ascendente, com o seu estatuto próprio, conhecerá um crescimento ímpar quando chegar a sociedade de consumo, então as classes médias passarão ao grau de decisores do sistema político. Teremos aqui as leituras de Jorge Calado, a vida de liceu, a chegada ao mundo peculiar do cientista, onde ele se revelou um divulgador sem rival, um exemplo: “Os aspetos mais belos da ciência está na sua habilidade em tornar simples aquilo que é verdadeiramente complexo. Quando eu era estudante li algures que a diferença entre a Física e a Química estava no facto da primeira lidar com problemas conceptualmente simples que podiam ser matematicamente resolvidos de modo exato, ao passo que a Química tratava de problemas complexos cuja solução era aproximada. A queda de um objeto no vácuo por ação da gravidade pertence à Física; a reação explosiva do oxigénio com o hidrogénio para formar água cai no domínio da Química. Conclusão: a Física é mais limpa que a Química.” Trata a sua vida sentimental com discrição e ternura, nada de espalhafatos. E conclui esta obra absolutamente original quando eclode entre nós a Covid-19.

Memórias vívidas, a comunicação é esmerada, pode tratar-se de ficção autobiográfica, mas do que não duvido é de que se trata de uma narrativa portentosa e a escrita é belíssima.

 

 Mário Beja Santos





sexta-feira, 8 de abril de 2022

Histórias sobre Lisboa, peripécias com uma criatividade apurada, Lisboa agradece.

 

 



 

Trata-se de um guia destinado a turistas que pretendam um desdobrado e fresco olhar sobre esta cidade infinita, de muitos pergaminhos e porto de abrigo para vários povos, hoje destino incontornável para visitantes que procuram a melhor mistura entre passado e vanguardas. É esta a essência do roteiro Lisboa em 10 Histórias, por Joke Langens e Dirk Timmerman, Casa das Letras, 2022, não conheço incursão tão invulgar para enaltecer uma das capitais mais antigas da Europa, um olhar remoçado e destinado a leitura perpétua.

Tudo começa na Mouraria, passa por animais exóticos que monarcas poderosos expediram pela Europa fora, há a narrativa de um terramoto que reconfigurou o centro da cidade, descobrem-se ligações entre as invasões francesas e o fado, pede-se ao visitante que olhe com desvelo a calçada portuguesa, os elevadores que sobem e descem colinas, recorda-se aos mais esquecidos que a neutral Lisboa era percorrida por espiões dos Aliados e do Eixo, do incêndio do Chiado o arquiteto Siza Vieira remontou as peças queimadas da Baixa, introduzindo-lhe uma pitada de vida de bairro, avançamos para a Expo 98 onde se desenhou uma cidade futurista que parece querer avançar entre as ruínas do passado da Lisboa Oriental  e, por fim, fala-se de Bordallo II, alguém que mexe no lixo para construir animais emblemática, é manifestação de vanguarda porque que tais animais são feitos do mesmo material que ameaça a sua sobrevivência. São estes os episódios que o roteiro explora, e com êxito absoluto.

Digamos que este guia aparece vocacionado para acicatar a curiosidade do forasteiro. Ele entra na Mouraria, não poderá haver a Grande Mesquita, nem os becos estreitos e serpenteantes, nem as figueiras e oliveiras desses descendentes da mourama, poderá é contemplar a vida multiétnica ali para os lados do Martim Moniz, subir até às colinas da Graça e tomar nota do que seria a vida muçulmana antes de D. Manuel I ter decretado, em 1496, a expulsão de judeus e muçulmanos, agora os tempos são outros e por ali circulam pessoas vindas da Europa, África, América do Sul e Ásia. “Na Mouraria contemporânea coexistem muitos mundos, que nem sempre se encontram. Apesar da abundância de nacionalidade e de comunidades, diferentes grupos preferem diferentes partes do bairro, com a Rua dos Cavaleiros a funcionar como uma espécie de fronteira flexível. Mesquitas e Bollywood de um lado, igrejas católicas e fado do outro, as comunidades estrangeiras tendem a estabelecer-se mais na zona baixa da Mouraria, como o Intendente ou Martim Moniz”.

E conta-se que esse mesmo D. Manuel I resolveu enviar um elefante ao Papa Leão X, era uma oportunidade de ele mostrar a magnificência do império português, e em 12 de março de 1514 o elefante ajoelhou-se perante o Papa, dançou ao som de música e pulverizou água sobre a multidão delirante. Há também a chegada do rinoceronte a Lisboa, preparou-se um duelo com um outro elefante, tudo acabou sem incidentes. E este rinoceronte de nome Ganda, esteve destinado a ser nova oferta ao Papa Leão X, morreu durante a viagem devido a uma tempestade no Mediterrâneo. E há também a história daquele elefante, de nome Suleiman que foi eternizada por José Saramago no seu romance A Viagem do Elefante.

O que se conta sobre a desgraça que ocorreu em Dia de Todos os Santos, em 1755, é uma catástrofe natural que já foi alvo de milhares de narrativas, mas o que se escreve para forasteiro tem intensa vibração, basta imaginar esse leitor num lugar icónico, assim: “A monumental praça virada para o Tejo foi denominada Praça do Comércio, em homenagem à atividade comercial que tinha trazido vida à Baixa de Lisboa. A praça já não albergava o Paço Real, pois D. José I não tinha intenções de reconstruir o palácio no mesmo local onde tinha sido reduzido a pó. O poder Real, era, no entanto, representado pela estátua de D. José I. A Praça do Comércio era a coroa simbólica no topo de todas estas inovações pombalinas. Uma das maiores praças da Europa, abre-se majestosamente em direção ao rio Tejo. Nos séculos seguintes, este rio traria inúmeros visitantes a Lisboa. O arco triunfal da Praça, saudá-los-ia e mostraria como a capital portuguesa se tinha erguido como uma fénix das ruínas e das cinzas”.

Muito surpreenderá ao leitor como se processou a ascensão gradual do fado, como este se ergueu a canção nacional, que acontecimentos motivaram tal ascensão nomeadamente a partir do século XIX, a seu propósito falar-se-á da Severa e de Amália Rodrigues, e daqui avançamos para a calçada portuguesa, uma das singularidades artísticas que muito deve à determinação de Eusébio Cândido Furtado, tenente-general da prisão do Castelo de S. Jorge, que encontrou a solução de ocupar os seus presos pondo-os a pavimentar uma parte da cidade, deve-se a este general os desenhos da praça do Rossio e depois esta loucura de pedra calcária espalhou-se como uma febre por toda a Lisboa, a calçada tem dons universais, encontramo-la em Ponta Delgada, nas antigas colónias portuguesas, mas também na cidade do Cabo, nos EUA, e muito mais. E explica-se ao forasteiro a sua proveniência: “O calcário branco tem, de preferência, uma superfície lisa e brilhante. O mesmo só pode ser extraído de um número limitado de locais, como as Serras de Aire e Candeeiros – cadeias montanhosas partem do Maciço Calcário Estremenho, e na costa algarvia. A pedra de lioz, um tipo de pedra calcária portuguesa dos arredores de Lisboa, pode ser utilizada como alternativa. Nos primeiros tempos da calçada portuguesa, a rocha basáltica era utilizada para formar os elegantes padrões negros na pedra calcária. Mas como o basalto tem uma pontuação bastante elevada na escala de resistência, foi posteriormente substituído por pedra calcária preta. Muito mais difícil de encontrar do que o seu homólogo branco, a pedra calcária preta, de locais como Mem Martins ou Porto de Mós”. É uma das mais belas e inspiradas observações que os autores nos deixam.

Impõe-se brevidade para estimular o leitor a esta leitura, será surpreendido com o historial dos nossos ascensores, com as voltas e reviravoltas da Lisboa em espionagem durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo foi aqui o local de algumas das negociações do armistício entre a Itália e os Aliados, Hitler foi completamente surpreendido com a rendição da Itália, a 8 de setembro de 1943, também se contam as histórias de célebres agentes duplos como Dusko Popov e Juan Pujol de Garcia. E muito de fascinante há a ler sobre Siza Vieira e o Chiado, a Expo 98 e Bordallo II e os seus animais feitos a partir de resíduos urbanos.

Leitura imperdível.


Mário Beja Santos

 

 

segunda-feira, 4 de abril de 2022

A Lisboa do Estado Novo em plena Segunda Guerra Mundial.




A Lisboa do Estado Novo em plena Segunda Guerra Mundial:

Vibrante como um esplêndido thriller, ao nível do grande rigor historiográfico

 



Dez anos depois da primeira edição, este professor catedrático da University College London é republicado em Portugal, trata-se de uma investigação apuradíssima, uma escrita cintilante e altamente acessível, credora de leitura atenta, Lisboa: A Guerra nas Sombras da Cidade da Luz, 1939-1945, por Neill Lochery, Casa das Letras, 2021. O autor defende que Lisboa foi uma encruzilhada fundamental oferecida por um país neutral que acolheu gente de muitas nacionalidades em trânsito para outras paragens, aqui trabalhou um número impressionante de espiões e se constituiu um centro de comércio de minérios raros, por Lisboa passaram celebridades, desde os Duques de Windsor, o traidor britânico Kim Philby, a colecionadora de arte Peggy Guggenheim, os artistas Marc Chagall e Max Ernst, os escritores Graham Greene e Saint Exupéry, mas também oposicionistas do nazi-fascismo sujeitos a severa vigilância e postos a viver na Ericeira ou nas Caldas da Rainha, sobretudo.

É um tempo único de uma cidade em cujo aeroporto aterravam aviões dos Aliados e do Eixo, de onde os hidroaviões partiam para as Américas. A figura central era Salazar, ele considerava que a Segunda Guerra Mundial incorporava duas grandes ameaças para o país: uma potencial invasão alemã ou espanhola e a possibilidade de o país perder o seu Império, quando se tornou inevitável a derrota alemã, Salazar passou a viver obcecado por uma Europa onde os soviéticos tinham um papel determinante político. O ditador certamente não desconhecia que o anterior Primeiro-Ministro britânico, Neville Chamberlain, tentara aplacar a sofreguidão territorial de Hitler oferecendo-lhe Angola. Ao longo  da sua primorosa e aguda investigação, Neill Lochery marca a distinção dos dois períodos em que mudaram as prioridades de Salazar durante a guerra, numa primeira fase, entre 1939 e 1942, dedicou-se a evitar a ameaça de invasão por parte do Eixo e de 1943 até ao termo da guerra teve de lidar com as cada vez maiores exigências dos Aliados, para estes assegurar os Açores como plataforma de tráfego aéreo era primordial. O autor não esquece a importância do volfrâmio, ingrediente vital da máquina de guerra alemã, irá dar enorme controvérsia a sua venda até ser sustada em 1944. E há uma polémica que permanece, não só em torno desse volfrâmio como de outras exportações, como o autor alerta: “Durante a guerra, o ouro era uma forma de pagamento muito mais segura do que o papel-moeda, mas os Aliados punham em causa as origens de uma grande percentagem dele. Afirmavam que esse ouro fora, num primeiro momento, saqueado nos países ocupados pelos alemães e, mais tarde, tirado às vítimas do Holocausto. No final da guerra, os nazis contrabandearam ouro para Lisboa, de onde partia para o Brasil e dali se dispersava para a América do Sul. Alegadamente, a caixa-forte do Banco de Portugal alberga até hoje barras de ouro marcadas com as insígnias nazis. Numa revelação embaraçosa, a Igreja Católica portuguesa foi obrigada a admitir que pagou obras no Santuário de Fátima com barras de ouro nazi que tinha misteriosamente obtido do Banco de Portugal”.

Neill Lochery descreve o burburinho da cidade, havia o fausto da Exposição do Mundo Português que contrastava com o estado da capital-refúgio: “Decadente, pobre e a precisar desesperadamente de se reinventar, Lisboa era, em setembro de 1939, uma espécie de Bela Adormecida descurada. A poucos minutos a pé da elegância dos cafés do Rossio, nem o espetacular céu outonal, de um azul vívido, era capaz de ocultar o facto muitos dos outrora belíssimos edifícios da cidade revelarem agora as consequências de décadas de má manutenção”. E é detalhado na descrição da apresentação da cidade, que à noite era uma cidade barulhenta, com cães a latir e os galos a cantar. “Enquanto as luzes se iam apagando pelo resto da Europa, Lisboa permanecia intensamente iluminada: os anúncios publicitários a cintilar no topo dos edifícios juntavam-se à ofuscante luz branca dos postos de iluminação pública”.

Temos uma narrativa sobre Salazar e o salazarismo, como o regime se foi preparando para a guerra, edificando a estratégia da neutralidade, acolhendo os fugitivos do nazismo e do fascismo, e temos uma observação dada pelo escritor Arthur Koestler, refugiado em lisboa durante 7 semanas, aqui encontrou inspiração para escrever o livro Arrival and Departure: “Lisboa era o gargalo da Europa, a última porta aberta de um campo de concentração, a maior parte da superfície do Continente. Ao observar-se aquela interminável procissão, percebia-se que o catálogo de razões possíveis para se ser perseguido sob a Nova Ordem era muito mais longo do que até um especialista podia imaginar: na verdade, ia do austríaco monárquico a judeu sionista. Nações, religiões e partidos europeus, todos eles estavam representados naquela procissão, incluindo nazis alemães da fação opositora e fascistas italianos caídos em desgraça”. Dá-nos o ponto da situação dos refugiados, o ato heroico de Aristides de Sousa Mendes, a tentativa rocambolesca dos alemães em querer capturar o Duque de Windsor, são mostradas as organizações judaicas que procuravam encaminhar o povo perseguido para a América ou até para a Palestina, temos o quadro movimentado dos espiões e até dos agentes duplos.

A entrada dos Estados Unidos na guerra introduziu um elemento novo, a corrida quase desesperada para comprar volfrâmio por parte dos alemães, a descoberta pela PVDE de uma rede britânica que viera organizar um plano de destruições no caso de haver uma invasão alemã, foi um período de péssimas relações entre britânicos e Salazar, fala-se inclusivamente do voo 777A em que morreu o ator Leslie Howard e Wilfrid Israel, uma figura fundamental no apoio aos judeus. E temos os Açores, cobiçados pelos Aliados, Salazar a demorar a resposta, ainda temia represálias alemãs, foram negociações penosas, Salazar sabia que não podia recusar o apoio que lhe era solicitado.

Assunto inevitável e quase omnipresente é a questão do ouro nazi, a sua proveniência dos bens espoliados aos judeus ou pilhado dos países ocupados. “Em 1943, já era claro que havia ouro roubado aos judeus. Esse ouro provinha de dentes, relógios, anéis e outras joias das vítimas do Holocausto, que eram posteriormente derretidos pela Casa da Moeda Prussiana e, em Frankfurt, pela empresa Degussa. De seguida, o ouro era transformado em barras e recebia o selo oficial do Reichsbank, de modo a aparentar ter uma origem oficial. As barras eram enviadas para o Banco Nacional Suíço, que as comercializava normalmente. Por volta do final da guerra, os alemães esforçaram-se por salvar o ouro encontrado em território alemão e francês. Lisboa era um destino óbvio: ali, poderia ser vendido na bolsa ou contrabandeado para a América do Sul”.

Obra indispensável para conhecer a visão do historiador britânico sobre o desempenho do Estado Novo e a importância de Lisboa durante a Segunda Guerra Mundial.

 


 Mário Beja Santos



segunda-feira, 5 de julho de 2021

A segunda decoração d’A Brasileira.

 


A segunda decoração d’A Brasileira:

Lembranças de José-Augusto França e de bela azulejaria no Corpo Santo, ao Cais do Sodré


 

Mário Beja Santos


 

A exposição evoca a segunda decoração d’A Brasileira, está patente no Museu Nacional de Arte Contemporânea, revela documentação em grande parte inédita da decoração anterior e podemos ver fotografias da colocação de pinturas nas paredes, que aconteceu na noite de 26 de junho de 1971, assim foram apeados os que lá estavam desde 1926. O visitante poderá obter informação do trabalho da primeira decoração que coube aos pintores Eduardo Viana e António Soares, e apareceu mesmo a obra deste último que se julgava perdida, como escrevem Maria de Aires Silveira e Raquel Henriques da Silva, a quem coube comissionar esta evocação, mesmo com muitas cumplicidades e apoios e muito estudo, não se encontraram vestígios do espólio documental do antiquário e decorador Joachim Mitnizky, que comprara, em 1970, os quadros envelhecidos da montagem de 1926. E alertam-nos as duas investigadoras, no quadro desta celebração, da importância histórica que teve e que tem A Brasileira, “para a urgência de salvaguardar e estudar os espólios de personalidades que, sendo nossas contemporâneas, estão sujeitas a um processo injusto de esquecimento”.



 


 

José-Augusto França no centro de um grupo que acompanhou a segunda decoração, ele é o autor privilegiado dos estudos da primeira e segunda decoração, inclusive romanceou um quadro de Almada e aparece numa obra de Nikias Skapinakis da segunda decoração

 

Imagem do transporte das obras de arte, em 26 de junho de 1971


 

Imagens dos quadros já montados na segunda decoração


Duas obras de Almada Negreiros que faziam parte da primeira decoração

 

 


Quadro As Banhistas em pormenor, permitindo analisar a mestria, a inovação e a revolução das formas que Almada trouxe ao 2º modernismo


 

Não é por acaso que A Brasileira goza da fama de estar entre os mais belos cafés do mundo

 


Uma imagem alusiva a um quadro de Jorge Barradas que fazia parte da primeira decoração, depois desaparecido


 


Quadro de António Soares, também presente na primeira decoração

  


Imagem alusiva a um recanto da icónica A Brasileira

 

 

 

Conhecedor dos trabalhos de José-Augusto França sobre as duas decorações d’A Brasileira, não posso deixar de felicitar quem organizou esta singela homenagem e revelou pormenores inéditos sobre a primeira. Feliz por tudo quanto visitara, desci a Rua do Ferragial, que anda bastante remoçada, até ao Corpo Santo, comecei por olhar para o escritório na esquina da Rua do Arsenal onde Fernando Pessoa escreveu algumas das suas obras memoráveis e virei-me para um estabelecimento que conheço desde pequeno e cuja azulejaria admiro tão profundamente. Felizmente há também quem estude os azulejos semi-industriais de fachada, as cartelas, os letreiros e painéis publicitários, até as estações de caminho-de-ferro, de um modo geral o nosso património de Arte Nova e Arte Deco guarda primores de valor incontestável, pois bem, aqui fiquei regalado frente a estes detalhes, até me apetece partir daqui para a Avenida Almirante Reis ou ir ver a fachada da Fábrica Viúva Lamego, depois deu-me na veneta e daqui vou em excursão sem, porém, vos deixar esta grata lembrança que captei no Corpo Santo. Laus Deo.

  



 


 


quinta-feira, 1 de julho de 2021

Como é possível?






Gostava de perceber como é que em Portugal 2021 um palácio do Estado, no centro de Lisboa, pode ser roubado e vandalizado. Infelizmente, é verdade: na Junqueira, o Palácio Burnay, antiga sede do ISCSP, tinha quadros na parede. Agora, já não tem. Como é possível isto? Além de todos nós, quem são os responsáveis por este estado de abandono, pelo furto, por esta incrível e bem reveladora miséria? (as imagens e o alerta são do Fórum Cidadania Lx, como sempre).