sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

André Kertész.

 
 
 
 











Sim ou Não.







 
 


 
Como fui convidado, em 1963, para me filiar no PCP
e porque não aceitei esse convite
 
(Excerto dum livro de memórias)
 
 

 
Gostaria de lembrar aqui um detalhe importante, ocorrido em 1963, no ano em que comecei a namorar aquela colega da Faculdade de Letras que seria, um ano depois, a minha mulher. O meu activismo político, desde o final da minha passagem pela Faculdade de Direito e intensificada com a greve universitária de 1962, já aluno de Letras, resultava da colaboração de um pequeno punhado de colegas meus, aparentemente sem filiação partidária, com um entusiasmo inocente e atrevido, e consistia sobretudo em fabricar panfletos a stencil, distribuídos depois pelas caixas de correio nos bairros burgueses de Alvalade, pois era ali que habitámos, assim como pintarmos a nitrato de prata graffitis negros nas paredes virginalmente brancas das nossas faculdades. Semelhante espontaneidade militante e atrevida não podia passar despercebida ao único partido então existente em Portugal, o obviamente clandestino Partido Comunista, que decidiu contactar-me em 1963, solicitando-me para um encontro através duma colega do curso de Filosofia na Faculdade de Letras, a qual me industriou sobre o local público onde ele decorreria, indicando-me o modus operandi dessa entrevista e combinando ainda o santo e a senha desse contacto inicial com um enviado misterioso que eu, obviamente, não conhecia: eu levaria comigo um exemplar do L´Espoir de Malraux, no burguesíssimo café Mexicana, no qual o encontro fora marcado, cabendo ao enviado do PCP abordar-me perguntando, enquanto apontava o romance em cima da minha mesinha: “– Gosta desse autor?”, ao que eu deveria responder : “– É um dos meus favoritos” , abordagem cifrada que não despertaria suspeitas no meio dum café tão barulhento, à Praça de Londres, com as suas graciosas cerâmicas de Querubim Lapa, ideal para encetar um eventual recrutamento partidário.




 
 
À hora combinada vi entrar naquele café perto da Praça de Londres, entre outras pessoas casuais, com o ar esperado de quem procura alguém no meio duma sala cheia de clientes, um antigo colega, mais velho, do Colégio Militar, que fora comandante de batalhão, honra suprema que um graduado podia receber no derradeiro ano do curso, o qual me fez um aceno ao longe, mas sem se deter na mesa onde eu abancara, o que parecia desde logo desmentir o palpite que senti ao vê-lo avançar pela sala. Depois de ter dado algumas voltar pelo café, muito apinhado àquela hora, passou de novo por mim e, vendo o meu livro exibido em cima da mesinha, percebeu que era eu o convidado para esse encontro secreto. A conversa correu como seria de esperar: ele a explicar-me o interesse com que o “partido dos trabalhadores” registara a minha militância e temerária liderança dum pequeno grupo de estudantes universitários antiditatoriais, pelo que a minha acção se tornara conhecida no meio do PCP, o qual me vinha propor que esse punhado de rebeldes se juntasse às massas do Partido, de modo que este pudesse amparar-nos e potenciar a nossa militância, garantindo-lhe ainda todo o apoio, tanto domesticamente como fora das fronteiras, no caso de sermos perseguidos ou presos. E sublinhava que não fazia sentido agirmos isolados da “grande máquina de guerra no combate ao Fascismo em prol dum Portugal democrático”, ao mesmo tempo que, louvando a ousadia dos nossos panfletos de fabrico caseiro, fazia notar que havia neles, todavia, alguns aspectos politicamente incorrectos, como por exemplo, os remoques à Igreja católica, quando convinha precisamente atrair para o nosso lado os católicos progressistas.
 


Sensibilizado com os elogios recebidos e o tom afável do emissário do PCP, expliquei que não me sentia um “partidista” (a expressão fora por mim colhida na prosa liberal de Ortega y Gasset),  já que nos meus tempos no Colégio Militar eu timbrara em ser um dissidente, a ponto de depressa ser alcunhado de “Refractário”, o que, na gíria colegial, tinha um sentido muito forte de insolente recusa dos parâmetros da escola dos “Meninos da Luz”. Referi-lhe também, de modo cauteloso, algumas reticências que sentia em relação a uma espécie de genética do estalinismo dos PCs europeus – ainda não se falava de Eurocomunismo  –, mencionando o caso da “conspiração das Batas Brancas na URSS” de 1953, prólogo duma vasta perseguição os judeus soviéticos que só abortaria porque, entretanto, Estaline falecera em 1953, em pleno Purim, festa do “carnaval” judeu destinada a celebrar a derrota do sinistro Hamam, grão-vizir de Assuerus, o rei da Pérsia, que maquinava a destruição da gente judaica. No fundo, sinais dum  entranhado anti-semitismo do próprio líder. O meu antigo camarada do colégio varreu essas nugas com um ar magnânimo e afirmou que estava em curso uma vasta destalinização de todo o universo soviético, conduzida pelo intrépido camarada Krutchev, além de que o importante estava em derrubar a ditadura de Salazar. E tínhamos ambos, era evidente, uma simpatia comum pelo Castrismo, que nesses anos era tido como um caloroso e dinâmico new look do bolchevismo, agora com o entusiasmo da América Latina e do novo anjo da Revolução, o sublime Che Guevara.
 

 
E pouco mais adiantámos, ficando então combinado que eu ficava desde já cordialmente convidado a aderir ao partido, dispondo de quatro dias de reflexão para comunicar uma resposta final à minha colega da Faculdade de Letras, o que seria dado apenas por um Sim ou um Não: no primeiro caso, ela transmitir-me-ia então as instruções para a fase seguinte da minha esperada adesão ao partido dos “amanhãs que cantam”, voltando então a encontrar um outro camarada que seria o meu “controleiro” (não creio que ele tivesse utilizado este termo). Por fim, com um ar quase casual, o antigo camarada do Colégio Militar acrescentou, antes de partir, que os colegas de Direito e de Letras que eu dirigia na luta clandestina contra a Ditadura eram já, “quase todos”, membros do PCP. Este detalhe deixou-me profundamente abalado até aos recônditos da minha alma: no fundo, eu já estava, embora sem o saber, dentro na máquina partidária do PCP, embora ignorando que a maioria dos meus companheiros de combate, no fundo, obedeciam ao partido e não a mim…E discretamente, antes de partir com um ar radiante de recrutador que acaba de ganhar para a sua causa um neófito valioso, passou-me, dentro dum envelope, um folheto que percebi depois ser um pequeno manual de instruções práticas que se chamava algo como Se fores preso, Camarada, explicando como se devia comportar todo o membro do PCP quer caísse por infelicidade nas garras da PIDE.
 

Saí do café com a cabeça atordoada, sentindo, por um lado, que acabava de me avizinhar dum cruzamento decisivo e fundamental da minha vida, ao mesmo tempo que a descoberta do detalhe de que alguns dos meus companheiros de luta política já tinham aderido ao PCP me deixava humilhado e com a sensação de ter sido burlado, de não passar dum mero peão num tabuleiro de xadrez no qual jogadores com dedos gigantes moviam com superior estratégia tropas obedientes, essas pequeninas pecas de madeira. Um Sim mudaria doravante a minha vida e um Não condenar-me-ia a ser o eterno “Refractário” de sempre. Telefonei para casa da minha namorada a pedir-lhe que fôssemos conversar comigo o mais depressa possível. Poucos minutos depois, a Guida Miriam chegava de táxi ao Café Londres para ouvir da minha boca o relato do importante encontro na Mexicana. Terminado o meu relato, e interrogada sobre o que é que ela achava do sucedido, respondeu-me tranquilamente, começando por notar que, antes de mais, aquela entrevista mostrava que o meu activismo político interessara deveras o único partido de verdadeira oposição existente em Portugal e que, por outro lado, o grupo de rapazes que eu dirigia já estava desde logo filiado num partido sem que eu o soubesse. Por fim, quanto à importante escolha que me era proposta, parecia-lhe que ela tinha desde logo muito de parecido com uma proposta de casamento. E sobre esta questão essencial, a Guida Miriam foi muito clara, pois o que eu tinha de escolher nos quatro dias seguintes se resumia apenas nisto: ou eu ia casar já com o PCP ou ia casar com ela, como tínhamos já pensado fazê-lo, no ano seguinte, quando acabássemos os nossos cursos na Faculdade de Letras.
 


 
Fiquei embatucado com este discurso absolutamente inesperado, feito, ainda por cima, por uma jovem de 21 anos, que falava do caso com a sabedoria de quem vivera muito. Lembro-me que ela até fez uma comparação de bom senso: entrar para o PCP não era o mesmo que inscrever-me no Ginásio Clube Português, uma vez que, no caso deste último, bastaria cessar de pagar a quota e deixar de lá aparecer para me separar dele, ao passo que, no caso do partido sovietista, o meu ingresso implicaria, na hipótese de um dia vir a romper com ele, uma separação que se adivinhava dolorosa e traumática, tanto mais que, sendo eu filho de um administrador colonial salazarista, decerto recordariam a mácula original do meu background africano. Estas objecções deixaram-me confuso, pois nunca esperava que a minha futura mulher interpretasse o que sucedera como um conflito entre dois casamentos incompatíveis entre si. E a Guida Miriam, concluindo que era apenas a mim que competia decidir quanto à escolha desejava fazer, despediu-se logo, pedindo-me que nos quatro dias seguintes evitássemos quaisquer contactos, só voltando a encontrá-la depois de ter dado à nossa colega comunista da Faculdade de Letras a resposta final que me era pedida, negativa ou positiva. E meteu-se num táxi de regresso à sua vivenda em Benfica, enquanto eu ficava sentado, desesperadamente sozinho, numa mesinha de mármore do Café Londres, a olhar para os altos espelhos imparciais que me rodeavam, como se num deles estivesse inscrita, em tinta misteriosa que só eu pudesse decifrar, a resposta à tão abstrusa opção que o destino acabava de me impor.





 
Durante quatro dias não pensei noutra coisa, embaraçado com a dura alternativa que a Guida Miriam me tinha imposto. E quatro dias depois, em seguida a ter dito pessoalmente à nossa colega da faculdade que era negativa a minha resposta – o que a desiludiu, embora me garantisse que continua a  contar com a minha “ajuda na luta comum” –, telefonei à Guida Miriam para lhe comunicar, com fingida serenidade, que, evidentemente, tinha respondido de forma negativa ao que ela comentou apenas: “– Fizeste bem”, e nunca mais voltámos a falar deste lance tão decisivo nas nossas vidas. Em suma, sem eu me dar conta, ela ajudara-me a evitar cometer um erro de que fatalmente me arrependeria mais tarde ou mais cedo, já que era evidente que um espírito rebelde como eu, tão independente e ferozmente autónomo, nunca seria um bom militante do nosso estalinista PCP. Acrescentarei um derradeiro detalhe: nunca mais voltei a ver o antigo graduado do Colégio Militar que fora até à Mexicana para me recrutar para o “partido dos trabalhadores” com vista aos anunciados “amanhãs que cantam” – e que, na verdade, nunca chegariam. Tudo quando sei dele é que teria sido expulso, mais tarde, num das muitas purgas habituais no PCP.
                        
  João  Medina
                     
(texto extraído do livro inédito No Labirinto do Exílio)


 

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

“La parole aux détenus”.

 
 
 
Com a Union de la Gauche, que veio a ser formada em 1972, o Partido Socialista francês, o PCF e o Movimento dos Radicais de Esquerda (MRG) aliaram-se em torno do Programa Comum para a legislatura, prometendo reformas que abririam o caminho para o socialismo, desde logo nacionalizando sectores chave da economia francesa. Ora, muitos intelectuais da esquerda estavam desiludidos com a URSS, com o PCF e com o sistema de partidos. Impulsionados pelo entusiasmo soixante-huitard, apontaram as baterias para novas formas de intervenção, pretensamente de democracia directa.
 
 
 
Revolta na Prisão de Nancy, 1972
 
 
 
Um caso exemplar foi o da ofensiva contra o aparelho repressivo do estado protagonizada pelo GIP – Groupe d´Information sur les Prisons. Criado em fevereiro de 1971, por maoístas e intelectuais como Michel Foucault, o GIP procurou tornar conhecida a experiência das prisões, proporcionando aos detidos meios e oportunidades para se expressarem. Pretendia-se, assim, cumprir um dos mots d´ordre de 68: “La parole aux détenus!”
Aos prisioneiros, como aos outros oprimidos, tinha de ser devolvida a palavra, porque não lhes era permitido falar e também porque os partidos de esquerda não falavam por eles. Como  não se voltam para vós, prisioneiros, voltem-se contra os partidos de esquerda.
 
Sartre e Foucault
 
 
Foi divulgado em 8 de fevereiro de 1971 um manifesto redigido por Foucault. O filósofo publicou então um artigo intitulado “Brisons les barreaux du silence.” Depois, no final de 1972, quando alguns prisioneiros criaram o “Comité d´action des prisonniers”, o GIP dissolveu-se: agora que os detidos se tinham organizado, recuperavam a voz e os intelectuais já não precisavam de falar por eles.
 
Este tipo de acção correspondia a uma nova fase da intervenção dos intelectuais. Recusavam ver-se como uma avant-garde de privilegiados, iluminados pela razão universal, que indicavam o caminho aos sequazes. Cabia agora aos mais oprimidos exprimir a sua dor, revelar espontaneamente o intolerável, emocionar os cidadãos para concitar solidariedades e assim mudar o rumo. Simultaneamente, entravam em conflito com os partidos tradicionais da esquerda, a quem criticavam o seu autoritarismo, a sua confiança nas instituições repressivas do estado, a sua passividade.

 
É curioso como voltamos sempre ao dito marxiano da história que se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa. Ou será ao contrário?
 
José Luís Moura Jacinto
 
 

O clister e os querubins.

 
 
 
 
 

Já há algum tempo que o Malomil não falava de um dos seus temas favoritos: as estátuas russas. O monumento hoje apresentado foi inaugurado já após a queda do comunismo, mais precisamente em Junho de 2008. Trata-se de uma estátua em estilo realista, feita em bronze, que representa nada mais, nada menos do que um clister. Exactamente. Um clister amparado por três querubins que, segundo a escultora, Svetlana Avakina, se inspiraram nos anjos de Botticelli. A estátua custou, em 2008, qualquer coisa como 42 mil dólares e está colocada na cidade de Zheleznovodosk, junto às termas de Mashuk-Akva, nas montanhas do Cáucaso, uma região conhecida pelos seus tratamentos de problemas digestivos feitos com clisteres de águas termais.   
 


 


A inauguração da estátua, 2008

 
 
 
 
         A acompanhar a estátua, um dístico: «Vençamos as obstipações e as pieguices com clisteres», uma tradução literal e mal conseguida de uma fala da fita The Twelve Chairs que, ao contrário do que diz aqui a Associated Press, não é um filme soviético mas uma comédia de Mel Brooks, de 1970, que tem a Rússia dos sovietes como cenário. Balbúrdia no Leste, assim se chamou na tradução portuguesa.
         E, de facto, há balbúrdia a Leste. O Presidente Vladimir Putin não compareceu nas cerimónias evocativas do 70º aniversário da libertação de Auschwitz, o primeiro diplomata a avistar-se com o novo primeiro-ministro grego foi Andrei Maslov, o embaixador da Rússia em Atenas, que transmitiu a Alexis Tsipras as mais entusiásticas saudações de Putin. Logo a seguir, o novo governo grego, alinhando com a posição russa, veio distanciar-se da declaração dos chefes de governo da União Europeia que ameaçaram com novas sanções contra Moscovo caso se mantenha a violência na Ucrânia. Aliás, já em Maio de 2014 Tsipras apoiara os separatistas ucranianos. Sobre a Europa de oeste, que alguns designam por «união europeia», a Rússia acabou de abrir duas frentes, a da Ucrânia e a da Grécia.
         Em 2008, foi inaugurada uma estátua de mau-gosto numas termas do Cáucaso. Um clister amparado por três querubins. Talvez uma boa metáfora do que sucede na Europa: um bando de anjinhos crédulos na iminência do enema purgante.  

 
 

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Pedra lascada.

 
 
 


 
                Podemos ter a opinião que quisermos sobre a adopção de crianças por casais do mesmo sexo.
         Isso não é uma opinião, é uma alarvidade.
Ainda assim, houve quem a dissesse.
«Caprichos onanísticos» e «preconceitos heterofóbicos» – eis uma base muito elevada para começar uma discussão séria e serena sobre a adopção de crianças por casais do mesmo sexo.
Obrigado, dr. Marinho e Pinto. Mais um contributo-Neandertal para o debate de ideias em Portugal.



 

Night Will Fall.

 
 


Já escrevi aqui, no Público, sobre German Concentration Camps, de Alfred Hitchcock. Nunca os nossos olhos viram nada assim. Hoje à noite, na RTP-1, Night Will Fall, um filme sobre o filme. Imperdível.



Cada um na própria casa.

 
 









Gebopolítica internacional.







segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Relance da alma japonesa.


 
 
 






                «apesar da vossa arte e o vosso artesanato me fascinarem, a forma através da qual os apreendo mantém-se inevitavelmente exterior: não nasci nem fui criado entre estas obras-primas; e, em relação a estes objectos de uso técnico ou doméstico, foi apenas já tarde que me foi dado conhecer o seu lugar na cultura e observar o seu manuseamento.» –– assim começou, com desarmante humildade, Claude Lévi-Strauss uma conferência em Quioto, publicada no livro A Outra Face da Lua. Escritos sobre o Japão.

         Este livro, mais uns quantos que vamos lendo – de Ruth Benedict ou Ian Buruma – permitem-nos uma aproximação cautelosa à alma japonesa;  na certeza de que, na sua essência, ela sempre será para nós misteriosa e imperscrutável. É nesse jogo entre proximidade e distância que reside o seu fascínio. Há muito de ocidental na manga, mas no Ocidente nada de existe comparável aos burakumin, uma casta impura. Os japoneses suicidam-se, como qualquer povo do mundo, menos do que na Gronelândia, onde uma em cada cinco pessoas já tentou matar-se pelo menos uma vez ao longo da sua vida. Mas no Japão há um lugar predilecto para os suicídios, a floresta de Aokigahara, no sopé do Monte Fuji. Todos os anos, cerca de 100 corpos são lá encontrados, como se mostra neste filme terrível, terrível.











         Os japoneses são capazes de tudo, da crueldade extrema à beleza mais paciente e pura. No MUDE – Museu do Design e da Moda, em Lisboa, está patente uma exposição extraordinária. Ou, melhor, duas exposições. Uma, dedicada ao boro, que literalmente significa «farrapo». Tecidos remendados e cerzidos, sendo o conjunto posteriormente tingido com índigo – uma técnica usada até meados do século XX. A par dela, outra exposição, Puras Formas/Naked Shapes. Objectos vários, feitos em alumínio. Um desenho simples e delicado, o toque suavíssimo. Superfícies polidas, à espera de enegrecerem pela usura do tempo, como Junichiro Tanizaki disse ser uma das características da alma japonesa, nesse livro deslumbrante que é Elogio da Sombra. Nos objectos de uso doméstico – secadores de cabelo, brinquedos, aspiradores do pó, material de escritório – que encontramos no MUDE não se notam ainda vestígios do negrume dos dias. O que achamos é, quando muito, uma «luz cansada», uma «claridade ténue», para usar palavras de Tanizaki. O fabrico destes produtos remonta aos alvores do século XX, mas o uso do alumínio intensificou-se após a 2ª Guerra. Alumínio recuperado das carcaças de aviões, ao início, e convertido em utensílios de extrema subtileza, em total contenção formal. Os designers são anónimos e os objectos de alumínio, ao que parece, não foram concebidos como peças de «arte». Foram pacientemente reunidos pelo designer industrial Seiji Onishi e pelo artista e galerista Keiichi Sumi. Agora, estão em exibição na Rua Augusta, em Lisboa. Apresse-se, termina a 8 de Fevereiro. Não é uma exposição, é um privilégio. 
 
António Araújo
 
 
 

Os Caçadores de Cabeças do Amazonas, de F. W. Up de Graff.









Antes de chamuscarem e cozerem os macacos, os nossos índios tinham-nos esvaziado, porque só comem as tripas em ocasião de escassez. Porém, com grande surpresa nossa, recolheram cuidadosamente o conteúdo do estômago, misturaram-no com água e beberam aquele líquido pastoso, com evidente satisfação. (…) A primeira vez que provei aquela guloseima esperava encontrar-lhe um sabor amargo, devido aos sucos gástricos, mas fiquei agradavelmente surpreendido ao constatar que a polpa dos frutos conservara intacto o seu gosto natural.

domingo, 25 de janeiro de 2015

Death Metal Angola.

 
 

 
 
Death Metal Angola é um documentário que não vi – mas quero ver se vejo, logo que o possa ver. Pelo que tenho lido, um filme imperdível, creio que ainda não falado por cá – o que é, no mínimo, muito estranho. Death Metal Angola conta a história de Sónia Ferreira e Wilker Flores que dirigem um orfanato em Huambo, devastada pela guerra civil. Sónia e Wilker sonham organizar o primeiro festival de rock angolano, com certeza muito diferente disto.
 
 

11 de Setembro: as perdas artísticas.

 
 
World Trade Center. Tapeçaria de Miró
Fotografia de António Barreto, 1978




Na sequência do ontem que escrevi aqui sobre o 11 de Setembro, António Barreto, grande amigo grande, mandou-me uma mensagem que pediu para ser publicada, juntamente com uma fotografia que tirara a uma tapeçaria de Miró:



Meu Caro Malomil!

Caro AA!

Esta sua série sobre as Torres comoveu-me muito! Parabéns e obrigado. Já agora, se me permite, gostaria de contribuir. Depois do atentado, nunca vi publicada uma fotografia sobre esta formidável tapeçaria, enorme, que decorava o Hall de entrada de uma das Torres. Feita pelo Miró. Deve ter ardido em segundos. Dava uma inesperada e luminosa cor àquele universo tão de vidro, aço e alumínio... Um abraço

AB

PS: Talvez não pareça, nesta fotografia, mas tem vários metros de largura.

 
 
Escultura de Rodin, nos escombros do World Trade Center




Caro António,


Não sei como agradecer as suas generosas palavras.

Talvez dizendo também umas breves palavras sobre as perdas artísticas registadas no 11 de Setembro.

Segundo o 9/11 Report, a acção terrorista de 11 de Setembro terá custado, na totalidade das várias operações, incluindo as do Pentágono e da Pensilvânia, não mais do que 400 ou 500 mil dólares. Os prejuízos materiais nos edifícios e infra-estruturas, só em Nova Iorque, tiveram um valor aproximado de 10 mil milhões de dólares. Mas há dados reconfortantes: nas primeiras seis semanas após os atentados foram recolhidos 934 milhões de dólares em donativos, a maior receita de uma acção de auxílio financeiro da história dos Estados Unidos.

Do ponto de vista imaterial, além do incomensurável sofrimento das vítimas e dos seus familiares, deveremos assinalar as perdas de obras e peças artísticas que adornavam os escritórios das Torres Gémeas ou os espaços públicos em seu redor, tendo desaparecido trabalhos de Juan Miró, Roy Lichenstein, Alexander Calder e tantos outros; de Gustave Rodin desapareceram 300 peças, que integravam a colecção privada da Cantor Fitzgerald, a empresa que mais funcionários perdeu nesse dia. Perderam-se, por exemplo, 40.000 negativos de fotografias dos Kennedys, primeiras edições de obras raras, inúmeras preciosidades (ler aqui). Algumas seriam descobertas, mas desapareceriam misteriosamente, como aqui se conta.
 Estima-se que o valor das obras de arte destruídas no 11 de Setembro se situe nos 100 milhões de dólares, referindo-se este número tão-só às peças da propriedade de particulares.
 
Um abraço grato e amigo,
 
António Araújo