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domingo, 17 de fevereiro de 2013

As unidades militares de Cascais.







 

A história de Cascais como sede de unidades militares pode dividir-se em três períodos principais. O primeiro começa em 1703, quando aqui foram fixadas três companhias de Infantaria que dariam origem ao Regimento de Infantaria 19, e acaba em 1834, quando este Regimento foi extinto pela Convenção de Évora-Monte.


 

Figurino dos uniformes do Regimento de Infantaria da Praça de Cascais (1762?), in Uniformes de Vários Regimentos (Séc. XVIII). AHM-DIV-3-26-17936.1 (09).


 

Bastante tempo depois, inicia-se o segundo período, quando a República, em 1913, coloca em Cascais uma Companhia de Caminhos-de-Ferro, resultante da redução do Grupo Independente de Caminhos-de-Ferro que fora criado pela reforma do Exército de 1911. Foi esta Companhia que mobilizou um Batalhão de Sapadores de Caminhos-de-Ferro para integrar o Corpo Expedicionário Português enviado para França a partir de Janeiro de 1917. No seu regresso, o Batalhão ainda se alojou em Cascais, mas pouco depois foi transferido para o Quartel dos Marinheiros em Alcântara, Lisboa.

 

 

 
Frente e verso de um bilhete-postal de despedida de Cascais do Batalhão de Sapadores de Caminhos-de-Ferro, 1917. AHM-DIV-1-35-1345-16.
 
 

O último período de Cascais como base de unidades militares pode chamar-se o período da Artilharia, e inicia-se em 1927, com a instalação na Cidadela de Cascais da Bateria de Artilharia de Defesa Móvel nº 4, logo transformada em Grupo Independente de Artilharia Pesada nº 3. O período da Artilharia continuou com a reorganização de 1931, que transformou a unidade em Grupo de Artilharia de Defesa Móvel de Costa. Em 1935 passou a Grupo de Artilharia Contra Aeronaves transformado em Grupo de Artilharia Contra Aeronaves nº 1 (GACA 1) em 1939, assim se mantendo até 1959. Os novos tempos obrigaram à adaptação de meios e missões e por isso a Artilharia instalou aqui o seu Centro de Instrução de Artilharia Anti-Aérea e de Costa (CIAAC), que veio a ser extinto em 2004.
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Peça antiaérea pesada 9,4 cm do Grupo de Artilharia Contra Aeronaves nº 1 (GACA 1) de Cascais, desenho de Alberto Sousa, 1947. AHM-DIV-3-26-17934-7-44.

 



O Regimento de Infantaria 19, que se manteve em Cascais por mais de 130 anos, ligou a sua história à Cidadela de Cascais, como seu quartel base, e daqui partiu para integrar a Divisão Auxiliar a Espanha que esteve no Rossilhão e na Catalunha em 1793-1795, assim como integrou a força anglo-portuguesa que participou na Guerra Peninsular, desde o Buçaco, em 1810, até às últimas batalhas em solo francês, em 1814.

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A Divisão Auxiliar a Espanha era constituída por seis regimentos, sendo um deles formado por efectivos do Regimento de Infantaria 19 de Cascais, comandado, nesta campanha, pelo coronel Francisco de Melo de Mendonça da Cunha Meneses, que viria a ter os títulos de conde de Castro Marim em 1802, marquês de Olhão em 1808, ano em que foi nomeado um dos governadores do Reino.
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Figurinos dos uniformes do Regimento de Infantaria da Praça de Cascais (1791), in Uniformes dos Regimentos do Reino e Conquistas). AHM-DIV-3-26-18005 (10).




Figurinos dos uniformes do Regimento de Infantaria da Praça de Cascais (1777). AHM-DIV-3-26-18684.9 (497).
   


Outro figurino do Regimento de Infantaria da Praça de Cascais (1792?), in Uniformes de Vários Regimentos (Séc. XVIII). AHM-DIV-3-26-17936.2 (16).
  

Relação do fardamento do Regimento da Praça de Cascais (1792?), in Uniformes de Vários Regimentos (Séc. XVIII). AHM-DIV-3-26-17936.2 (17)

                                                                                             

Figurino de uniforme do Regimento de Infantaria da Praça de Cascais (1799). AHM-DIV-3-26-18684.1 (59).

  
 
                     Figurinos de uniformes do antigo Regimento de Cascais (1806), in Uniformes Militares, edição da Revista “Defesa Nacional”, desenho de Carlos Ribeiro, s.d. AHM-DIV-3-26-17933 (53).
                                                                                    

                                                                                                                                                                                                       


O RI 19 foi dissolvido, como os restantes corpos do Exército, por Junot, em 22 de Dezembro de 1807. Os seus elementos foram integrados na Legião Portuguesa que Junot enviou para França e que saiu do país em Abril de 1808. Mas logo a seguir à Convenção de Sintra, em 30 de Agosto de 1808, e incluindo muitos dos desertores da Legião Portuguesa, foi reorganizado o RI 19 em Cascais, embora com apenas 200 homens. Em Janeiro de 1809 já o RI 19 tinha 1.600 homens e foi a partir desta unidade que se constituiu, juntamente com forças do Regimento de Infantaria 7 e do Batalhão de Caçadores 2, uma das brigadas portuguesas que integrou a força anglo-portuguesa presente no Buçaco em Agosto de 1810.      
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Figurinos de uniformes das 3ª e 4ª Brigadas da Divisão do Centro utilizados pelos militares do Regimento de Infantaria 19, na Guerra Peninsular (1810). AHM-DIV-3-26-18684.11 (53).
 


 

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Imagem de Santo António que acompanhou o Regimento de Infantaria de Cascais em várias campanhas, assim como as unidades militares que lhe sucederam no mesmo quartel. AHM-FE-10-E1304-PQ-2.

 

 

A ligação de Santo António a uma unidade militar começou no Regimento de Lagos, durante as guerras da Restauração, sendo após o tratado de paz de 1668 alistado como praça naquele Regimento por alvará de D. Pedro II, de 24 de Maio de 1668. A 12 de Setembro de 1683, D. Afonso VI promoveu-o a capitão. Só em 1777, o comandante do Regimento de Lagos fez proposta de promoção a major, através de um texto muito curioso: “certifico que não existe alguma nota relativa a Santo António, de mau comportamento ou irregularidade praticada por ele: nem de ter sido em tempo algum açoitado, preso, ou de qualquer modo punido durante o tempo que serviu como soldado raso no regimento: Que durante todo o tempo, em que tem sido capitão, vai quase para cem anos, constantemente cumpriu seu dever com o maior prazer à frente de sua companhia, em todas as ocasiões, em paz e em guerra, e tal que tem sido visto por seus soldados vezes sem número, como eles todos estão prontos para testemunhar: e em tudo o mais tem-se comportado sempre como fidalgo e oficial: e por todos estes motivos acima referidos considero-o muito digno e merecedor do posto de major agregado ao nosso regimento, e de quaisquer outras honras, graças ou favores que aprouver a S. M. conferir-lhe. Em testemunho do que assinei meu nome, hoje 25 de Março do ano N. S. J. C. 1777. Magalhães Homem”.

 

Em 1807, por decisão de Junot, foi Santo António promovido a tenente-coronel, pouco antes de o seu Regimento deixar de existir, voltando a ser pago dos seus vencimentos, interrompidos em 1779, por decisão do Marquês de Pombal.

 

A crença transitou então para o Regimento de Infantaria de Cascais, a propósito de um recontro com tropas francesas no lugar de Santo António do Cântaro, no dia 27 de Setembro de 1810, em que participaram tropas deste Regimento. A partir daqui, a imagem de Santo António, a mesma que estivera em Lagos, acompanhou as tropas do Regimento que participaram na Guerra Peninsular, mantendo-se depois no quartel de Cascais.

 

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Esta brigada só se dissolveu no final da Guerra Peninsular, em 1814, tendo participado nas seguintes acções, em Espanha: Batalha de Fuentes de Oñoro em 5 de Março de 1811; 2º Sítio de Badajoz, de 19 de Maio a 17 de Julho de 1811; Sítio de Cidade Rodrigo, de 7 a 19 de Janeiro de 1812; Batalha de Salamanca em 22 de Julho de 1812; Sítio do Forte do Retiro em Madrid de 15 a 19 de Agosto de 1812; Combate da ponte de Valladolid em 28 de Outubro de 1812; Acção de San Muñoz em 17 de Novembro de 1812; Batalha de Victoria  em 21 de Junho de 1813; Batalha dos Pirinéus, de 28 a 30 de Julho de 1813; Combate das alturas de Zarza, em 31 de Julho de 1813; Combate de Echalar, em 2 de Agosto de 1813; Combate de Zagaramurdi, em 13 de Agosto de 1813; Tomada da Praça de S. Sebastião, em 31 de Agosto de 1813; Passagem do rio Bidassoa, em 7 de Outubro de 1813.

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Bilhete-postal de 1905 sobre a Guerra Peninsular, com um figurino de uniforme do Regimento de Infantaria de Cascais. AHM-DIV-3-26-18684.1 (124).


 

Já em França, foram as seguintes as acções da unidade que incluía tropas do RI 19: Batalha de Nivelle, em 10 de Novembro de 1813; Combate de Hastingues, em 23 de Fevereiro de 1814; Batalha de Orthez, em 27 de Fevereiro de 1814. As forças portuguesas regressaram a Portugal a partir de 30 de Maio de 1814, onde foram recebidas de forma entusiástica.
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Gravura de Wellington, Comandante em Chefe das forças anglo-portuguesas durante a Guerra Peninsular. AHM-P47-III-1611.

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No dia 25 de Março de 1828, o RI 19, juntamente com outras unidades, seguiu a causa de D. Miguel, comparecendo em formatura no Terreiro do Paço em Lisboa. Depois de ter participado nas campanhas da Guerra Civil, acabou, como dissemos, por ser dissolvido definitivamente pela Convenção de Évora-Monte. Um regimento com o mesmo número viria mais tarde a ser constituído, mas sem qualquer ligação a esta unidade de Cascais. A sua sede situa-se, até hoje, na cidade de Chaves, onde se instalou em 1885.

 
Só em 1913 a Cidadela de Cascais voltou a ser sede de uma unidade militar, inaugurando um período de sapadores de caminho-de-ferro, que se estendeu até 1927.

 
As primeiras tropas de caminhos-de-ferro foram constituídas em Portugal em 1884, com a reorganização militar de Fontes Pereira de Melo. Começou por uma Companhia de Caminhos-de-Ferro, integrada no Regimento de Engenharia. As suas missões resultavam do uso dos caminhos-de-ferro para fins militares, e compreendiam a construção, a manutenção e a destruição de linhas-férreas, de acordo com a evolução do exército em campanha. Em tempo de paz competia a estas tropas estarem preparadas para explorar troços ou mesmo substituir o pessoal civil, sempre que as circunstâncias o exigissem.

 
A República, na sua reestruturação do Exército de 1911 constituiu um Grupo Independente com duas companhias de caminhos-de-ferro, que em 1913 reduziu a uma companhia e transferiu da Cova da Moura para a Cidadela de Cascais.

 

 


Bilhete-postal militar utilizado pelo Batalhão de Sapadores de Caminhos-de-Ferro em França, 1917-1919. AHM-DIV-1-35-1345-16 (postal 1).

 

 

Quando se constituiu o Corpo Expedicionário Português para integrar as tropas britânicas em França, depois da declaração de guerra da Alemanha a Portugal em 9 de Março de 1916, foi mobilizado um Batalhão de Sapadores de Caminhos-de-Ferro que, embora subordinado ao C.E.P., poderia ser utilizado pelo Comando Inglês em zonas próximas do sector português. A companhia com sede em Cascais encarregou-se dessa mobilização, constituindo o Batalhão com 40 oficiais e 1248 sargentos e praças. Entre Fevereiro e Maio de 1917 as tropas de sapadores de caminhos-de-ferro embarcaram para França, onde acabaram por ficar directamente subordinadas ao I Exército Britânico, tal como o C.E.P.
 

Os primeiros trabalhos destas tropas começaram logo em Março de 1917, pouco depois da sua chegada a França. Participaram na construção da linha-férrea de Achiet para Bapaume, na região do Somme. Usadas depois estas tropas para levantamento de linhas férreas já inúteis, para reutilização do material levantado, acabaram por participar na construção de algumas linhas nas regiões de Ypres e Messines, na Bélgica, na região de Armentières, próximo do sector do C.E.P., e também nas regiões de Arras, Calais, Abbeville e Dieppe. Muitos destes trabalhos foram efectuados muito próximo das frentes de combate, o que mereceu os devidos destaques, tanto pelo Comando Britânico como Português.
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Formatura geral do Batalhão de Sapadores de Caminhos-de-Ferro em Aire-sur-la-Lys (França) para o regresso a Portugal, em Abril de 1919. AHM-DIV-1-35-1345-16 (foto).


 
 

Durante a sua presença em França foram ainda organizadas mais duas Companhias de Sapadores de Caminhos-de-Ferro, pelo que, no dia do Armistício, em 11 de Novembro de 1918, as seis companhias se encontravam dispersas em várias zonas da frente, embora a 6ª se encontrasse ainda em organização. O Batalhão de Sapadores de Caminho-de-Ferro reuniu depois todos os seus efectivos no porto de embarque de Cherburgo, tendo iniciado o seu regresso a Portugal a 27 de Abril de 1919.

 
Do louvor que recebeu em Ordem do Exército consta queO Batalhão de Sapadores de Caminhos-de-Ferro foi a unidade portuguesa que com mais persistência e assiduidade cooperou na zona de guerra, onde prestou notáveis e assinalados serviços, em circunstâncias por vezes difíceis e arriscadas”.

 
Em 1920, e pelos serviços prestados em campanha, foi concedido o grau de Comendador da Ordem da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito (O. E. n.º 10, II Série, de 10 de Julho de 1920), ao “Batalhão de Sapadores de Caminhos-de-Ferro – porque num aturado serviço de campanha de quase dois anos, deu continuamente provas brilhantes de inexcedível dedicação pelo cumprimento dos seus deveres, estando sempre pronto para os mais árduos e arriscados serviços, que desempenhou com perfeita competência técnica e particular distinção, tendo merecido honrosas referências dos comandantes aliados sob cujas ordens serviu, e mantido um alto moral e um espírito de corpo fora do vulgar”.
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Artigo publicado em “O Notícias Ilustrado”, em 28-04-1935, da autoria de Carlos d’Ornelas, sobre a comemoração da partida para França do Batalhão de Sapadores de Caminhos-de-Ferro. AHM-DIV-1-35-1345-16.
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O Batalhão regressou, como dissemos, à sua base na Cidadela de Cascais, mas pouco depois foi transferido para Lisboa, tendo sido utilizado, como já fora antes da Guerra, para apoiar, suprir ou mesmo substituir o pessoal civil nos caminhos-de-ferro, mesmo quando as greves dos ferroviários deixavam os comboios parados. 

 
Do período da Artilharia, que se iniciou em 1927 e se estendeu até à extinção do Centro de Instrução de Artilharia Antiaérea e de Costa (CIAAC), cumpre destacar o papel desta unidade no processo desencadeado pelo 25 de Abril de 1974, período em que assumiu as suas funções estritamente militares, mas também colaborou, de forma muita positiva, na consolidação do processo democrático em Portugal.
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Peça antiaérea ligeira 20 mm do Grupo de Artilharia Contra Aeronaves nº 1 (GACA 1) de Cascais, desenho de Alberto Sousa, 1947. AHM-DIV-3-26-17934-7-45.
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Em resumo, durante quase três séculos, a Cidadela de Cascais serviu de base a várias unidades militares, sendo de destacar a sua ligação ao Regimento de Infantaria 19, que aqui permaneceu durante 130 anos, atravessando vários tempos difíceis, em especial a época das Invasões Francesas, em cujas operações esteve empenhado. Também a República aqui instalou uma unidade, o Batalhão de Sapadores de Caminhos-de-Ferro, que se distinguiu no teatro de operações de França, durante a Grande Guerra, de onde regressou com a satisfação do dever cumprido. O período da presença da Artilharia, em pleno século XX, foi marcante para a história desta arma e das relações de Cascais com as suas unidades militares, permanecendo na memória de muitos artilheiros e de muitos residentes de Cascais uma ideia de excelente cooperação, num período de grandes dificuldades, que incluiu a II Guerra Mundial, a Guerra Colonial e o pós-25 de Abril.
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Figurinos do Regimento de Infantaria de Cascais (1783), in Uniformes da Tropa Paga de que se Compõem os Regimentos de Infantaria, Artilharia e Cavalaria dos Exércitos de Sua Majestade no Reino e Conquistas que Recebam seus Fardamentos pelo Arsenal Real do Exército. AHM-DIV-3-26-17774 (10).

 

 
Fardamento do Regimento de Infantaria de Cascais, Idem. AHM-DIV-3-26-17774 (10A).
 

 

 



Aniceto Afonso

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O Arquivo da Grande Guerra - Um projecto do Exército.





Tem sido publicitado que o Exército, no âmbito da sua participação nas comemorações do centenário da Grande Guerra, vai finalmente organizar os fundos documentais de que é detentor, relacionados com a participação portuguesa na guerra. É uma boa notícia. Todos nós esperamos, em especial a comunidade académica e universitária, que o trabalho a efectuar seja de qualidade, planeado e executado com cuidado científico e sem excessiva interferência nos trabalhos de investigação em curso.
Como antigo director do Arquivo Histórico Militar (entre 1993 e 2007) e como investigador dessa época só posso congratular-me por o Exército se dispor a efectuar os trabalhos que há muito vinham sendo reclamados. Mas, se me é permitido, gostaria de partilhar algumas preocupações que me ocorrem. Faço-o publicamente porque elas são preocupações de carácter geral, não envolvendo qualquer crítica ou desacordo.
   
Entrada do edifício do Estado-Maior do Exército, lado de Santa Apolónia, porta de acesso ao Arquivo Histórico Militar. Foto de Aniceto Afonso, 2007.
 

Quais são então essas preocupações?
Em primeiro lugar, a constituição da equipa. O tratamento de arquivos e fundos documentais tem hoje regras muito específicas, normas e procedimentos completamente definidos, que fazem parte da formação e actuação dos membros da comunidade arquivística. É pois necessária uma ligação à autoridade nacional arquivística (o Arquivo Nacional) e a inclusão de técnicos desta área na equipa executiva do trabalho.
Em segundo lugar, a relação com a universidade. Felizmente muitas universidades estão hoje preparadas para abordar e investigar temas de história contemporânea, existindo em muitas delas Centros e Institutos próprios para esta área, assim como departamentos de Ciências Documentais. O Exército só teria a ganhar se estabelecesse protocolos com uma ou várias Universidades, no sentido de a organização dos fundos da Grande Guerra poder ser acompanhada por especialistas universitários deste âmbito.
 
Pátio dos canhões, porta de entrada no Arquivo Histórico Militar. Foto de Aniceto Afonso, 2007.

 
Em terceiro lugar, as investigações em curso e aquelas que serão iniciadas durante este período comemorativo. Organizar um arquivo pode implicar uma enorme interferência na sua documentação, tudo dependendo do plano de abordagem e da profundidade necessária à reconstituição e reorganização dos processos. Ora, esta seria a pior altura para retirar do acesso à leitura os fundos documentais em causa, pois será este o período em que mais incentivos surgirão para o estudo e para a publicação de trabalhos sobre o assunto. Esta situação merece uma ponderação cuidada da comissão que se prepara para dar andamento ao projecto do Exército.
Em quarto lugar, a informatização. Existem hoje, felizmente, no mercado nacional, programas informáticos de gestão documental adequadamente preparados para gerir a reorganização de fundos arquivísticos. Os que principalmente têm sido usados pelo Arquivo Histórico Militar resumem-se a dois, mas julgo que serão perfeitamente adequados ao trabalho que é necessário efectuar. Um, é o Digitarq, comercializado pela empresa Keep Solutions (distribuído gratuitamente pelo Arquivo Nacional, embora impedido por este de ser desenvolvido para além da sua actual versão 3); o outro é o ArqHist, desenvolvido pela empresa SHP, possuidora do portal de pesquisa inter-arquivos InfoGestNet, acessível on-line e através do qual é possível, já hoje, aceder às outras bases de dados do próprio Arquivo Histórico Militar. Julgo que a comissão deve também neste campo ponderar vantagens e custos para determinar a melhor opção. O que nunca deve, pela má experiência anterior, é tentar construir um projecto informático próprio.
 
 
Caixas do arquivo do C.E.P. num dos depósitos do Arquivo Histórico Militar. Foto de Aniceto Afonso, 2007.




Em quinto lugar, as prioridades. Os principais núcleos da documentação relacionada com a Grande Guerra estão dispersos na actual organização do Arquivo Histórico Militar e porventura, assim devem continuar. São os seguintes, se não estou em erro:

- O Arquivo do Corpo Expedicionário Português. Este é de longe o mais importante acervo documental do AHM relacionado com a Grande Guerra. Tem cerca de 3.000 caixas de documentação e inclui, para além do C.E.P. propriamente dito, também os fundos documentais da Divisão de Instrução, da Divisão Auxiliar, do Estado Maior do Exército, do Quartel General Base, entre outros menores. Na organização actual do AHM constituem a 35ª Secção (C.E.P.) da 1ª Divisão (Operações em Portugal e na Europa).

Militares portugueses numa trincheira na Flandres. Foto de Arnaldo Garcês, 1917/18,
colecção do AHM.


- A documentação relacionada com Angola e Moçambique. A este propósito convém dizer que a documentação essencial destas frentes da campanha da Grande Guerra se encontra no Arquivo Histórico Ultramarino, pois as expedições militares para as colónias eram organizadas pelo Ministério das Colónias, sendo os militares mobilizados transferidos de Ministério. Mas existe ainda documentação significativa referente a cada um destes territórios nas Secções 2ª (Angola) e 7ª (Moçambique) da 2ª Divisão (Ultramar/Colónias).

- Os três fundos especiais (Mapoteca, Fototeca e Iconografia), que incluem espécies e colecções com referência à Grande Guerra. Só me pronunciarei aqui sobre a Mapoteca, que teria toda a vantagem em usar os instrumentos de descrição e de divulgação que estiveram na base do tratamento do património cartográfico do Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar, actualmente na dependência da Direcção do Serviço de Infra-Estruturas do Exército (acessível on-line).

- A colecção de boletins individuais dos militares que fizeram parte do C.E.P. (Secção 35A da 1ª Divisão).

- A Secção 36ª da 1ª Divisão referente ao período da Guerra, mas sem relação directa com as operações militares.

Toda esta documentação tem estado acessível ao público, sem quaisquer restrições, desde muito antes da minha passagem pelo Arquivo Histórico Militar e, que eu conheça, não existe nenhuma documentação especialmente classificada e retirada do acesso público, pelo que é completamente infundada a ideia de que existem baús ou segredos na documentação que agora vai ser arquivisticamente tratada. Existem mesmo alguns especialistas que conhecem a documentação a fundo, devendo eu destacar, entre todos, o único que efectuou um estudo sistemático desta documentação, ao longo dos muitos anos que tem dedicado ao seu estudo - o coronel (e professor universitário) Luís Alves de Fraga, a quem me ligam laços de amizade e de muita admiração pelo seu trabalho de investigação e de seriedade científica.


 
Oficiais portugueses do C.E.P. na frente europeia. Foto de Arnaldo Garcês, 1917/18, colecção do AHM.

Finalizando este meu apontamento, que já vai longo, diria:

- Que se torna necessário estabelecer prioridades para este enorme projecto, que tenham em conta algumas das condicionantes (e outras) que apontei;

- Que seria importante tornar acessível, logo que possível, os boletins individuais dos militares do C.E.P. (Secção 35A/1ª Divisão), devidamente digitalizados. De uma forma geral os países participantes na Grande Guerra já disponibilizam on-line acesso a estes boletins;

- Que seria de elementar bom senso consultar investigadores, arquivistas e conhecedores da documentação concreta em apreço;

- Que existisse sensibilidade e prudência na abordagem e planeamento da intervenção, minimizando as consequências para as investigações em curso e para a crescente procura a que os fundos vão ser sujeitos neste período de aproximação das comemorações centenárias.

Finalmente, o meu contributo tem um carácter positivo, dou-o através deste testemunho pessoal, mas tenho estado, estou e sempre estarei disponível para colaborar, dentro das minhas capacidades e limitações, com o Exército e os seus responsáveis. Sem outro interesse que não seja o bem público e o funcionamento das instituições.

 
Lisboa, 27 de Dezembro de 2012
Aniceto Afonso