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segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Os Césares, de Adriano a Constantino, um prodígio de divulgação cultural.

 




 

Barry Strauss é um professor universitário e conceituado especialista em história militar do mundo antigo. Este é o segundo de dois volumes sobre os imperadores romanos, como nos adverte o autor no prólogo: “A grandeza destes homens, a vaidade, a capacidade de liderança e os seus muitos fracassos, a reverência pela tradição e a implacável prontidão para mudarem com o intuito de sobreviveram, são os temas centrais. O presente volume retoma a história dos Césares de 118 a 337. O capítulo final, contudo, expande-se até à queda do Império Romano no Ocidente, em 476, durante o reinado de Rómulo Augusto. Serão destacados nestas páginas cinco grandes imperadores que moldaram as respetivas épocas, de Adriano a Constantino, e incluindo também Marco Aurélio, Sétimo Severo e Diocleciano.” Livro de leitura obrigatória para entender as vicissitudes de um dos maiores impérios da História, fundado por Augusto: Dez Césares, por Barry Strauss, Volume II: De Adriano a Constantino, Bertrand Editora, 2021.

O que torna esta narrativa empolgante é a proximidade que o autor estabelece entre a obra e o homem, a sanha do poder imperial, os seus deuses, o seu próprio endeusamento, as suas conquistas, a banalidade das execuções, as conquistas, o uso das riquezas, incidentalmente os sinais daquele génio que se propagaram pela língua, pelo sistema de Direito, pelas estradas e pelos aquedutos, pelos preceitos de higiene, não esquecendo os sonhos de perpetuação em panteões, arcos triunfais, um sem número de esculturas.

Começamos por acompanhar Adriano: “Os bustos retratam-no como uma pessoa inteligente e autoritária, com um rosto oval e faces arredondadas, um nariz aquilino, orelhas grandes e olhos repletos de luz e brilho. A barba de Adriano não era apenas uma afirmação de estilo, mas também um símbolo cultural e político. Adriano parecia estar sempre em trânsito, a cavalo ou a bordo de um navio, sempre de um extremo do império para o outro, da Britânia à Síria. Fazia questão de se encontrar com as pessoas comuns, cumprimentando-as como fazem hoje os políticos democráticos e misturava-se com as tropas de todos os lugares visitados, partilhando as suas comidas simples e comendo, como elas, ao ar livre.” Personalidade complexa, como anota o autor: “Nunca ninguém fez um esforço maior para preservar a paz nem marcou uma posição mais vincada contra a expansão imperial. Nenhum outro imperador estudou os clássicos com maior empenho ou foi melhor poeta ou arquiteto – tendo ainda sido escultor e pintor.” Amava a Grécia e a sua cultura. Contou com a ajuda da mulher de Trajano e de sua mulher Víbia Sabina, ela é uma das raras mulheres que deixou um registo escrito. Terá sido um casamento de conveniência, Adriano preferia jovens rapazes. Adriano assumia-se como o segundo Augusto, aliás será tratado como Imperador César Trajano Adriano Augusto. Enfrentou revoltas na Dácia, no Danúbio, na Mauritânia e na Britânia, respondeu com firmeza. Observa o autor que para Trajano, Roma era uma superpotência, para Adriano Roma era uma comunidade, este queria um novo império no qual as elites provinciais participassem no governo como iguais. Deixou o seu nome ligado à muralha em Inglaterra, à Vila Adriana, ao Panteão em Roma. O seu mausoléu é hoje o Castelo Santo Ângelo, que foi usado pelos Papas. Adriano marca o apogeu do império romano, sonhou e concretizou um império próspero, Roma e o Oriente grego registaram uma explosão de produção cultural e um florescimento artístico.

Sucedeu-lhe Marco Aurélio, publicou um livro que ainda hoje é muitíssimo lido, Pensamentos. Diz Barry Strauss que Marco Aurélio é o mais próximo de um filósofo-rei de que há registo, isto num período em que Roma sofreu calamidades sem precedentes, o que veio a pôr à prova a sua força de caráter. Tal como Adriano, Marco Aurélio admirava a filosofia de Epicteto, o estoico grego. Marco Aurélio casou com Ana Galéria Faustina, mais tarde ser-lhe-á o título de Augusta, será imperatriz. Marco Aurélio pretendia ser um reformador iluminado, acabou por ser enredado numa luta crepuscular na fronteira, daí o conjunto de viagens que teve de fazer para lidar com os bárbaros, foi bem-sucedido, dispersou-os pelas terras do império, desde a Germânia à Dácia e à Itália. Enfrentou revoltas, jugulou-as. Ao contrário dos seus antecessores, respeitou o senado e jurou não ser responsável pela morte de qualquer senador. O autor considera que os Pensamentos são a última grande obra da filosofia estoica da Antiguidade e a mais amada nos nossos dias, terá toda a razão. Sucedeu-lhe Cómodo, iniciar-se-á um período sangrento, Cómodo será assassinado, seguem-se vários imperadores e a guerra civil até chegar um novo líder, Sétimo Severo, será um tempo de guerra, política e assassínio, a dinastia por ele fundada durará 42 anos. Severo combinou um exército forte com um Estado forte, ideário prosseguido por Diocleciano e Constantino, os dois últimos Césares aqui magnificamente narrados por Barry Strauss.

Diocleciano restaurou a estabilidade no império que vivia na mais completa violência, isto enquanto os inimigos de Roma não pararam de empurrar as fronteiras tanto no Oriente como no Ocidente. No fim do século III, depois de catorze anos de luta contínua, Diocleciano e os seus corregentes conseguiram finalmente fixar as fronteiras. Deve-se a este imperador a mais assanhada perseguição religiosa aos cristãos. O cristianismo vai fermentar num espaço de grande variedade de religiões estrangeiras, havia mistérios gregos, deuses egípcios, o movimento Hare Krishna, o culto de Mitra, o judaísmo, é neste ambiente que o cristianismo ganhou seguidores, o imperador detestava o poder da Igreja, serão tempos terríveis para os cristãos. E caprichosamente o homem que acabaria por triunfar como sucessor de Diocleciano, Constantino, marcou uma rotura menor do que se poderia pensar. Será o primeiro imperador cristão, não deixará de ter um comportamento muito semelhante ao de Diocleciano no que diz respeito ao governo, ao exército e à economia, o autor dá-nos aqui uma narrativa de grande vivacidade onde não falta a cristianização da cidade de Roma, a criação de Constantinopla, mas já estava aberta a porta ao eclipse de Roma, estavam criadas as condições para o império romano sem Roma, sem Itália e mesmo sem maior parte da Europa.

Para surpresa de muitos dos leitores, fica-se a saber que o Ocidente romano sempre fora mais pobre de que o Oriente romano. Roma irá ser saqueada, ao contrário de Constantinopla. Em 476, o Ocidente romano será tomado pelos invasores, Constantinopla só desaparecerá com o império romano do Oriente em meados do século XV. No entanto, ainda iremos ouvir falar de Ravena e de um conjunto de mosaicos de altíssimo valor artístico. E o autor conclui: “Quando Augusto criou o Império Romano, jamais podia imaginar que seria na pequena Ravena, uma cidade portuária longe de Roma, que o resplendor final do império no Ocidente se demoraria.” Escreveu um crítico que este livro se lê como um guião da Guerra dos Tronos e que o autor é o melhor académico do Mundo Antigo a escrever nos dias de hoje para o leitor comum. É bem verdade, e deve ficar aqui escrito, porque se trata de leitura. Imperdível. 


Mário Beja Santos






 





terça-feira, 10 de novembro de 2020

Upa, upa.

 



Vi a recensão na The Economist, fui logo espreitar o luxo: uma edição em 3 volumes que mostra a Capela Sistina milímetro a milímetro. Só há uma Capela Sistina, como só há um fabricante no mundo – em Novara, Itália – capaz de produzir à mão uma encadernação em pele clara de grande formato, como esta. A brincadeira custa 22 mil dólares e a tiragem, é óbvio, é muito limitada. Só serão feitas 1.999 exemplares, determinou o Vaticano, em decreto formal e papal. Os 1.000 exemplares da edição italiana já esgotaram. Para os outros, da versão inglesa, postos à venda no passado dia 1, pode dirigir-se aqui: https://www.callaway.com/sistinechapel







terça-feira, 13 de outubro de 2020

Que ceia de cardeais.

 



Não sou de intrigas, mas o que se está a pensar com a reabilitação do cardeal Pell e a demissão do cardeal Becciu é digno de uma novela de Dan Brown. A seguir.E, como sempre, Habemus Papam.

 





domingo, 19 de janeiro de 2020

Anjos romanos.

 
 
 
O livro do cardeal guineense Robert Sarah em defesa do celibato dos padres, com um texto no mesmo sentido do Papa Emérito Bento XVI, ocupou uma boa parte da comunicação social esta semana. Naquilo que ameaçou tornar-se a escrita em directo do guião da sequela do filme de Fernando Meirelles, os possíveis problemas que resultam da coexistência de dois ou mais papas tornaram-se pela primeira vez evidentes desde a histórica renúncia de Bento XVI, em 2013.
Viram a luz vários artigos interessantes sobre a matéria, alguns ainda a quente e sem o conhecimento de factos que vieram entretanto a ser revelados. O Cardeal Sarah não enganou o Papa Emérito mas terá havido, segundo o Prefeito da Casa Pontifícia, um “mal-entendido” ou, evocando uma expressão em voga há uns anos, um “erro de percepção mútuo”. Numa expressão generosa, um amigo meu considerou que nesta questão terão sido todos “homens santos”.
Esta imagem dos “homens santos” fez-me recordar uma série de anjos que vi no meu recente regresso a Roma. Aparecendo com diferentes idades, sexos e (des)composturas, o anjo é porventura a criatura mais omnipresente em toda a cidade – em cada ponte, em cada fachada, em cada altar, em cada tecto, num triunfo do barroco que tornou os anjos o adorno por excelência. Nem todos os anjos têm, contudo, o ar dócil e inocente que identificamos com a santidade que pretendem evocar e rodear. Algumas feições surpreendem não pelo enlevo mas antes pela determinação, pela angústia ou por um certo ar de desafio. 
O celibato sacerdotal é um dos temas que move a opinião pública com indómito fervor, normalmente em defesa da abolição do mesmo, como se fosse uma solução óbvia e da maior simplicidade. É um pouco como se o celibato fosse uma ofensa que a Igreja causa à sociedade e que deve, por isso, ser sacrificialmente oferecido para reparação dos males do mundo.
 
 
É uma decisão que cabe ao Papa ou até ao conjunto dos bispos, embora cada um seja livre de ter a sua opinião – sobretudo se for fundamentada e esclarecida. Vejo, da minha experiência paroquial e da minha experiência familiar, que dificilmente um padre terá a mesma disponibilidade para a comunidade se tiver família. Mas é uma discussão complexa, onde o aspecto prático da escassez de padres poderá acabar por tornar inevitável uma determinada solução.
Como bem referiram alguns artigos esta semana, o próprio Papa Bento XVI permitiu a existência de sacerdotes casados, quando sejam ordenados na Igreja Anglicana (que desde há 500 anos tem sacerdotes casados, nem por isso escapando aos problemas dos abusos sexuais) e tenham já família constituída no momento em que são acolhidos na Igreja de Roma.
Por contraste, o Papa Francisco fez, já no seu Pontificado, uma defesa clara e apaixonada do celibato, como nos recordou o departamento de imprensa do Vaticano esta semana, na primeira reacção ao livro do Cardeal Sarah, então ainda em co-autoria com o Papa Emérito:
“Vem-me à mente aquela frase de São Paulo VI: ‘Prefiro dar a vida antes que mudar a lei do celibato’.”
 
 
 
 
 
O mesmo comunicado do Vaticano antevê aquela que poderá ser a solução da questão levantada no recente Sínodo da Amazónia, ao completar a citação do Papa:
“Pessoalmente, penso que o celibato é uma dádiva para a Igreja. (...) Não estou de acordo com permitir o celibato opcional. Haveria qualquer possibilidade apenas nos lugares mais remotos; penso nas ilhas do Pacífico... [...] Haveria necessidade pastoral, e o pastor deve pensar nos fiéis.”



 
 
Independentemente da complexa questão de fundo – que pode mesmo não encaixar na mais clássica divisão entre reformistas e conservadores, no sentido em que certamente haverá muitos padres “reformistas” que defendem a manutenção do celibato – o que certamente não ficará igual depois desta semana é a consciência de que da renúncia de um Papa e da consequente convivência de vários Papas podem resultar muitos problemas, como bem ilustra o magnífico artigo “Na solidão de si mesmo” que o António Araújo serializou no Diário de Notícias.



 
 
O anjo mais intrigante nesta pequena e modesta série de fotografias é o que aparece coroado com a tiara papal. Está na fachada de São João de Latrão, a basílica pontifícia por excelência, a catedral onde o Bispo de Roma tem a sua sede, a sua cadeira episcopal, e da qual toma posse após a eleição na Sistina. O anjo evoca, pois, o Papa – pois só o Papa usa a tiara. Mas sob os caracóis exuberantes, está um olhar que parece ser de desafio, até de alguma insolência.
Não é insolência que se espera de um Vigário de Cristo, embora se possa esperar desafio. Clemente XII, o papa cujas armas o dito anjo coroa na fachada da Basílica, resolveu problemas financeiros dos Estados Papais e excomungou o cardeal corrupto que os causara. O seu antecessor, Bento XIII, é apresentado como um asceta que apreciava a beleza das celebrações litúrgicas e com dificuldade em governar a Igreja. Será que a história se repete?
 
 
 
 
Muitos quiseram ler a assinatura do Papa Emérito no livro do Cardeal Sarah como um desafio à autoridade plena do seu sucessor, a mesma autoridade que Bento XVI prometeu respeitar no momento da sua renúncia, em 2013. Saber até que ponto o Papa Emérito percebeu o impacto da sua posição e até que ponto ela influenciará a decisão de Francisco sobre o celibato, são questões que teremos de aguardar para esclarecer – na pior das hipóteses, num novo filme de Meirelles.
Mas nas expressões destes anjos romanos, de angústia, de desafio, de bonomia e de mera contemplação podemos adivinhar certamente o que terá passado pelas faces de protagonistas e espectadores deste episódio que ao longo desta última semana entreteve jornalistas e vaticanistas, infiéis e fiéis, cardeais e papas.
 
Ademar Vala Marques
(fotografias de Novembro de 2019)
 
 
 
 

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Mais animais.

 
Desenho da elefanta Hansken, Trzebiatów, Polónia, 1693

 

Giovanni Battista Vaccarini, Fontanna dell'Elefante, Piazza del Duomo, Catânia

 
         Por via da amizade de José Liberato, Joanna Jarecka-Gomez falou-me de dois elefantes. Um, que não conhecia, é o símbolo da cidade de Trzebiatów, na Polónia, onde existe um grafito da elefanta Hansken, feito em 1693 (Hansken fez um famoso tour pela Europa, foi desenhada por Rembrandt e os seus restos mortais estão hoje em Florença, existindo até um livro sobre ela, Rembrandt's Elephant, por sinal caríssimo). Outro, mais próximo de nós, está no centro de Catânia, Sicília, na Fontana dell’Elefante, obra feita no século XVIII pelo arquitecto Giovanni Battista Vaccarini. Para o efeito, Vaccarini inspirou-se no Obelisco de Minerva, da autoria de Gian Lorenzo Bernini, que está em Roma, e que foi brutalmente vandalizado há dois anos. Horror. Tanto mais horror quanto, além de várias lendas e historietas romanas, o paquidérmico obelisco terá sido fonte de inspiração a Salvador Dalí para o seu quadro As Tentações de Santo António, pintado em 1946.
 
 

Bernini, Obelisco de Minerva, Roma, 667

 
 
Salvador Dalí, As Tentações de Santo António, 1946
 
 
Túmulos de D. Manuel e de D, Maria, Mosteiro dos Jerónimos
 
 
 
 
Túmulo de Fernão Telles de Menezes, Museu de História Natural e da Ciência,
Rua da Escola Politécnica, Lisboa
 
 
Desenho do túmulo por Gustavo Matos Sequeira
     
 
    E agora já íamos falar dos elefantes nos túmulos do Mosteiro dos Jerónimos e, também em Lisboa, no túmulo de Fernão Telles de Menezes, governador da Índia e do Algarve, recentemente desemparedado (aleluia!) ali à Escola Politécnica: Mandou esta Senhora fabricar hum magestozo mausoleo de mármores, assentado sobre dous elefantes em hu vão no lado do Evangelho da Capella mor, escreveu o Padre António Franco no anno 1719. E com isto, claro, isto lá nos desviávamos do rinoceronte, objectivo precípuo destas viagens, pelo que regressamos à Sicília, depressa e em força. Não longe de Catânia, a cerca de hora e picos de automóvel, a Villa del Casalle, de tempos romanos, famosa e patrimonializada devido aos seus mosaicos, com destaque para umas senhoras em bikini e para o corredor da «Grande Caçada». Na quinta cena dessa expedição venatória, um mosaico exibe a captura de rinocerontes numa paisagem do Nilo, ainda que não haja a certeza de que o rinoceronte figurado no dito mosaico seja africano ou indiano. Se o observarmos, vemos que só tem um corno e que a sua configuração é muito parecida com a de um rinoceronte indiano, bem diferente dos seus congéneres de África que vemos em França, no «Painel dos Rinocerontes» da francesa gruta de Chauvet (ou em Tassili n'Ajjer, no Saara, Argélia), ou na moeda do imperador Tito Flávio Domiciano que viveu entre 51 e 96 d.C.
 



Villa del Casale, Sicília
 


Gruta de Chauvet, França 


Tassili n'Ajjer, Sara, Argélia
 
Moeda do imperador Domiciano, 84-90 d.C.
 
 
      Diz-se aqui que a moeda comemorava a primeira entrada de um rinoceronte africano no Coliseu, mas o certo é que, antes dela, já muitos rinocerontes tinham estado em Roma. No fascinante livro The Day Commodus Killed a Rhino, o historiador Jerry Toner, da Universidade de Cambridge, refere que Pompeu Magno, o grande rival de Júlio César, importou rinocerontes para os seus jogos, em 55 a.C., e em 29 a.C. o imperador Augusto também teve rinocerontes nos jogos que promoveu para celebrar a abertura do templo a Júlio César, seu amado e endeusado pai. Segundo Jerry Toner, o rinoceronte que vemos a caminho de Roma, no mosaico da Villa del Casale, Piazza Armerina, na Sicília, é um exemplar indiano, opinião que acompanhamos, e o historiador de Cambridge conta a história absolutamente extraordinária de Cómodo, o filho de Marco Aurélio que, em conflito aberto com o Senado, usou os jogos como esplendorosa manifestação do seu poder. Ele próprio entrou na arena e, do alto de paliçada de madeira especialmente construída para o efeito, matou centenas e centenas de animais, em dias sucessivos, uma orgia de sangue. No primeiro dia dos jogos, assevera um senador romano, Dio Cassius, Cómodo matou mais de cem ursos, a golpes de lança. Os animais era colocados diante de si, enjaulados ou presos em redes, e o imperador Cómodo só tinha de os matar, comodamente. Até uma pequena girafa foi trespassada pelo seu furor, que não poupou o rinoceronte, a piéce de résistance devido à ferocidade do seu espírito e à espessa couraça da sua pele. Os jogos duravam vários dias, muitos e muitos dias, e eram, acima de tudo, um instrumento político de vital importância nos surdos conflitos entre o imperador e o Senado. No ano de 354, 176 dias foram dedicados aos jogos. Do ponto de vista animal, uma carnificina. Nos jogos de Trajano, por exemplo, foram massacrados 11.000 animais. Nos jogos de Tito, realizados para celebrar a abertura do Coliseu, dizimaram 5.000 animais num só dia. Jerry Toner calcula que, só para alimentar tantos bichos, eram necessárias 45 toneladas de alimentos por dia. E, no final da matança, o amontoado de carne era montanhoso, obviamente. E variado. Nos jogos promovidos pelo imperador Filipe, o Árabe, realizados em 248 d.C. fora, mortos 32 elefantes, 10 veados, 10 tigres, 60 leões, 32 leopardos, 10 hienas, um hipopótamo e, claro, um rinoceronte, entre muitas e muitas outras alimárias. Anos depois, em 281 d.C., o imperador Marco Aurélio Probo presidiu à chacina de mil avestruzes, mil javalis, mil veados, cem leões, duzentos leopardos, trezentos ursos, não havendo notícia de rinocerontes.

 


         Ao promover uma justa entre um elefante e um rinoceronte em Lisboa, no ano de 1515, Dom Manuel I, o Venturoso, estava porventura a convocar para si a glória pretérita dos imperadores de Roma. Na Lisboa da época – e muito provavelmente na sua corte – era conhecido o escrito de Plínio, o Velho, sobre a inimizade lendária entre o rinoceronte e o elefante, dizendo Plínio que o primeiro, antes de investir sobre o segundo, afiava o corno numas pedras e procurava trespassar o adversário na barriga, onde a pele era mais fina e sensível. Opinião diversa teve Marco Polo, que na ilha de Java recolheu a impressão que era a língua do rinoceronte e não o seu corno a parte mais letal do animal. Assim, sobre o reino de Basman, na ilha de Java, escreveu Marco Polo nas suas Viagens:
         «Têm muitos elefantes e unicórnios, que não são nada inferiores aos elefantes; têm pêlo de búfalo, as patas como os elefantes e no meio da cabeça têm um corno grosso e negro. Digo-vos que não fazem mal com aquele corno mas sim com a língua, porque é espinhosa, cheia de espinhas muito grandes; têm focinho parecido com o do javali, e levam-no inclinado para baixo: sentem-se muito bem entre o lodo e a lama. É um animal muito feio à vista e não é um animal que se deixe apanhar facilmente, muito pelo contrário». (Marco Polo, Viagens, trad. de Ana Osório de Castro, Assírio & Alvim, 2006, p. 159).
 
         É possível que tenha sido este relato de Marco Polo que motivou a existência de um estranho mosaico na Basílica de São Marcos em Veneza, de que já falámos, e sobre o qual há grandes discrepâncias quanto à respectiva datação, havendo mesmo quem diga que a obra é do século XX, dos anos 1960!
 
Basílica de São Marcos, Veneza
 
         Mas que a lenda da inimizade entre rinocerontes e elefantes tem raízes em várias partes do mundo, e projecção artística rica e opulenta, disso não se duvida, como veremos em próximo fascículo desta desvairada série.