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quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

A atribulada história de "O Gafanhoto".

 
 
O Gafanhoto, nº 73
 
Na história dos comics em Portugal cabe à revista O Gafanhoto (1948-1949) algum protagonismo: ter sido a única publicação integralmente apreendida (ou quase)  e, por isso mesmo, alguns dos seus  números  transformaram-se  em raridades  para os coleccionadores .
Vamos por partes. António Cardoso Lopes, mais conhecido pelos leitores de O Mosquito e mesmo entre os amigos por Tiotónio ( nome com que assinava  as suas criações) foi  uma figura única na Banda Desenhada portuguesa. Estreou-se no ABCzinho  nos anos 20[1] mas foi em O Mosquito que com Raul Correia,  a partir de 1936 , formou uma dupla de sucesso. "Homem de grande engenho e iniciativa, bom desenhador humorístico e bom técnico de impressão em litografia e offset"[2] a  ele se deve grande parte do êxito  comercial  e de conteúdo dessa publicação  que ainda hoje é sinónimo de Banda Desenhada (ou histórias em quadradinhos)  em Portugal. A restante  parte do sucesso é devida  a  Raul Correia " um poeta extraordinário (...) homem fino, culto e que sabia escrever bem em português"[3]  que não terá  sido menos importante em todos os 17 anos de vida da revista.
Mas talvez quem melhor nos possa dar o retrato de Cardoso Lopes seja o desenhador e argumentista José Ruy que começou a trabalhar em O Mosquito com 17 anos, em 1947: "o Tiotónio transmitia um fluído que nos fazia sentir bem, termos confiança, eram os seus modos delicados e a determinação do seu olhar inteligente"[4].
Confiança foi certamente o que começou a escassear quer em Cardoso  Lopes quer em Raul Correia  quando,  após atingir  60.000 exemplares no somatório das  suas duas  edições semanais,  O Mosquito começou a perder leitores  no fim dos  anos 40, a que não terá sido alheia a emergência dos comics norte-americanos nas publicações concorrentes, algumas delas de importação brasileira. Fosse por essa razão, fosse por outras de natureza económico-financeira que não resultavam directamente da quebra das vendas, o certo é que a situação de O Mosquito tornou-se financeiramente insustentável. A tal ponto que a solução encontrada pelos dois "sócios" para sair do impasse financeiro em que na altura se encontravam foi a separação da sociedade, ficando Raul Correia com O Mosquito e Cardoso Lopes com a oficina e respectivas máquinas tipográficas, que se localizavam  aliás num imóvel que era sua propriedade. Se o futuro de O Mosquito não foi auspicioso, já que acabaria os seus dias alguns anos depois,  em 1953 , já o destino dos projectos de  Cardoso Lopes e do seu "parque gráfico", do mais avançado que à época existia, foi  ainda mais penoso. E, contudo, da mente imaginativa e empreendedora de Cardoso Lopes soluções não faltaram: fechou um acordo com a Mocidade Portuguesa por forma a que as suas edições e designadamente a revista Camarada passassem a ser impressas nas agora "Edições O Mosquito" e avançou para O Gafanhoto. Anunciava ser " o jornal mais pequeno do mundo", com o formato de "O Mosquito dobrado ao meio, oito páginas  a três cores  e  custava 50 centavos. Publicou  "boas histórias de Cuto e algumas pranchas de Anita Pequenita (ambas de Jesus Blasco) uma história de Afonsky, algumas historietas inglesas e francesas e a excelente Cora (Connie) de Frank Godwin" [5]. Durante mais de nove meses a revistinha circulou pelo país imprimindo 10.000 exemplares por cada número. O nº 1 tem a data de  11 de Dezembro de 1948 .  
 
O Gafanhoto, nº 73, pp. 6-7

 
 
 
Mas a dada altura tudo mudou.
E ainda que os fautores desta mudança tenham sido a Direcção dos Serviços de Censura e a PIDE, a verdade é que não há a menor coloração política nos episódios que se sucederam e que passamos a relatar.
Para que se perceba o contexto em que tudo ocorreu importa dizer que boa parte do regime jurídico da imprensa, à época, designadamente o que tinha que ver com os requisitos para o lançamento de novas publicações era essencialmente regulado pelo Decreto Lei nº 26 589 de 14 de Maio de 1936. O referido diploma  assentava na ideia do controlo preventivo quanto à " fundação de jornais" através de uma   autorização político-administrativa para as novas iniciativas editoriais. O regime aplicava-se a todo o tipo de publicações periódicas, independentemente da natureza e da periodicidade concreta. Ou seja,  quer os  jornais diários de informação geral  quer os  semanários ilustrados  para crianças e jovens, estavam sujeitos às mesmas regras. A primeira das orientações legais  era avaliar da "idoneidade intelectual e moral dos responsáveis das publicações". Todo o processo decorria junto da Direcção dos Serviços de Censura. A tramitação obrigava à junção por parte dos candidatos  a directores e editores de vária documentação: certidão nascimento, certidão de registo criminal, atestado de residência, habilitações académicas, etc.
Mas a segunda exigência tinha que ver com a "prova suficiente dos meios financeiros da respectiva empresa" (art. 2º). Ou seja, entendia-se na letra da lei, que tal prova não estaria feita se a "empresa por meio de depósito, fiança ou aval bancário não preste a garantia suficiente  dos salários e ordenados  ou correspondentes despesas de  colaboração, composição, revisão e impressão durante o prazo de seis meses" .
A natureza da norma era clara e  cumpria um propósito de regulação do mercado  das empresas gráficas e jornalísticas, acautelando ao mesmo tempo um mínimo de  confiança nas relações  laborais dessas mesmas empresas. No preâmbulo do diploma dizia-se: "a defesa dos interesses dos trabalhadores ocupados em determinadas publicações leva a exigir garantias suficientes  da estabilidade da respectiva empresa" . A isso não era alheia a filosofia económica e política corporativista, de forte pendor estatal, que presidia à realidade salazarista dos anos 40. Ou seja, se alguém tomasse a iniciativa de publicar um jornal, contratando jornalistas e colaboradores e ajustando, em primeiro lugar com uma gráfica a impressão e depois com um distribuidor a venda, garantindo  antes um bom contrato de publicidade  e,  mal  recebidos os primeiros resultados das vendas,  desaparecesse  sem pagar nada a ninguém – e essa era  a concreta realidade que deu origem à  norma em causa –  a caução sempre atenuaria o prejuízo dos que contratassem  ou colaborassem  de boa fé com o jornal. Talvez por essa razão se não escutassem vozes críticas entre os profissionais e empresários do jornalismo da época à solução legal. Já o mesmo não se pode dizer da utilização da aludida "caução" para fins diferentes dos previstos na lei... 
É claro que neste processo de autorização prévia, o Estado  Novo verificava ainda da  idoneidade política – interpretando de forma lata a  expressão "idoneidade moral" −  dos propulsores do projecto, designadamente do Director indicado, tomando a Direcção Geral dos Serviços de Censura a iniciativa de requerer informações junto da PIDE e da União Nacional (em regra, junto das suas delegações concelhias). E consoante essa informação, que tanto podia concluir  que  "nada consta em desabono" como "não oferece garantias de cooperar nos superiores fins do Estado " , assim a decisão final oscilava ...
Ora, Cardoso Lopes, após 20 anos de experiências de jornais e revistas e de relacionamento com a Censura, não encontrou a menor dificuldade em ver o seu projecto aprovado. Mais mesmo, recebeu a permissão para publicar O Gafanhoto em tempo recorde: pouco mais de 48 horas !  Requereu a publicação a 6 de Dezembro de 1948 e a 9 de Dezembro o Sub-Director da Censura Capitão José da Silva Dias  deferiu a solicitação " desejando-lhe as maiores prosperidades". E dois dias depois O Gafanhoto estava nas bancas... Contudo, cerca de 9 meses depois, no fim de Setembro de 1949, caminhava o jornalinho em velocidade de cruzeiro,  e o Director da Censura solicita à PIDE "se digne proceder à apreensão do semanário infantil O Gafanhoto" "por se estar publicando à margem da Censura".
José Ruy, que trabalhava na altura nas oficinas de O  Mosquito, como se disse, não esquece o que então se passou :
" A PIDE mandou apreender o Gafanhoto em todos os pontos de venda. Essas apreensões eram normalmente feitas em livros considerados de carácter subversivo  ou de ofensas à moral e as carrinhas negras eram conhecidas pois também faziam por vezes a recolha de pessoas da oposição política ao regime . Chamavam-lhe a " ramona".  E foi mesmo a "ramona" que  de quiosque em quiosque de livraria a banca de jornais andou a  recolher tudo o que fosse Gafanhoto de Tiotónio.  Na redacção e nas oficinas das Edições de O Mosquito  tivemos dias um polícia à porta  a revistar-nos quando saíamos  para ver se levávamos algum exemplar escondido. Nas livrarias e quiosques o espanto era enorme interrogando-se os vendedores  onde estava o tal o assunto do "contra" naquela revistinha de aspecto tão  inocente que motivara a apreensão"[6].
 
 
 
 
O Gafanhoto, nº 74
 
 
O que se terá passado para tão extraordinário desenlace? O que levou a que uma revista autorizada pela Censura, com inédita celeridade, passasse a estar sob a sua mira persecutória? 
Tudo girou em torno da famigerada caução. A verdade é que a mesma não foi exigida pela Direcção dos Serviços de Censura aquando da solicitação inicial de Cardoso Lopes. Este, no seu requerimento inicial  datado de 6 de Dezembro de 1948, solicita que se substitua o depósito de garantia ou o aval bancário por um termo de responsabilidade da firma "cujo passado de catorze anos de constante actividade, responde por  qualquer prejuízos ou reclamações  que possam vir a ser apresentadas". E acrescenta que O Gafanhoto se trata de uma publicação que "será composta e impressa em oficinas próprias utilizando material e gravuras de "O Mosquito" já pago e não tendo esta organização editorial em catorze anos de existência dado origem a qualquer reclamação junto de V. Exa pelo que pode ser avaliada a sua idoneidade moral e financeira"[7]. Em anexo Cardoso Lopes junta a citada "declaração de responsabilidade" na qual se lê que as "Edições O Mosquito Lda " vêm tomar perante V. Exa. inteira responsabilidade por qualquer reclamação ou encargo resultante da edição do jornal infantil "O Gafanhoto" de que são proprietários e cuja periodicidade é semanal". A declaração tem as assinaturas de Cardoso Lopes e Raul Correia reconhecidas na qualidade de gerentes das "Edições O Mosquito"[8].
A Censura não teria razões para pôr em causa as justificações  de Cardoso Lopes. Na verdade é que durante quase década e meia O Mosquito não deu trabalho aos censores e os seus responsáveis eram tidos na conta de empresários cumpridores. A rapidez da decisão favorável à saída de O Gafanhoto permite esta ilação. E se bem que a lei não admitisse a solução adoptada – substituição do depósito, fiança ou aval por uma simples declaração – a verdade é que a Censura não terá pretendido inviabilizar o novo jornal de Cardoso Lopes. É mesmo legítimo supor que não viu com desagrado, nesta fase, a nova aposta editorial, fosse por consideração para com Cardoso Lopes fosse porque não questionou  a sua "idoneidade financeira".
Um aspecto porém revelou-se decisivo para o volte face: o negócio com a Mocidade Portuguesa. Ao contrário do que Cardoso Lopes havia escrito no seu requerimento,  O Gafanhoto não era composto e impresso em  oficina própria. Como vimos antes, a solução que Cardoso Lopes encontrou para resolver algumas das suas dificuldades económicas foi alugar as oficinas gráficas das "Edições O Mosquito" à Mocidade Portuguesa. E mais: nesse contrato de arrendamento a Mocidade Portuguesa comprometeu-se a compor e imprimir O Gafanhoto pelo custo de 800$00 por 10.000 exemplares de cada número. Em rigor pois  O Gafanhoto era composto e impresso em oficinas arrendadas à Mocidade Portuguesa .
Mas, independentemente do contrato com a Mocidade Portuguesa,  Cardoso Lopes estava com evidentes problemas económico-financeiros. E a Censura não podia deixar de o saber. Cardoso Lopes era também dono da revista de espectáculos Olá. E em princípios de  Agosto de 1949 o Banco Espírito Santo solicitou o cancelamento do aval bancário de 16.000$00 a favor das Edições O Mosquito para garantia de despesas com o jornal Olá. A Censura terá tentado junto de Cardoso Lopes resolver esta situação.  E na ausência de uma solução o  jornal acabou por ser "abatido por falta de garantia financeira" .
Quando o Director dos Serviços de Censura, através da carta datada de 24 de Agosto de 1949, comunica a Cardoso Lopes que tem de fazer prova da idoneidade financeira , já que a famigerada declaração "de responsabilidade" dos dois gerentes é ilegal e que para isso deverá "apresentar previamente o contrato com a tipografia onde o jornal se imprime e a relação do pessoal remunerado por serviços prestados a esse jornal, para efeitos de se fixar a importância da caução a prestar"[9] é de admitir que sabia já  da existência do contrato com a Mocidade Portuguesa .
Aliás, a Mocidade Portuguesa encarrega-se algum tempo depois de juntar ao processo uma declaração a confirmar isso mesmo[10]. E acrescia ainda outro pormenor a que a Censura se agarrou: se Raul Correia estava afastado da sociedade como poderia aparecer ele como comproprietário do jornalinho e para mais assinar na qualidade de sócio gerente das "Edições de O Mosquito"?  Um mistério.  
É provável que Cardoso Lopes, nas várias visitas que fez aos serviços centrais da Censura, tentasse encontrar uma solução para obviar ao desenlace que veio efectivamente a ocorrer. E isso explicará  a demora em cerca de um mês entre o convite à apresentação de caução e a ordem concreta de apreensão dos jornais[11].
Por essa altura uma outra irregularidade havia já sido detectada pela Censura. Cardoso Lopes  havia pedido autorização para  publicar O Gafanhoto semanalmente. Mas a realidade é que o jornalinho, com excepção dos primeiras 10 edições em que foi semanário, passou a vender-se  todas as quartas e sábados. A 7 de Outubro de 1949 ainda Cardoso Lopes tenta corrigir o lapso requerendo que a publicação "passe a bi-semanário". Mas já era tarde.
Entre 4 de Outubro de 1949 e 4 de Novembro do mesmo ano,  os agentes da PIDE e  os agentes da Polícia de Segurança Pública, a quem aquela delegava a tarefa sobretudo nas capitais de província,  varreram livrarias, quiosques e bancas dos jornais do país numa metódica tarefa de apreensão de "Gafanhotos". Eram tantos que não sabiam onde os arrumar. Às tantas, a PIDE pergunta à Direcção dos Serviços de Censura onde deve depositar os 1028 exemplares apreendidos na cidade do Porto, por exemplo[12].
Na verdade as apreensões nas cidades de província não foram muito expressivas. No total uns poucos milhares  de exemplares foram apreendidos entre a  Havaneza de Aveiro e a  Livraria Central de Viseu, a título de exemplo, e que corresponderiam às sobras de cada uma das edições.[13] Em certo sentido, esses números permitem validar a ideia de que O Gafanhoto se vendia bem. A parte significativa da apreensão, levada a cabo directamente pela PIDE,  foi na sede das "Edições de O Mosquito" na Travessa de São Pedro em Lisboa : dois mil exemplares de cada um dos números 1 a 72 no total de 144.000 exemplares[14]. 
 
 
 
O Gafanhoto, nº 74, pp. 6-7
 
E é aqui que surge uma outra originalidade associada a O  Gafanhoto e que faz as delícias  de alguns  coleccionadores de BD.
A palavra mais uma vez a José Ruy :
"O Gafanhoto era impresso em folha inteira da máquina que incluía dois números e quando da apreensão estavam já impresso os números 73 e 74. Como os assinantes  recebiam pelo correio e com antecedência, um privilégio que o Tiotónio gostava de oferecer aos seus leitores, estes receberam em casa exemplares que entretanto estavam a ser recolhidos pela censura. Eu ainda consegui passar com esses dois números escondidos  não me arriscando a trazer mais não fosse ficar a pão e água por tal crime".
São pois os famosos nºs 73 e 74 de O Gafanhoto que hoje constituem uma verdadeira relíquia bibliófila ! 
António Cardoso Lopes não desistiu do seu Gafanhoto. A 20 de Dezembro de 1949 vem amarguradamente queixar-se do aparato da apreensão: "(...) atitude que eu supunha apenas ser tomada para publicações de carácter clandestino ou aquelas cujo conteúdo merecesse a reprovação por parte desses serviços o que não é absolutamente o caso"  .
E justifica-se: " Seria muito difícil que qualquer indústria montada pudesse de um momento para o outro e para provar a sua idoneidade financeira  distrair do seu capital  de "roulement" o correspondente a seis meses de laboração". E constatando que necessita de O Gafanhoto  para manter a oficina sob pena de " despedir grande parte do pessoal"  propõe: "suponho que sem prejuízo do cumprimento da lei V. Exa poderá consentir na prestação da garantia que nos é exigida em pagamentos mensais durante o ano e a partir de 31 de Janeiro próximo "[15].
Contudo parece que Cardoso Lopes havia caído definitivamente em desgraça junto dos Serviços de Censura. Desta feita a proposta é lhe indeferida com base num argumento que não tem que ver com a questão da "idoneidade financeira" mas com algo inteiramente novo. Diz o despacho: "indeferido tanto mais que não é de interesse publicações infantis com a orientação que de um modo geral lhes têm sido dada"[16].  
Imaginar-se-á o espanto de Cardoso Lopes ao ler este despacho. Ele que durante 20 anos de publicações infantis jamais ouvira um reparo da Censura ou de qualquer  adepto do regime  sobre os conteúdos das suas publicações ...
Eis porque numa última tentativa para ressuscitar O Gafanhoto vem juntar a 27 de Fevereiro de 1950,  um termo de fiança prestado por ele próprio no valor de 29.000$00   "cobrindo eventuais reclamações ou encargos a que possa dar origem o bi-semanário O Gafanhoto". Essa fiança faz-se acompanhar de uma extensa carta onde vem defender-se da insinuação, ainda que indirecta,  de que as suas orientações em sede de literatura infantil não seriam, aos olhos do regime,  adequadas. Reflecte ainda sobre o panorama da imprensa infantil em Portugal e no mundo introduzindo o tema dos comics norte-americanos . E conclui solicitando o fim da suspensão do jornal e a venda dos números apreendidos.
Por essa razão e porque é um dos raros textos que se lhe conhece onde essa temática é aflorada, vale a pena reproduzir alguns extractos:
"Há mais de 20 anos que o signatário tem dedicado especial cuidado aos assuntos que se relacionam com a literatura infantil (jornais e livros). A criação das Edições O Mosquito e o jornal infantil  que lhe deu nome são obra sua.  Embora sem directrizes definidas superiormente, sempre encarou esse género de actividade como extremamente delicado, sobretudo pelos inconvenientes  que uma má orientação podem trazer ao público a que se destina. Também não lhe passou despercebida como não podia deixar de ser  a evolução constante  das preferências desse público. Não se pode sob pena de fracasso  cotejar a mentalidade das crianças de hoje até mesmo com as da geração passada. A dificuldade da selecção de assuntos – para o caso dos jornais –  reside sobretudo na publicação entre nós  sem mais análise de material condenável  feito para um púbico cuja mentalidade é absolutamente diferente da nossa ou onde os editores sem escrúpulos  em plena liberdade procuram apenas um êxito fácil  com a publicação de histórias onde se busca por todos os meios prender o público, sem curar da forma como esse objectivo é conseguido. Onde este caso se verifica é com o material de origem norte-americana que os brasileiros copiam servilmente. E são às centenas os jornais brasileiros que invadem o nosso mercado escritos num português absurdo inteiramente constituídos por esse material. Melhor do que nós poderão V.Exas  a perniciosa influencia desse género de literatura que de infantil apenas tem o título. De uma maneira geral tem o signatário dado preferência nas suas edições aos assuntos de origem latina (espanhóis, italianos e franceses)  por serem os que melhor correspondem á índole do nosso público . Já em vários países tem sido levantada uma intensa campanha contra determinados géneros de histórias. Recentemente em França foi proibida a publicação de certos jornais de características vincadamente políticas. Por outro lado também se procurou evitar  a invasão de material americano  original ou traduzido. Para contrapor a essa influência são dadas todas as facilidades oficiais ás publicações nacionais criando por concorrência um autentico dique a essa influência. Isto se verifica  não só no campo jornalístico como no cinematográfico e em todos aqueles que têm contacto com o público"[17] .
Este texto não deixa de ser surpreendente. Revela uma particular sensibilidade de Cardoso Lopes para as mudanças que no mundo estavam a ocorrer quer quanto à literatura infanto-juvenil quer quanto à mentalidade dos jovens.
E a verdade é que por esta ocasião o panorama da literatura infanto-juvenil em Portugal estava a mudar de forma acelerada e nele, de forma ainda mais  impressiva, a atitude do Estado Novo perante essa realidade. Alguns meses depois destes eventos, em fins de 1950,   haveriam de ser publicadas as "Instruções sobre  Literatura Infantil" e criada a primeira Comissão que verdadeiramente introduziu no regime salazarista  uma censura especializada: a Comissão Especial para a Literatura Infantil e Juvenil.
 Não admira pois o despacho de Armando Larcher sobre esta última tentativa de Tiotónio: " Deverá aguardar a publicação do diploma relativo aos jornais infantis e deve esclarecer-se os motivos determinantes da apreensão do Gafanhoto".
Ponto final na aventura de Cardoso Lopes com o seu Gafanhoto? Ainda não. A 8 de Julho de 1950 no Cartório Notarial da Rua do Crucifixo nº 50 em Lisboa o Notário Manuel Facco Viana lavra uma escritura celebrada entre António Cardoso Lopes Filho, como sócio gerente e representante da Sociedade Edições O Mosquito Lda, e João Mendes,  nos termos da qual,  pelo valor de 100$00 ,aquela cede ao segundo a propriedade do título do jornal infantil O Gafanhoto.[18]
O novo proprietário do jornalinho tentou obter autorização para a sua publicação. Mas não teve melhor sorte. Se antes se deveria aguardar pela publicação do diploma sobre literatura infantil agora haveria que esperar pela nomeação da Comissão a que esse diploma aludia ...[19]
 
 
 
 
No início de 1951 a recém formada Comissão Especial para  Literatura Infantil e Juvenil , presidida por João Serras e Silva, é  chamada a pronunciar -se a convite do  Director dos Serviços de Censura sobre o destino de " O Gafanhoto".  Encarregar-se-á de responder o Vice-Presidente da Comissão, Edmundo Curvelo, já então assistente da Faculdade de Letras, doutorado em Filosofia e um académico muito conceituado  entre os seus pares (e hoje considerado um dos maiores filósofos portugueses de sempre): "em face da documentação junto a Comissão nada tem a opor à autorização pedida para o prosseguimento da publicação do jornal O Gafanhoto desde que se submeta às disposições em vigor sobre publicações do género, o que não se verifica de modo algum com o exemplar junto"[20]
E assim terminava a história de O Gafanhoto.
Pouco depois, ou porque tentou procurar um futuro profissional e económico mais desafogado ou porque se desiludiu com o seu País (e em particular com os constrangimentos à sua actividade por parte do regime político  salazarista)  António  Cardoso  Lopes  partiu para o Brasil para não mais regressar[21] .
 
 
Ricardo Leite Pinto
 
 


[1] Vide Leonardo de Sá " Presença Portuguesa n´O Mosquito" O Mosquito uma máquina de fazer histórias, Catálogo da Exposição, Centro Nacional de Banda Desenhada e de Imagem, Amadora, 2006, p. 21 e Leonardo de Sá e António Dias de Deus " Cardoso Lopes, António" Dicionário dos Autores de Banda Desenhada e Cartoon Em Portugal. Edições Época de Ouro, Amadora , 1999, p. 33
[2] Vide Raul Correia, " Sobem do fundo da memória, lentos...de como nasceu e viveu " O Mosquito", Manuel Caldas Apresenta O Mosquito de como nasceu e viveu, Porto Edições Emecê, 1993. p. 31
[3] Vide José Ruy " Tiotónio, Meu Amigo" . História da BD publicada em Portugal ( Sousa Santos, org. ), 1ª parte,  , Lisboa, Época de Oiro, 1995, p. 47
[4] Vide José Ruy, " Tiotónio, Meu Amigo" . cit.  p. 46
[5] Vide António Dias de Deus " A roda da fortuna Tiotónio" . História da Bd publicada em Portugal, 2ª parte, ( Sousa Santos, consultor editorial) , Edições Época de Oiro, Costa da Caparica, 1996, p. 5
[6] Entrevista com José Ruy ( 8/6/2015)
[7] Vide Requerimento dirigido ao Director dos Serviços de Censura , 6/12/1948 ANTT. Arquivo do Secretariado de Informação/ Censura. Cx. 700 . Proc. nº 665 
[8] Vide Declaração, 9/12/1948. ANTT. Arquivo do Secretariado de Informação/ Censura. Cx. 700 . Proc. nº 665 
[9] Vide Ofício da Direcção dos Serviços de Censura a Edições de " O Mosquito Lda" , Proprietário do Jornal " O Gafanhoto"  de 24/ 8/1949 . ANTT. Arquivo do Secretariado de Informação/ Censura. Cx. 700 . Proc. nº 665 
[10] Vide Declaração da Organização Nacional da Mocidade Portuguesa, assinada pelo Secretário Inspector Mário Brancamp Sobral datada de 7/19/1949
[11] Vide carta do Director dos Serviços de Censura ao Director da Polícia Internacional de Defesa do Estado ( PIDE) , 27/9/1949. ANTT. Arquivo do Secretariado de Informação/ Censura. Cx. 700 . Proc. nº 665 
[12] Vide Ofício da PIDE ao Director dos Serviços de Censura de 26/10/1949 ANTT. Arquivo do Secretariado de Informação/ Censura. Cx. 700 . Proc. nº 665 
[13] Vide a troca de correspondência entre a Direcção dos Serviços de Censura e a PIDE reportando os exemplares apreendidos em todo o país . ANTT. Arquivo do Secretariado de Informação/ Censura. Cx. 700 . Proc. nº 665.
[14]Vide ofício da PIDE ao Director dos Serviços de Censura de 8/19/1949  ANTT. Arquivo do Secretariado de Informação/ Censura. Cx. 700 . Proc. nº 665 
[15] Vide Carta de Cardoso Lopes ao Director dos Serviços da Censura de 20/12/1949 .  ANTT. Arquivo do Secretariado de Informação/ Censura. Cx. 700 . Proc. nº 665 
[16] Vide despacho manuscrito do Director dos Serviços de Censura , sem data,  aposto na carta de António Cardoso Lopes referida na nota anterior.  ANTT. Arquivo do Secretariado de Informação/ Censura. Cx. 700 . Proc. nº 665 
[17] Vide carta de António Cardoso Lopes ao Director dos Serviços de Censura de 27/2/1950. ANTT. Arquivo do Secretariado de Informação/ Censura. Cx. 700 . Proc. nº 665 
[18] Vide Escritura Notarial celebrada no Cartório Notarial da Rua do Crucifixo, 50, a 8/7/1950 . ANTT. Arquivo do Secretariado da Informação/ Censura. Cx. 700. Proc. nº 664
[19] Vide Despacho do Director dos Serviços de Censura no ofício que lhe é dirigido por João Mendes, 12/10/1950 ANTT. Arquivo do Secretariado da Informação/ Censura. Cx. 700. Proc. nº 664
[20] Vide Ofício da Direccção dos Serviços de Censura dirigida ao presidente da Comissão Especial para a Literatura Infantil e Juvenil de 17/1/1951 e despacho manuscrito assinado por Edmundo Curvelo do mesmo dia. ANTT. Arquivo do Secretariado da Informação/ Censura. Cx. 700. Proc. nº 664
[21] Ver para uma biografia actualizada e em particular sobre o destino “brasileiro” de Cardoso Lopes, Leonardo de Sá, Tiotónio: Uma Vida aos Quadradinhos, Lisboa, Bonecos Rebeldes, 2008. 


domingo, 18 de janeiro de 2015

O Picapau: "Uma Revista Humorística a Sério".


 
 

 
Os acontecimentos recentes com o Charlie Hebdo, num registo completamente distinto do que vem mobilizando os cidadãos, interpelam-nos sobre a ausência de uma simples folha humorística em Portugal . Há, é certo, as 4 páginas do “ Inimigo Público” no Público à sexta-feira, mas revistas ou jornais humorísticos ou satíricos com componente “cartoonística” e de ilustração desapareceram. E contudo Portugal teve ao longo dos sécs. XIX e XX muitos e bons jornais humorísticos. Bastará lembrar “A Paródia” , "A Choldra”, " O Berro", "O António Maria" onde Rafael Bordallo Pinheiro ou Leal da Câmara , entre muitos, pontificaram . Mas mesmo durante a ditadura salazarista multiplicaram-se tais jornais, pese a presença constante da Censura.
Este aspecto não deixa de surpreender. Como se o humor tivesse um especial estatuto ou pretendesse ser uma válvula de escape no contexto nada divertido do Estado Novo.
Nos anos 50 e 60, títulos como “ Os Ridículos” e o “Sempre Fixe” que já vinham da Primeira República , “ A Bomba”, “ Riso Mundial” ,” Bomba H”, “ Cara Alegre” , “Parada da Paródia” ou esse super-censurado “O Mundo Ri” onde José Vilhena marcou presença em muitas das suas capas (e no conteúdo) são exemplos da proliferação do sarcasmo impresso e da ilustração cómica.
"Os Ridículos " e o "Sempre Fixe", herdaram dos seus congéneres do séc. XIX e princípio do séc. XX, um determinado modelo de intervenção satírica na vida política e social, se bem que muito condicionado pela Censura, onde o texto prevalecia sobre a ilustração e o humor se adequava ao paradigma burlesco e "revisteiro" dos anos 20 e 30. A ruptura com esse tipo de humor haverá de encontrar-se em " A Bomba" e mais tarde na " Parada da Paródia" e no grupo de humoristas que se arrumam em torno dos "Parodiantes de Lisboa". Ora, uma das publicações que nesse particular se mostrou mais original, pese a sua vida breve, foi “O Picapau”. Saíram apenas sete números entre 24 de Novembro de 1955 e 5 de Janeiro de 1956 . De acordo com o depoimento do seu Director, António Gomes de Almeida, que haveria mais tarde de estar ligado aos “Parodiantes de Lisboa” , dirigindo a “ Parada da Paródia” (1960-1962) e a muitos outros projectos de humor, a efémera revista, subintitulada " Uma revista humorística a sério", concentrou um sem números de particularidades. Quer o modo como nasceu, quer alguns dos avatares censórios da sua curta vida, que , sobretudo, a forma originalíssima como morreu, merecem referência.
Vale a pena recordar alguns desses episódios.
A palavra pois a António Gomes de Almeida, que melhor que ninguém , nos apresenta Stuart Carvalhais, Matos Maia, Carlos Pinhão, João Martins e com eles o mundo do jornalismo e das publicações humorísticas nos anos 50: Vide:
 
 
         "Foi ainda o Stuart Carvalhais quem me desafiou para uma aventura que  começaria com alguma dificuldade, duraria um ano mais sete semanas – e terminaria razoavelmente mal.
Foi assim:
Como já contei, o Stuart tinha aquilo que se poderia chamar um relacionamento privilegiado com o "Diário de Notícias", a nível da sua Direcção e, igualmente, da Administração. Esta controlava, não só aquele importante jornal diário, como, também, a ENP - Empresa Nacional de Publicidade, que era a proprietária do "DN" e, ainda, do "Anuário Comercial", do "Mundo Desportivo", da revista de cinema "Estúdio", do juvenil "Diabrete", depois substituído pelo "Cavaleiro Andante", etc.
Um dia, o Stuart diz-me: "E se a gente fosse ao Diário de Notícias, apresentar uma proposta para fazermos uma revista humorística?"
O meu primeiro pensamento, confesso, foi este: "Olha, está com os copos!" É que, para mim, nesse tempo, o "Diário de Notícias" era uma instituição tão grande, tão gigantesca, tão inacessível, que me parecia perfeitamente impensável entrar um dia por aquela misteriosa porta rotativa, subir aquelas escadarias, chegar ao piso da Administração e dizer: "Aqui está uma maquete e um plano de trabalho para um semanário de humor". Pois bem, foi isso mesmo que aconteceu, semanas depois daquela primeira conversa. O Stuart dizia-me então: "Tu és organizadinho, sabes fazer estas coisas, escreves bem, podes arranjar aí uma proposta toda bonita! Eu, cá pela minha banda, trato de arranjar os contactos e de mexer os cordelinhos para eles aceitarem a ideia. E tenho a certeza de que aceitam mesmo!".
Eu não estava assim tão confiante. A experiência anterior, de algumas "tampas" que apanhara, ao apresentar propostas semelhantes, a alguns editores, não me dava grandes esperanças. Mas o Stuart acreditava que aquilo ia pegar, pela certa. Fizemos, pois, uma maquete, toda muito bem apresentada, para uma revista humorística semanal, a cores, que se chamaria "Picapau". Estudámos o plano geral, o formato, a paginação, a colunagem, as secções, a lista dos colaboradores, os custos, enfim, tudo. E, um dia, lá passámos, os dois, a tal porta rotativa do "Notícias", subimos a escada e, de repente, estávamos no gabinete da Administração - eu um bocadito nervoso, o Stuart muito descontraído, como sempre, a contar piadas aos dois Administradores que nos tinham recebido.
Lembro-me perfeitamente das caras deles: o Dr. José Gonçalves, pequenino, escuro, seco, trombudo, e o Dr. João Dinis, grande, amável, risonho e simpático. O Stuart encarregou-me da parte técnica da conversa: a ideia geral, o estilo da revista, a forma como nos propúnhamos trabalhar, a equipa de colaboradores, etc. E, quando eu estava à espera de uma nega fria e seca, eis que o Dr. José Gonçalves, depois de folhear a maquete e a papelada, nos diz: "Sim senhor, isto tem pernas para andar. Assim que chegar a máquina de impressão nova de que estamos à espera, vamos avançar”.
Cá fora, na Avenida da Liberdade, ria-se o Stuart, todo contente: "Eu não te dizia? Vamos fazer uma revista humorística como nunca houve nenhuma, desde o tempo do Rafael Bordalo Pinheiro! Anda, vamos ali beber qualquer coisa, para comemorar!"
Na verdade, o primeiro número só sairia dali a mais de um ano. É que a máquina – a tal nova máquina de impressão a cores, coisa fina, adquirida na Alemanha, e que estava destinada a imprimir, além do "Picapau", também o "Cavaleiro Andante" e outras publicações –  não havia meio de chegar a Portugal e ao Bairro Alto, onde eram então as oficinas do Anuário Comercial, na Travessa do Poço da Cidade, e onde nos concederam um espaço, lá no último piso, para a nossa redacção. Quando a máquina, finalmente, chegou... não cabia pela porta! Foi preciso deitar abaixo uma parte da parede, para ela entrar e ser instalada. E, depois disto tudo, não imprimia bem, tinha uma misteriosa avaria, que fazia com que só imprimisse uma parte do papel, deixando metade da folha em branco. Coisa estranha! Veio um técnico, de propósito, da Alemanha. Caríssimo! Fomos assistir à "desempanagem" da máquina. O técnico vestiu uma bata branca (a rapaziada lusitana da oficina andava toda, nesse tempo, de fato-macaco), meteu a mãozinha lá por detrás de um painel, apertou um parafuso... e a máquina começou a trabalhar impecavelmente!
O Dr. José Gonçalves, que tinha fama de forreta (fama que eu comprovaria depois; já vos conto essa parte da história) ficou danado com aquilo: tinha gasto um dinheirão para mandar vir, da Alemanha, um técnico especializadíssimo, que, afinal, só viera a Portugal – apertar um parafuso!
Daí a dias, começava a imprimir-se o "Picapau".
Daí a dias, começavam as tricas entre nós, os do "Picapau", e a Administração.
Foi assim:
Como contei atrás, tinha elaborado um plano, muito minucioso, sobre a forma de produzir a revista.
Eu seria o Director; o Stuart Carvalhais era o Director Artístico; e o Matos Maia figurava na ficha como Chefe de Redacção - e, também, como Proprietário. Porquê?
Porque a Administração, apesar de tudo, tinha algum receio de que a revista não saísse com a qualidade necessária para poder figurar, perante o público e a concorrência, como pertencendo à ENP. Então, à cautela, a papelada oficial foi organizada de forma que a propriedade figurasse como sendo do Matos Maia - embora, depois, o advogado da ENP preparasse um documento, através do qual este passaria todos os seus direitos para a verdadeira dona da revista.
Do mesmo plano constava, igualmente, a lista dos colaboradores (os escreventes e os desenhistas), ficando bem expresso que a responsabilidade da sua escolha seria sempre minha. Quanto aos pagamentos, eu receberia uma quantia certa por número, da qual pagaria aos colaboradores, como entendesse. Fora tudo aprovado. Só que...
Aqui entra a história do Carlos Pinhão.
Este fora jornalista do "Mundo Desportivo", que pertencia à Empresa. Um dia, foi destacado para ir cobrir, já não sei em que país da Europa, um campeonato qualquer, também não sei de que modalidade, nem interessa. O Carlos Pinhão foi, de comboio, hospedou-se num hotel baratinho e, quando o tal campeonato terminou, comunicou, por telefone, para a redacção do "Mundo Desportivo", a respectiva classificação dos participantes, do primeiro até ao sexto, para sair na edição do dia seguinte.
É de sublinhar que, nesse tempo, estas coisas eram complicadas. As tecnologias eram um bocadito primitivas. Telefonar do estrangeiro era considerado quase um luxo. E os jornais desportivos não tinham as receitas que têm hoje.
Quando o Pinhão regressou a Lisboa, foi chamado ao gabinete do Dr. José Gonçalves, que, furibundo e ameaçador, lhe pregou uma valente descompostura. Que parecia impossível, que ele andara a desbaratar o dinheiro do jornal, que fora enviado ao estrangeiro, custara um dinheirão em comboios, hotéis, comes e bebes, mais a linha telefónica – e, depois desta despesona enorme, apenas comunicara os resultados... até ao sexto classificado! Um escândalo!
Com aquele arzinho meio tímido que sempre teve, o Carlos Pinhão observou, baixinho: "Ó senhor doutor, desculpe, mas eu não podia indicar mais do que os seis primeiros... porque eram apenas seis a concorrer..."
O outro ficou embatucado, mandou-o sair – e, lá no fundo, ficou-lhe com um pó que nunca mais o pôde ver! Ainda por cima, algum tempo depois, ele ia-se embora para a concorrência: transferiu-se para "A Bola"!
Ora bem, o Carlos Pinhão foi convidado por mim para escrever, no nosso "Picapau", uma secção cómico-desportiva intitulada "Meia bola e força". Quando o Administrador viu o nome dele na lista dos colaboradores, mandou-me chamar e disse-me que eu tinha que pôr a andar o Carlitos. E eu disse-lhe, respeitosamente, que nem pensar. Que ficara à minha responsabilidade a escolha dos colaboradores e não prescindia daquele, que escrevia bem e com graça. Ele foi reler a proposta que aceitara, um ano antes, resmungou um seco "Tá bem!" e foi encerrada a sessão. Pronto! Pela expressão escura da sua cara, vi logo que aquilo ia dar sarilho.
E deu mesmo. O "Picapau" foi saindo – mas, quando estava para ser posto à venda o número 7, fui informado de que a publicação ia ser cancelada "porque está-se a vender mal". Sabíamos muito bem que era uma treta – e, mesmo que o não fosse, era impossível, da forma como então se fazia a distribuição, já ter números correctos de vendas e de sobras, nessa altura. Aquilo era, evidentemente, uma manobra provocada por uma raivinha do senhor Administrador. Este ainda voltaria à carga, exigindo que a verba da colaboração fosse reduzida para metade. O Stuart e eu, claro!, recusámos.
Estava-se mesmo a ver que o "Picapau" fora condenado...
A confirmação foi-nos dada, primeiro, confidencialmente, por um grande amigo que, entretanto, fizéramos na casa: o Mota Cardoso, o secretário-geral, que nos revelou a tramóia que se preparava. Nós só faríamos a revista até ao no 7 – e, entretanto, o no 8 já estava a ser preparado por gente da casa, jornalistas de diversas publicações, que estavam a ser agrupados numa equipa que nem era de humoristas, mas que ficaria baratinha...
Aí, diga-se a verdade, fizemos novamente papel de anjinhos. Quando fomos convocados para receber a "sentença de morte", declarei, todo contente: "O senhor acaba com a revista, e tem esse direito, porque é quem a paga. Mas o número 8, que sabemos estar a ser feito às escondidas, não o pode publicar, porque o Proprietário não deixa! E, se tentar, pomos-lhe um processo!" O homem ficou banzado. É que o Proprietário, oficialmente, ainda era o Matos Maia, pois o advogado tinha-se esquecido completamente de elaborar o documento de transferência de propriedade para a ENP.
Coitado, foi para a rua no dia seguinte!... Portanto, esse oitavo número da revista nunca saiu: foi passado pela guilhotina, para ser cortado ao meio e vendido como papel usado.
Foi assim que começaram e terminaram as aventuras do "Picapau". Pelo meio, entretanto, foram acontecendo alguns episódios pitorescos".
 
Deve dizer-se que pelo meio a revista publicou desenhos e caricaturas de Stuart Carvalhais, Martins, Natalino, Martinez, Túlio Coelho, Adolfo Feldlaufer, Agostinho ou Artur Correia e textos de Santos Fernando, Carlos Pinhão, Ferro Rodrigues, José Rosado ou Santos Fernando , Manuel Martinho ou Carlos Graça. Muitos continuaram nas décadas posteriores a publicar na imprensa humorística e generalista, tornaram-se conhecidos e transformaram-se em desenhadores ou argumentistas eméritos.
Mas é bem verdade que entre todos os colaboradores Stuart Carvalhais destacava-se. Não só porque era mais velho do que todos os outros humoristas, mas porque tinha um prestígio e uma popularidades imbatíveis, como se evidencia aliás pelo à vontade com que lidou com a administração da ENP no evento que ditou o nascimento do "Picapau". Mas para além disso, ou sobretudo fundamentalmente por isso, Stuart era uma personalidade fascinante – com características pessoais e profissionais muito particulares – nos meios jornalísticos e boémios de Lisboa. Eis um exemplo dessa personalidade no depoimento de António Gomes de Almeida:
"Já foi dito, escrito e repetido muitas vezes: o Stuart Carvalhais era um boémio. E gostava dos copos. Não seria um alcoólico, mas lá que apreciava uns bons tintos, isso apreciava. E, como boémio e como Artista que era, não tinha feitio para obedecer a regras, horários, prazos e coisas assim.
Daí que, passado o fogacho inicial do lançamento do "Picapau" (ainda por cima abafado pela longa espera, desde a aprovação do projecto até à saída do primeiro número), o Stuart começasse a funcionar, em relação à revista de que era Director Artístico, da mesma forma que funcionava em relação a todos os trabalhos que tinha de fazer: fazia-os quando lhe apetecia – ou quando lhe fazia falta o dinheirinho que ganhava com eles.
Ninguém lhe levava isso a mal, embora, por vezes, a sua impontualidade causasse problemas para a preparação da revista. Mas a sua graça, a sua irreverência, a sua bonomia, tudo isso era tão vivo, tão simpático, que ninguém se zangava com ele.
Pelo contrário, às vezes, o respeito que, apesar de tudo, lhe era devido (o Stuart era bastante mais velho que todos nós) fazia com que hesitássemos, antes de uma ou outra brincadeira de que ele era o alvo. Foi o que aconteceu logo no número 1 do "Picapau".
Estava combinado que ele entregaria, até uma certa data limite, uma fotografia e uma página desenhada, para a secção "O Desenhador da Semana", em que ele seria, naturalmente, o primeiro a aparecer. A data passou – e nada. Insistências e mais insistências, mas o material não vinha. Finalmente, lá chegou a página com os bonecos – mas, de fotografia, nada. Dizia que não tinha nenhuma disponível e que não estava para ir ao fotógrafo. Então, lembrei-me de que tinha uma fotografia de um grupo, em que ele aparecia. E fez-se uma brincadeira: a cabeça dele, recortada, foi aplicada numa outra fotografia, em que se via um sujeito rodeado de centenas de garrafas, numa adega...
Ainda ficámos na dúvida: ele ficaria ofendido, quando visse aquilo publicado na revista?...
Ora! Fartou-se de rir, achou um piadão à ideia! Enquadrado pelos seus bonecos inconfundíveis, lá saiu a foto aldrabada, com a cabeça do Stuart em corpo alheio, muitas garrafas de vinho à volta, e a legenda: "O nosso Director Artístico, Stuart Carvalhais, na sua Biblioteca"..."
 
 
 
Uma outra fonte de ocorrências, que aos olhos de hoje mais parecem associar-se ao tom humorístico da publicação, em vez de, como na realidade aconteceu, serem a razão de sérios problemas e transtornos, foi a actuação da Censura. O episódio relatado por António Gomes de Almeida traduz esse particular fenómeno da Censura que foi o de, na sua actuação, tantas vezes reflectir no material que acabou por ser autorizado (e naquele que foi cortado) os particulares humores dos censores em vez de critérios gerais de intervenção.
 
"A Censura era, por vezes, muito rigorosa e, sobretudo, muito moralista e muito chata.
Os censores – que eram, como talvez saibam, aqueles senhores coronéis, sem queda para a tropa, mas com queda para o corte, que lá exerciam a sua missão, escortanhando artigos, notícias, títulos, fotografias, desenhos e outras coisas, não com tesouras, mas com os seus famosos lápis azuis – inventavam pretextos do arco-da-velha para complicar a vida a quem trabalhava nos jornais. E nem sempre os cortes tinham a ver com matéria política. O caso pitoresco que vou contar é daqueles que mostram bem o ridículo a que podiam chegar esses senhores, quando se punham a defender o que eles chamavam "a moral e os bons costumes".
Vou explicar por que razão surgiu, no primeiro número do "Picapau", uma caricatura da Malilyn Monroe... sem curvas.
Na verdade, sem a explicação, o fenómeno parece bastante esquisito, pois, se houve artista que ficasse conhecida por não ter, no seu corpo, um centímetro de superfície que não fosse em curva perfeita, essa artista foi a Marilyn.
Então, a explicação é esta:
Um dos colaboradores do "Picapau" era o João Martins, um excelente artista, que trabalhava muito bem a caricatura a "crayon" e tinha muita piada em tudo o que fazia.
Por isso, resolvemos incluir, em cada número, a caricatura de uma figura famosa – e, para começar, pensámos na Marilyn, que estava então no auge da fama. O Martins fez o boneco – naturalmente, com as curvas apropriadas, nos sítios apropriados – e, pois claro, lá teve de seguir a respectiva prova para a Censura.
Quando a prova regressou, vinha "aprovada com cortes". E os cortes, sabem quais eram?
Bem, que remédio! – o Martins lá retocou o desenho e lá seguiu nova prova, com a Marilyn menos exuberante. Só que... também essa veio censurada. As curvas ainda eram evidentes de mais, e o lápis azul mandava reduzi-las mais um pouco. Danado da vida, o caricaturista lá se dispôs a fazer as emendas, mas aquilo já não era bem a Marilyn, já se parecia mais com a Katherine Hepburn...
Enfim, terceira prova... e terceira nega! Sempre o maldito lápis azul a cortar as curvas!
E o chefe da oficina aos gritos, que a revista tinha que entrar na máquina...
Não havia tempo para mais emendas e mais provas. A solução só podia ser uma: compôs-se o desenho, com a Marilyn a tomar banho de chuveiro e com a cortina a deixar ver apenas... a cabeça e os pés!
E assim saiu, sem curvas, mas muito decente, a nossa querida Marilyn, no número 1 do "Picapau". Na altura, é claro que não foi possível explicar aos leitores (provavelmente espantados com aquilo que viam) a razão de ser do "fenómeno".
E não é que o senhor coronel-censor teve a lata de me telefonar, a dar-me os parabéns pela solução? "Está a ver como a caricatura até ficou com mais piada? " dizia ele.
Não vale a pena dizer qual foi a resposta que lhe dei. Mas acho que todos vocês imaginam a resposta que eu gostaria de lhe ter dado..."
 
 
 
 
 
 
A revista constituiu sem dúvida um exemplo de humor escrito e humor gráfico inovador para a época, com a particularidade, não despicienda, de só ter colaboração portuguesa. Os textos e os “ cartoons” que passaram entre o lápis da censura são de um humor sarcástico, muitas vezes surrealista – uma das secções intitulava-se "Disurrealicionario" – que não terá sido repetido muitas vezes em outras publicações mesmo depois do 25 de Abril. E em muitos casos até parece que ou a Censura leu e não percebeu, ou, quem sabe... gostou !
Um bom exemplo é a banda desenhada "O Terror dos Sete mares incluindo o mar da Palha ou uma aventura na Ilha das Malucas" da qual reproduzimos (com a devida vénia) a última prancha publicada. Os desenhos são de Túlio Coelho e argumento... da redacção inteira: "cada um escreve um capítulo e os outros que se governem com a continuação" (como se explicava no nº 2 ) . Não concluiu, dado o abrupto encerramento da revista, já relatado, mas provavelmente também não faria grande diferença...
 
Ricardo Leite Pinto