Circula
na Internet uma imagem demasiado perfeita.
Dizem ser de uma órfã iraquiana que desenhou a figura da mãe a giz, no chão,
tirou os sapatos e adormeceu no regaço materno. De cima, o fotógrafo captou o momento,
tudo sem uma falha. Longe de mim afirmar que a imagem não é pungente.
Parece-me, no entanto, demasiado pungente.
Nunca nos esqueçamos que, antes das fake news, a manipulação fotográfica já
existia, e à grande. Mais, as imagens manipuladas são talvez a maior fake new
do nosso tempo. Será o caso desta fotografia? Fica a dúvida, pois não consegui
obter praticamente nenhuma informação sobre a imagem (o que, aliás, reforça a
desconfiança e a dúvida). Para mais, vejam como circulam imagens em tudo semelhantes:
Mostrar mensagens com a etiqueta Manipulação. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Manipulação. Mostrar todas as mensagens
segunda-feira, 28 de maio de 2018
domingo, 22 de abril de 2018
Faial-Pico, um cortejo de fake news.
«No
próximo dia 23 de Abril, o nível da maré entre as ilhas do Faial e Pico
atingirá a primeira cota mínima deste século (semelhante fenómeno só voltará a
ocorrer em 2097, mas com mais 80 centímetros de nível do mar) e vai permitir a
travessia do Canal a pé entre as ilhas do Faial e do Pico.
É um
fenómeno raro só possível pelo alinhamento perfeito entre a Terra, a Lua e
Júpiter, mas vai proporcionar-me uma experiência ÚNICA de uma vida no
arquipélago dos Açores.
Esta
travessia, com tempo de duração previsto de duas horas e meia terá de ser
obrigatoriamente acompanhada por guias da Proteção Civil e terá uma janela
temporal extremamente rígida por razões de segurança (já que não serão
permitidos inícios de caminhada após uma hora do valor mínimo de maré).
A última vez que esta travessia foi
possível, foi em 1938, tendo duzentas e cinquenta e três pessoas atingido a
ilha do Pico depois de partirem da Horta em direcção à Madalena do Pico antes
de a subida de nível da maré ter impossibilitado mais partidas. (Foto cortesia
de Thomson Corporation)»
Isso é fake news da
Internet.
O canal Pico-Faial tem
alguns montes e até dois ilhéus (o Em-pé e o Deitado) mas é fundo. Atinge os
100 metros. Nada como o canal Pico-S. Jorge, claro, cuja profundidade é
de 1200 metros. Essa fila de gente da foto não é açoriana. A indumentária é
demasiado colorida. Vi essa parte da foto utilizada recentemente, mas entre
duas ilhas creio que do Pacífico.
Onésimo Teotónio de Almeida
quarta-feira, 28 de março de 2018
domingo, 19 de novembro de 2017
Artes mágicas.
Um
grande livro: The Commissar Vanishes, suculenta resenha das manipulações
fotográficas dos tempos estalinistas, e não só: gente que apareceia e
reaparecia nas fotografias ao lado do Pai dos Povos e tropelias quejandas.
Pelos vistos, a moda revisionista pegou aqui ao perto, na Catalunha. A imagem do Governo «legítimo»,
um aglomerado de loucos, rasurou Santi Vila, que se demitiu antes da famosa Declaração Unilateral de Independência,
a DUI que até dói. Mas no pior pano cai
a nódoa: o Photoshop trabalhou mal e as pernas do conselheiro Vila ainda
lá aparecem na foto oficial. Tudo dito, não?
Etiquetas:
Espanha,
Fotografia,
Livros,
Manipulação,
URSS
sábado, 11 de novembro de 2017
Por detrás de uma foto famosa.
Fotógrafos
houve que alcançaram fama mundial ou entraram para a história da fotografia
graças a uma só foto. Parece-me ser esse o caso de Ruth Orkin. Apesar de ter
sido uma excelente fotógrafa que trabalhou para as principais revistas
americanas da época, duvido que Orkin tivesse hoje o nome que tem, se não fosse
esta célebre fotografia que fez numa esquina de rua em Florença em Agosto de
1951.
Ruth Orkin, “American girl in Italy”, 1951.
Data
e hora da foto: 22 de Agosto de 1951, quarta-feira, 10h 30.
Local:
esquina da Piazza della Repubblica com a Via Roma, Florença.
Fotógrafa:
Ruth Orkin (1921-1985), fotojornalista americana.
Luz:
sem sol directo.
Película:
Eastman Super-XX a preto e branco, “safety film” (o primitivo acetato).
A
figura feminina da foto era uma estudante de arte americana que então dava pelo
nome de Ninalee “Jinx” Allen (hoje Craig), de 23 anos, em viagem por Itália. A
fotógrafa, então com 29 anos, conheceu-a casualmente num hotel barato de
Florença, andando ambas a viajar sozinhas pela Europa – coisa bastante rara na
época. Jinx Allen foi convidada por Ruth Orkin para lhe servir de modelo de uma
série de fotografias que viria a ser publicada em Setembro de 1952 na revista Cosmopolitan, num foto-ensaio intitulado
“Don’t Be Afraid to Travel Alone”. O êxito da reportagem ficou basicamente a
dever-se a esta foto. Nos anos 1980, a revista Life desvendou a identidade da retratada, até então descrita
simplesmente como uma rapariga americana.
O
que se vê neste instantâneo de rua? Uma rapariga bonita, alta e elegantemente
vestida, com ar de estrangeira, a passar por um grupo de homens italianos
(quinze no total) que a olham com fascínio ou ar matreiro. Um mais atrevido,
com a mão esquerda colocada sobre a sua zona púbica, parece dirigir um piropo ou
uma assobiadela à rapariga.
Ela
enfrenta a situação com uma atitude mista de altivez e contenção, puxando
defensivamente o xaile para o peito e evitando sorrir ou olhar nos olhos os
seus admiradores de rua. A cena passa-se no centro de Florença, na esquina da
Via Roma com a Piazza della Repubblica. A quantidade de homens ociosos pelas ruas,
na manhã de um dia de semana, tinha certamente que ver com o ainda forte
desemprego, seis anos após o fim da segunda guerra mundial.
O
que tem esta foto de tão especial que fez dela um clássico do séc. XX? É uma
imagem muito oportuna, registada na fracção de segundo crucial. Excelente na composição,
no enquadramento, na luz difusa, na riqueza de pormenores. Mas, para além de ser
um “flagrante” tecnicamente perfeito, há nesta foto qualquer coisa mais, que cativa
o olhar do simples observador, do amador de fotografia, do cientista social ou
da militante feminista. De facto, olhando a cena em pormenor, tem-se uma
sensação de choque cultural entre o machismo latino e a atitude independente e
liberta da jovem turista americana. Há quem assinale medo no olhar dela, supostamente
incomodada pela matilha masculina. As feministas adoptaram esta imagem, que
lhes serve de bandeira na sua cruzada contra o assédio de rua. Todavia, a
retratada Jinx, hoje com quase 90 anos, não acha nada disso e recusa que a
imagem seja uma cena de assédio. Garante que lhe foi agradável a atracção que
despertou nos homens italianos, que não achou machistas, mas apenas “muito
admirativos”, e diz guardar uma memória feliz daquela cena. As feministas não
acreditam e sustentam que Jinx não distingue admiração de assédio.
Na
verdade, sabemos que ela não se sentiu nada intimidada, muito menos ofendida
pela exagerada admiração que aqueles homens lhe dedicaram. Provam-no as quatro
fotos que se seguem imediatamente no rolo, em que se vê a americana, divertidíssima,
a passear de lambreta à boleia do homem que se vê com semblante trocista no
lado direito da foto.
![]() |
Jinx Allen à boleia do homem da lambreta (pormenor).
|
Por
outro lado, o exame da sequência das fotos na prova de contacto do rolo (ver abaixo
os fotogramas 8, 9 e 10) mostra que a célebre foto foi encenada ou, pelo menos,
repetida de outro ângulo. Com efeito, Ruth Orkin pediu a Jinx que voltasse
atrás e recomeçasse a andar no passeio (fotograma 9) de que já tinha descido
(fotograma 8). A própria Jinx o confirmou em recente entrevista, dizendo ter
obedecido a instruções da fotógrafa. Mas continua a negar que a foto tenha sido
propriamente encenada.
![]() |
Fotogramas 8, 9 e 10 do rolo usado por Ruth Orkin em 22 de Agosto de 1951.
|
Se
considerarmos ainda o efeito que teve sobre aqueles homens ociosos a presença
ostensiva das duas jovens americanas, a fotógrafa e a fotografada, sozinhas,
isto é, sem companhia masculina, então teremos de admitir que a foto foi igualmente
influenciada por essa interacção, ou seja, que não foi indiferente para o
sentido íntimo da cena que o fotógrafo fosse homem ou mulher. Ruth Orkin, que
está invisível para quem olha a foto, mas não para os quinze homens que ali
estão, é realmente uma das protagonistas da cena. Se o fotógrafo fosse um homem,
o resultado teria sido diferente, porque os personagens teriam muito provavelmente
reagido de outro modo.
Sobre
a carreira fulgurante desta imagem até à actualidade, diga-se que ela tem
desencadeado debates sem conta. A questão mais debatida é se a fotografia de
Orkin pode considerar-se “encenada” ou não. Por outro lado, autoras e
militantes feministas continuam a usar esta foto em livros e artigos como ilustração
do assédio machista, agora à revelia do que a própria retratada sustenta. As
diversas interpretações da imagem remetem para a questão, cada vez mais actual,
sobre o que é ou não é assédio. Nos anos 1950 não se pôs essa questão. Havia então
uma maior tolerância para com os piropos e os mirones, desde que estes não
pisassem o risco da grosseria, generosamente traçado. Em compensação, nesse
tempo, os juízos morais incidiram sobre a alegada “indecência” do gesto do homem
de guarda-chuva, que alguns ainda tentaram desculpar como um gesto inconsciente
de protecção da sua virilidade. Durante anos, a imagem foi censurada,
cortando-se a metade esquerda da foto ou apagando-se com aerógrafo a mão do homem
do guarda-chuva. Só a partir dos anos1960 foi possível ver a fotografia tal
qual ficou no negativo.
Constata-se
uma vez mais que as fotografias, como todas as obras de arte, conquistam uma
certa independência em relação ao seu autor e à sua “verdade” original. Abandonada
a si própria, descontextualizada, vista e revista por sucessivas gerações, uma
fotografia vai adquirindo diversos significados, por vezes contraditórios entre
si, consoante o olhar e a mente de quem a olha e interpreta. Os críticos de
fotografia, jornalistas, historiadores, cientistas sociais e, neste caso, uma testemunha
crucial (Jinx) podem tentar repor parte da verdade, mas a imagem continuará a
ser interpretada e apreciada à vontade de cada um. De facto, raramente as
fotografias são expostas ou publicadas com uma exaustiva contextualização
histórica. Será, todavia, necessário saber tudo o que está por detrás de uma
fotografia? Não podemos contentar-nos com a ficção que é, no fundo, a maioria
das fotos jornalísticas? Perguntas difíceis! Mas muitas vezes nos interrogamos,
perante uma fotografia: quem a fez, porque a fez, como a fez? E sucede muitas
vezes que, quando temos repostas a essas perguntas, passamos a ver a fotografia
de outra maneira.
Veja-se
agora uma fotografia actual da mesma esquina de Florença, feita pelo carro da
Google Street View, acessível online. Repare-se na indumentária quase
indistinta de homens e mulheres, a sugerir uma mentalidade muito diferente da
de 1951.
Muito
a propósito, reproduz-se abaixo outro retrato de Jinx Allen em Florença, no
mesmo ano de 1951 e da autoria da mesma Ruth Orkin. A rapariga americana está
sentada na Fonte de Neptuno (1565), lendo um roteiro. Por detrás dela, um sátiro
parece querer assaltá-la, mas a pose de Jinx é a de alguém que não se deixa
intimidar. Sátiros e faunos, geralmente representados com o pénis erecto, como
neste caso, aparecem em muitas obras de arte a perseguir ninfas assustadas.
Julgo que Orkin poderá ter jogado com isso, apostando no contraste entre o
sentido arcaico do bronze e a pose serena da jovem americana, emancipada e
aventureira.
Seguem-se
dois retratos da fotógrafa Ruth Orkin. Um de 1939, quando, com apenas 17 anos
de idade (!), percorreu os Estados Unidos de bicicleta, com uma máquina
fotográfica barata. Outro, nos anos 1950, com ela já melhor equipada.
A
terminar, aqui fica outra foto famosa, de tema semelhante ao da foto de Ruth Orkin
de 1951. Esta data de 1954 e é de um grande fotojornalista italiano, Mario De
Biasi, que dois anos depois fez uma famosa reportagem da revolta de Budapeste.
Hoje
toda a gente diz que esta foto foi inspirada pela de Orkin, publicada dois anos
antes. Nem sequer falta um homem de lambreta. A diferença mais flagrante está
na perspectiva apenas traseira da mulher. A retratada é Moira Orfei, popularíssima
estrela de circo italiana, então com 23 anos. A fotografia foi realmente encenada,
assim como numerosas outras que De Biasi fez no mesmo dia, com a mesma modelo a
passear-se pelas ruas de Milão no seu vestido branco, sempre rodeada de mirones
pouco discretos. O título que De Biasi deu à foto, “Os italianos voltam-se”,
não corresponde bem ao que se vê na imagem, em que uma pequena multidão de
homens e uma mulher olham Moira de frente. Sucede que esse título retomava textualmente
o de uma curta-metragem de Alberto Lattuada, do ano anterior (1953), sobre
basbaques masculinos que se voltavam para olhar, miravam insistentemente e
perseguiam mulheres bonitas nas ruas de Roma. De facto, a imagem de De Biasi parece
mais de um filme do que da realidade.
Encenada
ou não, o público gostou e a fotografia, tal como a de Ruth Orkin, tornou-se um
ícone – e também um alvo de interpretações arbitrárias e desencontradas.
José Barreto
Algumas fontes
Ruth
Orkin Photo Archive. URL:
http://www.orkinphoto.com/
Howard Greenberg Gallery,
“Ruth Orkin: Jinx Allen in Florence”. Exhibition, New York, Sep. 16 - Oct. 22,
2005.
URL: http://www.howardgreenberg.com/exhibitions/ruth-orkin-jinx-allen-in-florence/selected-works?view=thumbnails
URL: http://www.howardgreenberg.com/exhibitions/ruth-orkin-jinx-allen-in-florence/selected-works?view=thumbnails
Emanuella Grinberg, “The
real story behind 'An American Girl in Italy' ”. CNN, Mar. 30, 2017. URL: http://edition.cnn.com/2017/03/30/europe/tbt-ruth-orkin-american-girl-in-italy/index.html
John Allemang, “A snapshot
of sexism or a portrait of composure?” The
Globe and Mail, Aug. 12, 2011. URL:
https://beta.theglobeandmail.com/news/world/a-snapshot-of-sexism-or-a-portrait-of-composure/article590345/?ref=http://www.theglobeandmail.com&
https://beta.theglobeandmail.com/news/world/a-snapshot-of-sexism-or-a-portrait-of-composure/article590345/?ref=http://www.theglobeandmail.com&
Murray Whyte, “An American Girl in Italy”. Interview with
Linalee Allen. Toronto Star - Aug.
13, 2011. URL:
https://www.thestar.com/entertainment/2011/08/13/an_american_girl_in_italy.htmlSat
https://www.thestar.com/entertainment/2011/08/13/an_american_girl_in_italy.htmlSat
Michele Smargiassi, “Gli italiani si voltavano”. Fotocrazia,
15 Ott. 2011. URL:
http://smargiassi-michele.blogautore.repubblica.it/2011/10/15/gli-italiani-si-voltavano/
http://smargiassi-michele.blogautore.repubblica.it/2011/10/15/gli-italiani-si-voltavano/
sexta-feira, 1 de setembro de 2017
O relógio da História.
![]() |
Yevgeny Khaldei, Erguer da Bandeira no Reichstag
2 de Maio de 1945
|
Nem vale a pena dizer, mas já agora digo,
que esta é uma das mais famosas fotografias do século XX. Tem vários nomes,
como «Erguer da Bandeira no Reichstag» e foi captada em 2 de Maio de 1945,
quando as tropas soviéticas assinalaram ao mundo a conquista da capital do
Reich. Já agora, uma espreitadela aqui, que vale muito a pena. E aqui, também curiosíssimo.
Na imagem, soldados do Exército
Vermelho, um sargento geórgio, Meliton Varlamis dez Kantaria
(bem, vamos abreviar para Meliton Kantaria), para sempre heroicizado como o
homem que ergueu a bandeira no topo do Reichstag. Até há estátuas do intrépido
combatente, que morreu em 1993. O outro é um russo, Mikhail Yegorov (mais
precisamente, Mikhail Alekseevich Yegorov,
multiplamente condecorado como Herói da União Soviética, Ordem de Lenine, Ordem
da Bandeira Vermelha, Ordem da Guerra Patriótica (2ª classe, adultos), Ordem da
Estrela Vermelha, Ordem da Glória (3ª classe, do antigamente), Medalha
«Combatente da Guerra Patriótica» (1ª classe), Medalha do Jubileu por Serviços
Militares por Ocasião do 100º Aniversário do Nascimento de Vladimir Ilich
Lenine, Medalha pela Vitória Sobre a Alemanha na Grande Guerra Patriótica de
1941-1945, Medalha do Jubileu pelo 20º Aniversário da Vitória na Grande Guerra
Patriótica de 1941-1945, Medalha do Jubileu pelo 30º Aniversário da Vitória na Grande
Guerra Patriótica de 1941-1945, Medalha pela Captura de Berlim, Medalha do
Jubileu pelos 50 Anos das Forças Armadas da URSS. Como se vê, na União
Soviética, um país igualitário, havia muita medalha para distinguir uns mais
iguais do que outros (e perdoem o cliché orwelliano). Com tanta medalha,
carregadinho delas, Yegorov morreu em 1975. Já Kantaria, também muito medalhado, foi viver para a Abecásia, mas teve de se mudar para Moscovo, onde morreu, pois as tropas russas entraram à força bruta pela Abecásia adentro, arrasando, entre muita coisa, a casinha do herói da URSS. Ironias da História...
![]() |
Estátua de Meliton Kantaria, em Jvari, na Geórgia
|
![]() |
A casa do herói Meliton Kantaria, em Ochamchire, Abecásia, destruída pelos ocupantes... russos (!)
|
A tonta da Wikipedia nuns lados diz que
eram dois soldados a erguer a bandeira, noutros lados fala em três combatentes,
noutro ainda refere que foram quatro os meninos de chumbo que escalaram a
cúpula do Reichstag, que estava toda partidinha aos bocados, ou
quase que. Para contar a história, é indiferente o número dos militares,
adiante; quem quiser saber mais, é mergulhar aqui.
![]() |
Khaldei, a fotografar os julgamentos de Nuremberga
|
O fotógrafo é Yevgeny Khaldei (calma:
Yevgeny Anan’evich Khaldei), de ascendência judaica, que mais tarde seria
repórter da TASS. Como é óbvio, recebeu também um camião de medalhas e condecorações
patrióticas, que nos escusamos de enumerar, até porque são muitas. Como muitas
foram as manipulações fotográficas que Khaldei fez ao longo da carreira, sem
quaisquer problemas de consciência, até porque – importa dizê-lo – na época
essas coisas não eram vistas com os olhos dos nossos tempos, mais éticos e
exigentes quanto à autenticidade da realidade fotografada. Khaldei fez carreira
em grande, sendo autor de retratos oficiais de Estaline, Gorbachev, Yelstine,
entre outras alimárias possantes.
![]() |
Isto está aqui para quem se interessa muito por filatelia do Azerbaijão
|
A
história da fotografia está contada há muito (até há selos do Azerbaijão com a
imagem, imagine-se!) e não adianta esmiuçá-la: hábil na arte do décor e dos
adereços, Khaldei levou consigo uma bandeira king size, feita por um tio, que
se entusiasmara com outra foto icónica, a dos americanos a levantar a Stars and
Stripes em Iwo Jima, captada por Joe Rosenthal.
Pois se os americanos tinham feito uma imagem gloriosa e retumbante, que até
deu um filme do Clint Eastwood, os soviéticos queriam à viva força mostrar a sua
raça vermelha – e daí a fotografia da bandeira no Reichstag. Esta competição
imagética era o prenúncio da Guerra Fria, a prova provada de que o conflito
tépido entre EUA e URSS começou muito antes de resolverem aquela grande
embrulhada com os nazis.
![]() |
Joe Rosenthal, Raising the Flag at Iwo Jima,
Fevereiro de 1945
|
O
Reichstag era um edifício simbólico do nazismo e Estaline queria à viva força
que fosse tomado antes de 1 de Maio, para celebrar o triunfo sobre Hitler no
Dia do Trabalhador. As coisas complicaram-se, o marechal Zukhov informou
Moscovo, a 30 de Abril, que já havia conquistado o Reichstage mas, foi-se a
ver, e no 1º de Maio ainda não tinham tomado o simbólico prédio, que é grande.
A bandeirinha só seria afixada, como dissemos, no dia 2 de Maio.
Há
muitas histórias à volta da cena, a ponto de se dizer que quem colocou a bandeira
foi um ucraniano de dezoito anitos, Alexei Kovalyov, mas que a polícia política, a NKVD, o mandou
estar caladinho e dar os créditos a outros. Também havia um tal de Abdulkhakim Ismailov (1916-2010), do Daguestão, segundo referiu o fotógrafo. Para o caso, não importa. Foram ao
telhado do edifício, Khaldei tirou a fotografia, que a dia 13 de Maio, na Cova
da Iria, seria publicada na revista Ogonyok (ou Oronëk?)
Existem outras imagens da cena (ver acima), mas, como sempre sucede, só uma pôde ser eleita como «icónica» − e foi a de Khaldei, que trabalhou para isso.
Existem outras imagens da cena (ver acima), mas, como sempre sucede, só uma pôde ser eleita como «icónica» − e foi a de Khaldei, que trabalhou para isso.
![]() |
A imagem original (ampliada)
|
![]() |
O fumo artificialmente enegrecido, ao fundo
|
Para
já, começou por juntar uns fuminhos, ou enegrecer os que lá existiam ao fundo da cena, para adensar a atmosfera
de guerra total e dar um apontamento épico à coisa. A imagem, com a bandeira da foice
e martelo, seria usada como símbolo do triunfo do comunismo sobre o nazismo, o
que é um facto histórico: quem libertou Berlim foram os soviéticos, à custa de
milhões de mortos. Sobre a Batalha de Berlim podemos ler o que conta Anthony
Beevor mas, para perceber a dimensão do erro geopolítico dos Aliados
ocidentais, ao deixarem o campo livre à URSS para conquistar a capital do
Reich, há umas passagens interessantes e muito informativos no calhamaço da
Anne Applebaum A Cortina de Ferro. O Fim da Europa de Leste (trad. portuguesa, Civilização Editora, 2013).
![]() |
A imagem original, com relógios nos dois pulsos
|
![]() |
A imagem manipulada e censurada, já sem o relógio no pulso direito
|
Por muito que possa parecer uma heresia, deve dizer-se que, apesar do vermelho da bandeira e da foice/martelo, a imagem, bem vista e analisada, representa, sem dúvida, a vitória militar da União Soviética. Mas não pode, de modo algum, ser usada como símbolo do triunfo da ideologia comunista nem da doutrina e das promessas messiânicas que lhe estão associadas. Pelo contrário – e mesmo sem contar com as honrarias medalhísticas ou as sinistras intervenções da NKVD e outras conspiratas –, a imagem, por paradoxal que possa parecer, é, isso sim, uma vitória retumbante de alguns princípios do capitalismo e da economia de mercado. Discordam? Ora vamos lá ver: a fotografia foi manipulada e maquilhada para limpar da imagem o relógio que o soldado heróico trazia ao pulso direito. No original, um relógio em cada pulso, na imagem manipulada, apenas um relógio no pulso esquerdo. E não, não eram relógios fornecidos pelo Exército Vermelho. Eram relógios roubados na Alemanha, em Berlim, em Budapeste, na Polónia, em qualquer lugar por onde passassem as tropas de Estaline. Sobre essa questão relojoeira, vejamos o que diz Anne Applebaum, descrevendo o avanço dos soviéticos:
«Os
relógios de pulso pareciam ter um significado quase mítico para os soldados
russos que sempre que podiam se passeavam com meia dúzia deles no braço ao
mesmo tempo. Uma fotografia icónica de um soldado russo a hastear a bandeira
soviética no cimo do Reichstag de Berlim teve de ser retocada para remover os
relógios de pulso do braço do jovem herói [aqui, Applebaum baseia-se no livro
de Alexander Nakhimovsky e Alice Nakhimovsky, Witness to History. The Photographs of Yevgeny Khaldei, Nova
Iorque, 1997]. Em Budapeste, a obsessão com eles ficou como parte do folclore
local e pode ter contribuído para moldar a percepção local do Exército
Vermelho. Uns meses depois da guerra, um cinema de Budapeste mostrou um jornal
cinematográfico sobre a conferência de Ialta. Quando o Presidente Roosevelt
levantou o braço enquanto falava com Estaline vários membros da assistência
gritaram: “Cuidado com o relógio!” O mesmo foi verdade na Polónia, onde durante
muitos anos as crianças polacas “brincavam” aos soldados soviéticos gritando “Davai chasyi” – “Dá-me o teu relógio!”
Uma série infantil da televisão polaca, muito apreciada em fins dos anos 60,
incluía uma cena de guerra com soldados russos e polacos, acampados em
edifícios alemães abandonados, que tinham juntado uma vasta colecção de
relógios roubados».
Depois
de vasculhar o Youtube, encontrei uns episódio da belíssima série polaca, intitulada, como sabem, Cseterej pancerni i pies (sim, que isto
do Malomil dá muito trabalho). Mas não apanhei, por ora, as imagens das
brincadeiras com relógios roubados, constantes do episódio nº 13, transmitido
em 1969. Se algum leitor do Malomil que tenha interesse em séries infantis
polacas dos anos 1960 por acaso me facultar o episódio número 13 do Cseterej pancerni i pies, transmitido em 1969, em versão completa e de preferência
com boa definição, agradecia penhoradíssimo. Certamente haverá muitos leitores do
Malomil que estudam e acompanham de perto a filmografia infantil polaca da década de
1960, pelo que lhes deixamos este apelo, lancinante.
Uma coisa curiosa no avanço dos russos foi a seguinte: à medida que iam até à Polónia e à Alemanha, descobriram que, afinal, o que lhes tinha dito a propaganda soviética desde os bancos de escola era falso. Não, o Ocidente não era a miséria que julgavam. Pelo contrário, os camponeses polacos, mesmo após a devastação da guerra, tinham quintas, uma ou duas vacas, criação de galinhas e porcos, couves-galegas. O Kremlin ficou aterrado com os relatórios que os comissários políticos lhe enviavam da frente de combate. O Oeste era muito melhor do que a Rússia dos sovietes, com belas casas, avenidas majestosas – e relógios de pulso. Daí que Estaline tenha engendrado uma manobra canhestra de desinformação, dizendo que tudo aquilo que os soldaditos viam não passava de uma fachada, de uma encenação, ou do resultado da pilhagem que, anos a fio, tinha sido perpetrada à Mãe-Rússia. Os soldaditos não ligaram muito, pois estavam mais interessados em sacar relógios, quantos mais melhor. Esta obsessão relojoeira exprime (1) por um lado, o fascínio embasbacado pelos bens e produtos do Ocidente, que na Rússia não eram de acesso fácil; (2) por outro lado – e mais decisivamente –, o desejo ávido de posse, o sentimento de propriedade privada, de apropriação, o que, convenhamos, é típico do capitalismo e da economia de mercado, nos antípodas dos princípios socialistas soviéticos. Assim, apesar de ostentar a bandeira vermelha com a foice e o martelo, o que a fotografia revela, antes de expurgada pela censura, é um soldado com relógios no pulso, relógios de que se apropriou e fez seus, para levar para casa, para deixar aos filhos, juntamente com as medalhas e condecorações de guerra que lhe colocaram ao peito na Praça Vermelha. Um triunfo do comunismo sobre o nazismo, sem dúvida. Uma vitória do comunismo sobre o capitalismo, isso é mais problemático…
E agora, como acontece muito pelas bandas deste blogue, as habituais recriações e os muitos pastiches da célebre fotografia martelada de Eugénio Khaldei ou doutras da bandeira no Reichstag:
Etiquetas:
2ª Guerra,
Alemanha,
António Araújo,
Capitalismo,
Comunismo,
Estaline,
Fotografia,
Guerra,
História,
História Contemporânea,
Hungria,
Manipulação,
Polónia,
Propaganda,
RSS,
Rússia
Subscrever:
Comentários (Atom)
















































