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segunda-feira, 28 de maio de 2018

Demasiado perfeita?




 
Circula na Internet uma imagem demasiado perfeita. Dizem ser de uma órfã iraquiana que desenhou a figura da mãe a giz, no chão, tirou os sapatos e adormeceu no regaço materno. De cima, o fotógrafo captou o momento, tudo sem uma falha. Longe de mim afirmar que a imagem não é pungente. Parece-me, no entanto, demasiado pungente. Nunca nos esqueçamos que, antes das fake news, a manipulação fotográfica já existia, e à grande. Mais, as imagens manipuladas são talvez a maior fake new do nosso tempo. Será o caso desta fotografia? Fica a dúvida, pois não consegui obter praticamente nenhuma informação sobre a imagem (o que, aliás, reforça a desconfiança e a dúvida). Para mais, vejam como circulam imagens em tudo semelhantes:



  


domingo, 22 de abril de 2018

Faial-Pico, um cortejo de fake news.

 
 
 
 
«No próximo dia 23 de Abril, o nível da maré entre as ilhas do Faial e Pico atingirá a primeira cota mínima deste século (semelhante fenómeno só voltará a ocorrer em 2097, mas com mais 80 centímetros de nível do mar) e vai permitir a travessia do Canal a pé entre as ilhas do Faial e do Pico.
 
É um fenómeno raro só possível pelo alinhamento perfeito entre a Terra, a Lua e Júpiter, mas vai proporcionar-me uma experiência ÚNICA de uma vida no arquipélago dos Açores.
 
Esta travessia, com tempo de duração previsto de duas horas e meia terá de ser obrigatoriamente acompanhada por guias da Proteção Civil e terá uma janela temporal extremamente rígida por razões de segurança (já que não serão permitidos inícios de caminhada após uma hora do valor mínimo de maré).
 
A última vez que esta travessia foi possível, foi em 1938, tendo duzentas e cinquenta e três pessoas atingido a ilha do Pico depois de partirem da Horta em direcção à Madalena do Pico antes de a subida de nível da maré ter impossibilitado mais partidas. (Foto cortesia de Thomson Corporation)»
 
 
Isso é fake news da Internet.
O canal Pico-Faial tem alguns montes e até dois ilhéus (o Em-pé e o Deitado) mas é fundo. Atinge os 100 metros. Nada  como o canal Pico-S. Jorge, claro, cuja profundidade é de 1200 metros. Essa fila de gente da foto não é açoriana. A indumentária é demasiado colorida. Vi essa parte da foto utilizada recentemente, mas entre duas ilhas creio que do Pacífico.
 
Onésimo Teotónio de Almeida

domingo, 19 de novembro de 2017

Artes mágicas.

 
 



Um grande livro: The Commissar Vanishes, suculenta resenha das manipulações fotográficas dos tempos estalinistas, e não só: gente que apareceia e reaparecia nas fotografias ao lado do Pai dos Povos e tropelias quejandas. Pelos vistos, a moda revisionista pegou aqui ao perto, na Catalunha. A imagem do Governo «legítimo», um aglomerado de loucos, rasurou Santi Vila, que se demitiu antes da famosa Declaração Unilateral de Independência, a DUI que até dói. Mas no pior pano cai a nódoa: o Photoshop trabalhou mal e as pernas do conselheiro Vila ainda lá aparecem na foto oficial. Tudo dito, não?  
 
 

sábado, 11 de novembro de 2017

Por detrás de uma foto famosa.


 
 
Fotógrafos houve que alcançaram fama mundial ou entraram para a história da fotografia graças a uma só foto. Parece-me ser esse o caso de Ruth Orkin. Apesar de ter sido uma excelente fotógrafa que trabalhou para as principais revistas americanas da época, duvido que Orkin tivesse hoje o nome que tem, se não fosse esta célebre fotografia que fez numa esquina de rua em Florença em Agosto de 1951.
 
 
Ruth Orkin, “American girl in Italy”, 1951.
Data e hora da foto: 22 de Agosto de 1951, quarta-feira, 10h 30.
Local: esquina da Piazza della Repubblica com a Via Roma, Florença.
Fotógrafa: Ruth Orkin (1921-1985), fotojornalista americana.
Luz: sem sol directo.
Película: Eastman Super-XX a preto e branco, “safety film” (o primitivo acetato).
 
A figura feminina da foto era uma estudante de arte americana que então dava pelo nome de Ninalee “Jinx” Allen (hoje Craig), de 23 anos, em viagem por Itália. A fotógrafa, então com 29 anos, conheceu-a casualmente num hotel barato de Florença, andando ambas a viajar sozinhas pela Europa – coisa bastante rara na época. Jinx Allen foi convidada por Ruth Orkin para lhe servir de modelo de uma série de fotografias que viria a ser publicada em Setembro de 1952 na revista Cosmopolitan, num foto-ensaio intitulado “Don’t Be Afraid to Travel Alone”. O êxito da reportagem ficou basicamente a dever-se a esta foto. Nos anos 1980, a revista Life desvendou a identidade da retratada, até então descrita simplesmente como uma rapariga americana.
O que se vê neste instantâneo de rua? Uma rapariga bonita, alta e elegantemente vestida, com ar de estrangeira, a passar por um grupo de homens italianos (quinze no total) que a olham com fascínio ou ar matreiro. Um mais atrevido, com a mão esquerda colocada sobre a sua zona púbica, parece dirigir um piropo ou uma assobiadela à rapariga.




Linx enfrentando o pasmo do italian lover e o atrevimento do homem de guarda-chuva.



 Ela enfrenta a situação com uma atitude mista de altivez e contenção, puxando defensivamente o xaile para o peito e evitando sorrir ou olhar nos olhos os seus admiradores de rua. A cena passa-se no centro de Florença, na esquina da Via Roma com a Piazza della Repubblica. A quantidade de homens ociosos pelas ruas, na manhã de um dia de semana, tinha certamente que ver com o ainda forte desemprego, seis anos após o fim da segunda guerra mundial.
O que tem esta foto de tão especial que fez dela um clássico do séc. XX? É uma imagem muito oportuna, registada na fracção de segundo crucial. Excelente na composição, no enquadramento, na luz difusa, na riqueza de pormenores. Mas, para além de ser um “flagrante” tecnicamente perfeito, há nesta foto qualquer coisa mais, que cativa o olhar do simples observador, do amador de fotografia, do cientista social ou da militante feminista. De facto, olhando a cena em pormenor, tem-se uma sensação de choque cultural entre o machismo latino e a atitude independente e liberta da jovem turista americana. Há quem assinale medo no olhar dela, supostamente incomodada pela matilha masculina. As feministas adoptaram esta imagem, que lhes serve de bandeira na sua cruzada contra o assédio de rua. Todavia, a retratada Jinx, hoje com quase 90 anos, não acha nada disso e recusa que a imagem seja uma cena de assédio. Garante que lhe foi agradável a atracção que despertou nos homens italianos, que não achou machistas, mas apenas “muito admirativos”, e diz guardar uma memória feliz daquela cena. As feministas não acreditam e sustentam que Jinx não distingue admiração de assédio.
Na verdade, sabemos que ela não se sentiu nada intimidada, muito menos ofendida pela exagerada admiração que aqueles homens lhe dedicaram. Provam-no as quatro fotos que se seguem imediatamente no rolo, em que se vê a americana, divertidíssima, a passear de lambreta à boleia do homem que se vê com semblante trocista no lado direito da foto.


Jinx Allen à boleia do homem da lambreta (pormenor).
 
 
Esta foto, muitíssimo menos conhecida, é a que se segue no rolo original à imagem famosa. Perante isto, quem acredita que a americana se possa ter sentido intimidada por aqueles homens? É um inegável balde de água fria para as feministas que reproduziram a outra foto em livros de combate.
Por outro lado, o exame da sequência das fotos na prova de contacto do rolo (ver abaixo os fotogramas 8, 9 e 10) mostra que a célebre foto foi encenada ou, pelo menos, repetida de outro ângulo. Com efeito, Ruth Orkin pediu a Jinx que voltasse atrás e recomeçasse a andar no passeio (fotograma 9) de que já tinha descido (fotograma 8). A própria Jinx o confirmou em recente entrevista, dizendo ter obedecido a instruções da fotógrafa. Mas continua a negar que a foto tenha sido propriamente encenada.
 



Fotogramas 8, 9 e 10 do rolo usado por Ruth Orkin em 22 de Agosto de 1951.
 
 Acrescente-se que Jinx veio a casar com um italiano, que foi seu marido durante quinze anos. Hoje a senhora Ninalee Craig vive no Canadá e, em 2011, comemorando os 60 anos da histórica fotografia de Florença, fez-se retratar junto dela, ostentando o mesmo xaile que usava em 1951 e a mesma medalha ao pescoço.

 

Jinx Allen (Ninalee Craig) posando em 2011 ao lado da foto de 1951.

 
 Podemos concluir várias coisas. Desde logo, que a célebre foto de Ruth Orkin não foi um perfeito instantâneo ou flagrante, dado que a repetição da cena na esquina da rua introduziu um elemento de artificialidade, se não mesmo de provocação laboratorial. Sabe-se, também, que Orkin pediu aos homens que não olhassem para a máquina. Mas daí a dizer-se que a foto não tem nada de genuíno vai uma grande distância.
Se considerarmos ainda o efeito que teve sobre aqueles homens ociosos a presença ostensiva das duas jovens americanas, a fotógrafa e a fotografada, sozinhas, isto é, sem companhia masculina, então teremos de admitir que a foto foi igualmente influenciada por essa interacção, ou seja, que não foi indiferente para o sentido íntimo da cena que o fotógrafo fosse homem ou mulher. Ruth Orkin, que está invisível para quem olha a foto, mas não para os quinze homens que ali estão, é realmente uma das protagonistas da cena. Se o fotógrafo fosse um homem, o resultado teria sido diferente, porque os personagens teriam muito provavelmente reagido de outro modo.
Sobre a carreira fulgurante desta imagem até à actualidade, diga-se que ela tem desencadeado debates sem conta. A questão mais debatida é se a fotografia de Orkin pode considerar-se “encenada” ou não. Por outro lado, autoras e militantes feministas continuam a usar esta foto em livros e artigos como ilustração do assédio machista, agora à revelia do que a própria retratada sustenta. As diversas interpretações da imagem remetem para a questão, cada vez mais actual, sobre o que é ou não é assédio. Nos anos 1950 não se pôs essa questão. Havia então uma maior tolerância para com os piropos e os mirones, desde que estes não pisassem o risco da grosseria, generosamente traçado. Em compensação, nesse tempo, os juízos morais incidiram sobre a alegada “indecência” do gesto do homem de guarda-chuva, que alguns ainda tentaram desculpar como um gesto inconsciente de protecção da sua virilidade. Durante anos, a imagem foi censurada, cortando-se a metade esquerda da foto ou apagando-se com aerógrafo a mão do homem do guarda-chuva. Só a partir dos anos1960 foi possível ver a fotografia tal qual ficou no negativo.
Constata-se uma vez mais que as fotografias, como todas as obras de arte, conquistam uma certa independência em relação ao seu autor e à sua “verdade” original. Abandonada a si própria, descontextualizada, vista e revista por sucessivas gerações, uma fotografia vai adquirindo diversos significados, por vezes contraditórios entre si, consoante o olhar e a mente de quem a olha e interpreta. Os críticos de fotografia, jornalistas, historiadores, cientistas sociais e, neste caso, uma testemunha crucial (Jinx) podem tentar repor parte da verdade, mas a imagem continuará a ser interpretada e apreciada à vontade de cada um. De facto, raramente as fotografias são expostas ou publicadas com uma exaustiva contextualização histórica. Será, todavia, necessário saber tudo o que está por detrás de uma fotografia? Não podemos contentar-nos com a ficção que é, no fundo, a maioria das fotos jornalísticas? Perguntas difíceis! Mas muitas vezes nos interrogamos, perante uma fotografia: quem a fez, porque a fez, como a fez? E sucede muitas vezes que, quando temos repostas a essas perguntas, passamos a ver a fotografia de outra maneira.


 
Veja-se agora uma fotografia actual da mesma esquina de Florença, feita pelo carro da Google Street View, acessível online. Repare-se na indumentária quase indistinta de homens e mulheres, a sugerir uma mentalidade muito diferente da de 1951.
Muito a propósito, reproduz-se abaixo outro retrato de Jinx Allen em Florença, no mesmo ano de 1951 e da autoria da mesma Ruth Orkin. A rapariga americana está sentada na Fonte de Neptuno (1565), lendo um roteiro. Por detrás dela, um sátiro parece querer assaltá-la, mas a pose de Jinx é a de alguém que não se deixa intimidar. Sátiros e faunos, geralmente representados com o pénis erecto, como neste caso, aparecem em muitas obras de arte a perseguir ninfas assustadas. Julgo que Orkin poderá ter jogado com isso, apostando no contraste entre o sentido arcaico do bronze e a pose serena da jovem americana, emancipada e aventureira.
 


Jinx e o sátiro na Fonte de Neptuno (Florença, 1951)

 

 
Seguem-se dois retratos da fotógrafa Ruth Orkin. Um de 1939, quando, com apenas 17 anos de idade (!), percorreu os Estados Unidos de bicicleta, com uma máquina fotográfica barata. Outro, nos anos 1950, com ela já melhor equipada.
A terminar, aqui fica outra foto famosa, de tema semelhante ao da foto de Ruth Orkin de 1951. Esta data de 1954 e é de um grande fotojornalista italiano, Mario De Biasi, que dois anos depois fez uma famosa reportagem da revolta de Budapeste.



Mario De Biasi, “Gli italiani si voltano”, 1954.
 
 
Hoje toda a gente diz que esta foto foi inspirada pela de Orkin, publicada dois anos antes. Nem sequer falta um homem de lambreta. A diferença mais flagrante está na perspectiva apenas traseira da mulher. A retratada é Moira Orfei, popularíssima estrela de circo italiana, então com 23 anos. A fotografia foi realmente encenada, assim como numerosas outras que De Biasi fez no mesmo dia, com a mesma modelo a passear-se pelas ruas de Milão no seu vestido branco, sempre rodeada de mirones pouco discretos. O título que De Biasi deu à foto, “Os italianos voltam-se”, não corresponde bem ao que se vê na imagem, em que uma pequena multidão de homens e uma mulher olham Moira de frente. Sucede que esse título retomava textualmente o de uma curta-metragem de Alberto Lattuada, do ano anterior (1953), sobre basbaques masculinos que se voltavam para olhar, miravam insistentemente e perseguiam mulheres bonitas nas ruas de Roma. De facto, a imagem de De Biasi parece mais de um filme do que da realidade.
Encenada ou não, o público gostou e a fotografia, tal como a de Ruth Orkin, tornou-se um ícone – e também um alvo de interpretações arbitrárias e desencontradas.
 

José Barreto
 
 
 
Algumas fontes
 
Ruth Orkin Photo Archive. URL: http://www.orkinphoto.com/
Howard Greenberg Gallery, “Ruth Orkin: Jinx Allen in Florence”. Exhibition, New York, Sep. 16 - Oct. 22, 2005.
URL:  http://www.howardgreenberg.com/exhibitions/ruth-orkin-jinx-allen-in-florence/selected-works?view=thumbnails 
Emanuella Grinberg, “The real story behind 'An American Girl in Italy' ”. CNN, Mar. 30, 2017. URL: http://edition.cnn.com/2017/03/30/europe/tbt-ruth-orkin-american-girl-in-italy/index.html
John Allemang, “A snapshot of sexism or a portrait of composure?” The Globe and Mail, Aug. 12, 2011. URL:
https://beta.theglobeandmail.com/news/world/a-snapshot-of-sexism-or-a-portrait-of-composure/article590345/?ref=http://www.theglobeandmail.com&
Murray Whyte, “An American Girl in Italy”. Interview with Linalee Allen. Toronto Star - Aug. 13, 2011. URL:
 https://www.thestar.com/entertainment/2011/08/13/an_american_girl_in_italy.htmlSat    
Michele Smargiassi, “Gli italiani si voltavano”. Fotocrazia, 15 Ott. 2011. URL:
  http://smargiassi-michele.blogautore.repubblica.it/2011/10/15/gli-italiani-si-voltavano/
 
 

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

O relógio da História.

 
 
Yevgeny Khaldei, Erguer da Bandeira no Reichstag
2 de Maio de 1945


         Nem vale a pena dizer, mas já agora digo, que esta é uma das mais famosas fotografias do século XX. Tem vários nomes, como «Erguer da Bandeira no Reichstag» e foi captada em 2 de Maio de 1945, quando as tropas soviéticas assinalaram ao mundo a conquista da capital do Reich. Já agora, uma espreitadela aqui, que vale muito a pena. E aqui, também curiosíssimo.

 
 
 
 

 


 
         Na imagem, soldados do Exército Vermelho, um sargento geórgio, Meliton Varlamis dez Kantaria (bem, vamos abreviar para Meliton Kantaria), para sempre heroicizado como o homem que ergueu a bandeira no topo do Reichstag. Até há estátuas do intrépido combatente, que morreu em 1993. O outro é um russo, Mikhail Yegorov (mais precisamente, Mikhail Alekseevich Yegorov, multiplamente condecorado como Herói da União Soviética, Ordem de Lenine, Ordem da Bandeira Vermelha, Ordem da Guerra Patriótica (2ª classe, adultos), Ordem da Estrela Vermelha, Ordem da Glória (3ª classe, do antigamente), Medalha «Combatente da Guerra Patriótica» (1ª classe), Medalha do Jubileu por Serviços Militares por Ocasião do 100º Aniversário do Nascimento de Vladimir Ilich Lenine, Medalha pela Vitória Sobre a Alemanha na Grande Guerra Patriótica de 1941-1945, Medalha do Jubileu pelo 20º Aniversário da Vitória na Grande Guerra Patriótica de 1941-1945, Medalha do Jubileu pelo 30º Aniversário da Vitória na Grande Guerra Patriótica de 1941-1945, Medalha pela Captura de Berlim, Medalha do Jubileu pelos 50 Anos das Forças Armadas da URSS. Como se vê, na União Soviética, um país igualitário, havia muita medalha para distinguir uns mais iguais do que outros (e perdoem o cliché orwelliano). Com tanta medalha, carregadinho delas, Yegorov morreu em 1975. Já Kantaria, também muito medalhado, foi viver para a Abecásia, mas teve de se mudar para Moscovo, onde morreu, pois as tropas russas entraram à força bruta pela Abecásia adentro, arrasando, entre muita coisa, a casinha do herói da URSS. Ironias da História...
 
Estátua de Meliton Kantaria, em Jvari, na Geórgia
 
A casa do herói Meliton Kantaria, em Ochamchire, Abecásia, destruída pelos ocupantes... russos (!)

 
         A tonta da Wikipedia nuns lados diz que eram dois soldados a erguer a bandeira, noutros lados fala em três combatentes, noutro ainda refere que foram quatro os meninos de chumbo que escalaram a cúpula do Reichstag,   que estava toda partidinha aos bocados, ou quase que. Para contar a história, é indiferente o número dos militares, adiante; quem quiser saber mais, é mergulhar aqui.
 

Khaldei, a fotografar os julgamentos de Nuremberga
 
O fotógrafo é Yevgeny Khaldei (calma: Yevgeny Anan’evich Khaldei), de ascendência judaica, que mais tarde seria repórter da TASS. Como é óbvio, recebeu também um camião de medalhas e condecorações patrióticas, que nos escusamos de enumerar, até porque são muitas. Como muitas foram as manipulações fotográficas que Khaldei fez ao longo da carreira, sem quaisquer problemas de consciência, até porque – importa dizê-lo – na época essas coisas não eram vistas com os olhos dos nossos tempos, mais éticos e exigentes quanto à autenticidade da realidade fotografada. Khaldei fez carreira em grande, sendo autor de retratos oficiais de Estaline, Gorbachev, Yelstine, entre outras alimárias possantes.
 
 
Isto está aqui para quem se interessa muito por filatelia do Azerbaijão
 
A história da fotografia está contada há muito (até há selos do Azerbaijão com a imagem, imagine-se!) e não adianta esmiuçá-la: hábil na arte do décor e dos adereços, Khaldei levou consigo uma bandeira king size, feita por um tio, que se entusiasmara com outra foto icónica, a dos americanos a levantar a Stars and Stripes em Iwo Jima, captada por Joe Rosenthal. Pois se os americanos tinham feito uma imagem gloriosa e retumbante, que até deu um filme do Clint Eastwood, os soviéticos queriam à viva força mostrar a sua raça vermelha – e daí a fotografia da bandeira no Reichstag. Esta competição imagética era o prenúncio da Guerra Fria, a prova provada de que o conflito tépido entre EUA e URSS começou muito antes de resolverem aquela grande embrulhada com os nazis.
 
Joe Rosenthal, Raising the Flag at Iwo Jima,
Fevereiro de 1945
 
 
O Reichstag era um edifício simbólico do nazismo e Estaline queria à viva força que fosse tomado antes de 1 de Maio, para celebrar o triunfo sobre Hitler no Dia do Trabalhador. As coisas complicaram-se, o marechal Zukhov informou Moscovo, a 30 de Abril, que já havia conquistado o Reichstage mas, foi-se a ver, e no 1º de Maio ainda não tinham tomado o simbólico prédio, que é grande. A bandeirinha só seria afixada, como dissemos, no dia 2 de Maio.
Há muitas histórias à volta da cena, a ponto de se dizer que quem colocou a bandeira foi um ucraniano de dezoito anitos, Alexei Kovalyov, mas que a polícia política, a NKVD, o mandou estar caladinho e dar os créditos a outros. Também havia um tal de Abdulkhakim Ismailov (1916-2010), do Daguestão, segundo referiu o fotógrafo. Para o caso, não importa. Foram ao telhado do edifício, Khaldei tirou a fotografia, que a dia 13 de Maio, na Cova da Iria, seria publicada na revista Ogonyok (ou Oronëk?)











Existem outras imagens da cena (ver acima), mas, como sempre sucede, só uma pôde ser eleita como «icónica» − e foi a de Khaldei, que trabalhou para isso.
 
A imagem original (ampliada)
 
O fumo artificialmente enegrecido, ao fundo

 
 
Para já, começou por juntar uns fuminhos, ou enegrecer os que lá existiam ao fundo da cena, para adensar a atmosfera de guerra total e dar um apontamento épico à coisa. A imagem, com a bandeira da foice e martelo, seria usada como símbolo do triunfo do comunismo sobre o nazismo, o que é um facto histórico: quem libertou Berlim foram os soviéticos, à custa de milhões de mortos. Sobre a Batalha de Berlim podemos ler o que conta Anthony Beevor mas, para perceber a dimensão do erro geopolítico dos Aliados ocidentais, ao deixarem o campo livre à URSS para conquistar a capital do Reich, há umas passagens interessantes e muito informativos no calhamaço da Anne Applebaum A Cortina de Ferro. O Fim da Europa de Leste (trad. portuguesa, Civilização Editora, 2013).
 
A imagem original, com relógios nos dois pulsos
 
 
 
A imagem manipulada e censurada, já sem o relógio no pulso direito
  

 


Por muito que possa parecer uma heresia, deve dizer-se que, apesar do vermelho da bandeira e da foice/martelo, a imagem, bem vista e analisada, representa, sem dúvida, a vitória militar da União Soviética. Mas não pode, de modo algum, ser usada como símbolo do triunfo da ideologia comunista nem da doutrina e das promessas messiânicas que lhe estão associadas. Pelo contrário – e mesmo sem contar com as honrarias medalhísticas ou as sinistras intervenções da NKVD e outras conspiratas –, a imagem, por paradoxal que possa parecer, é, isso sim, uma vitória retumbante de alguns princípios do capitalismo e da economia de mercado. Discordam? Ora vamos lá ver: a fotografia foi manipulada e maquilhada para limpar da imagem o relógio que o soldado heróico trazia ao pulso direito. No original, um relógio em cada pulso, na imagem manipulada, apenas um relógio no pulso esquerdo. E não, não eram relógios fornecidos pelo Exército Vermelho. Eram relógios roubados na Alemanha, em Berlim, em Budapeste, na Polónia, em qualquer lugar por onde passassem as tropas de Estaline. Sobre essa questão relojoeira, vejamos o que diz Anne Applebaum, descrevendo o avanço dos soviéticos:
«Os relógios de pulso pareciam ter um significado quase mítico para os soldados russos que sempre que podiam se passeavam com meia dúzia deles no braço ao mesmo tempo. Uma fotografia icónica de um soldado russo a hastear a bandeira soviética no cimo do Reichstag de Berlim teve de ser retocada para remover os relógios de pulso do braço do jovem herói [aqui, Applebaum baseia-se no livro de Alexander Nakhimovsky e Alice Nakhimovsky, Witness to History. The Photographs of Yevgeny Khaldei, Nova Iorque, 1997]. Em Budapeste, a obsessão com eles ficou como parte do folclore local e pode ter contribuído para moldar a percepção local do Exército Vermelho. Uns meses depois da guerra, um cinema de Budapeste mostrou um jornal cinematográfico sobre a conferência de Ialta. Quando o Presidente Roosevelt levantou o braço enquanto falava com Estaline vários membros da assistência gritaram: “Cuidado com o relógio!” O mesmo foi verdade na Polónia, onde durante muitos anos as crianças polacas “brincavam” aos soldados soviéticos gritando “Davai chasyi” – “Dá-me o teu relógio!” Uma série infantil da televisão polaca, muito apreciada em fins dos anos 60, incluía uma cena de guerra com soldados russos e polacos, acampados em edifícios alemães abandonados, que tinham juntado uma vasta colecção de relógios roubados».
Depois de vasculhar o Youtube, encontrei uns episódio da belíssima série polaca, intitulada, como sabem, Cseterej pancerni i pies (sim, que isto do Malomil dá muito trabalho). Mas não apanhei, por ora, as imagens das brincadeiras com relógios roubados, constantes do episódio nº 13, transmitido em 1969. Se algum leitor do Malomil que tenha interesse em séries infantis polacas dos anos 1960 por acaso me facultar o episódio número 13 do Cseterej pancerni i pies, transmitido em 1969, em versão completa e de preferência com boa definição, agradecia penhoradíssimo. Certamente haverá muitos leitores do Malomil que estudam e acompanham de perto a filmografia infantil polaca da década de 1960, pelo que lhes deixamos este apelo, lancinante.
 

 
 
 

Uma coisa curiosa no avanço dos russos foi a seguinte: à medida que iam até à Polónia e à Alemanha, descobriram que, afinal, o que lhes tinha dito a propaganda soviética desde os bancos de escola era falso. Não, o Ocidente não era a miséria que julgavam. Pelo contrário, os camponeses polacos, mesmo após a devastação da guerra, tinham quintas, uma ou duas vacas, criação de galinhas e porcos, couves-galegas. O Kremlin ficou aterrado com os relatórios que os comissários políticos lhe enviavam da frente de combate. O Oeste era muito melhor do que a Rússia dos sovietes, com belas casas, avenidas majestosas – e relógios de pulso. Daí que Estaline tenha engendrado uma manobra canhestra de desinformação, dizendo que tudo aquilo que os soldaditos viam não passava de uma fachada, de uma encenação, ou do resultado da pilhagem que, anos a fio, tinha sido perpetrada à Mãe-Rússia. Os soldaditos não ligaram muito, pois estavam mais interessados em sacar relógios, quantos mais melhor. Esta obsessão relojoeira exprime (1) por um lado, o fascínio embasbacado pelos bens e produtos do Ocidente, que na Rússia não eram de acesso fácil; (2) por outro lado – e mais decisivamente –, o desejo ávido de posse, o sentimento de propriedade privada, de apropriação, o que, convenhamos, é típico do capitalismo e da economia de mercado, nos antípodas dos princípios socialistas soviéticos. Assim, apesar de ostentar a bandeira vermelha com a foice e o martelo, o que a fotografia revela, antes de expurgada pela censura, é um soldado com relógios no pulso, relógios de que se apropriou e fez seus, para levar para casa, para deixar aos filhos, juntamente com as medalhas e condecorações de guerra que lhe colocaram ao peito na Praça Vermelha. Um triunfo do comunismo sobre o nazismo, sem dúvida. Uma vitória do comunismo sobre o capitalismo, isso é mais problemático…

E agora, como acontece muito pelas bandas deste blogue, as habituais recriações e os muitos pastiches da célebre fotografia martelada de Eugénio Khaldei ou doutras da bandeira no Reichstag: