Já que falamos de elefantes, o célebre
gráfico de Branko Milanovic que mostra o crescimento das desigualdades no
mundo. Melhor dizendo, se a desigualdade global diminuiu, nos anos mais
recentes 1 % dos que estão no topo dos rendimentos ganham o dobro dos 50 % que estão nos escalões mais baixos. Para mais
explicações, esta breve nota.
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segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019
sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018
O #MeToo da Pérsia.
A revolução de 1979 foi uma salada russa, e não um monólito
islamita. Além dos islamistas, outros grupos participaram no levantamento:
comunistas, socialistas, nacionalistas laicos, etc. Encarnando a figura da
intelectual laica, a juíza progressista Shirin Ebadi engrossou as fileiras que
derrubaram o Xá. A desilusão, porém, não tardou. Ebabi julgava que o Irão
caminharia para um regime constitucional inspirado em Mosaddegh, mas, na
verdade, caminhou no sentido do totalitarismo. Tal como os outros mencheviques,
Ebadi foi aniquilada pelos bolcheviques, os islamistas de Khomeini. E se o Xá
reprimia apenas o processo político (modelo autoritário), Khomeini começou a
reprimir toda a sociedade (modelo totalitário). As maiores vítimas deste
totalitarismo foram as mulheres. Pelo simples facto de ser mulher, Ebadi perdeu
o cargo de juíza.
Ao longo das suas memórias (O Despertar do Irão, Guerra & Paz), Ebadi utiliza muito a palavra “segregação”. Uma palavra apropriada, sem dúvida. O Irão transformou-se numa espécie de Apartheid com a misoginia no lugar do racismo. Qualquer demonstração de feminilidade passou a estar no centro da política. Até podemos dizer que esta teocracia foi construída sobre um grande pilar: impedir que as mulheres infectem os homens; a mulher é por inerência uma rameira que desorienta o homem, esse ser casto que é apanhado desprevenido pela peçonha da fêmea. Este totalitarismo de alcova gerou e ainda gera um ambiente tão sinistro e absurdo que por vezes chega a ser cómico. Ao longo da leitura de O Despertar do Irão ficamos muitas vezes com a impressão de estarmos perante uma série de humor nonsense. Por exemplo, as festas de anos das filhas de Ebadi tinham de ser realizadas durante a hora de ponta, pois desta forma o ruído dos carros abafava o som da aparelhagem. Se descobrisse a festa, a polícia dos costumes (komiteh) invadiria a casa. As festas eram proibidas, tal como o álcool e cassetes de música. Eram e julgo que continuam a ser.
A restante lista do nonsense é interminável: se for apanhada com maquilhagem, uma mulher pode ser presa; se mostrar o pulso, uma jovem pode ser humilhada em público; se mostrar o tornozelo, uma rapariga pode ser açoitada. Ser mulher é um pecado, logo qualquer centímetro do corpo feminino é pecaminoso, mesmo o tornozelo, que, como se sabe, é uma proeminência deveras excitante. Perante este retrocesso da condição feminina, Ebadi começou uma segunda vida enquanto advogada das causas difíceis: a defesa dos dissidentes e a defesa das mulheres. Tornou-se particularmente subversiva, porque nunca invocou leis e teorias de Direitos Humanos exteriores à tradição islâmica. Para criticar a teocracia, Ebadi usou sempre os códigos morais do Islão, provando com isso duas coisas: o radicalismo islamita não respeita o Islão, e não existe um abismo irreconciliável entre a fé islâmica e a decência constitucional.
Camelia Entekhabifard (jornalista exilada nos EUA) nasceu em 1973, isto é, tem a idade das filhas de Shirin Ebadi. Nas suas memórias (O Preço da Liberdade, Edições Asa), podemos ver que a demência surreal não anulou apenas a vida profissional de mulheres maduras como Ebadi. O rolo compressor do nonsense também chegou à vida das adolescentes. Por exemplo, Entekhabifard foi espancada por usar sandálias sem meias no pico do Verão. No sistema educativo, Entekhabifard presenciou a implementação da segregação através do fim das escolas mistas. Parece que as cartas de amor e os beijos fugidios são armas de destruição massiva. Entekhabifard viu rapazes a serem açoitados e raparigas a serem levadas a um hospital para que um médico confirmasse a sua virgindade. O seu crime? Estavam numa festa. Quando cresceu, Entekhabifard serviu uma vingança bem fria ao regime através do seu trabalho jornalístico que apontou baterias a esta patética sexualização da política: fez peças sobre a “revirginização de raparigas” e sobre a prostituição na cidade santa de Qom. Pagou caro esta coragem: ameaças de morte, prisão, tortura, exílio.
Devemos notar que a luta de Entekhabifard e Ebadi não tem como referência uma noção abstracta de Direitos Humanos ou de Direitos da Mulher. Pelo contrário, estas duas mulheres têm como referencial a memória familiar e a sociedade iraniana pré-79. Entekhabifard não esconde o respeito pelo legado do Xá e da Imperatriz Diba no que diz respeito à emancipação das mulheres. Ao invés de Entekhabifard, Ebadi deplora a velha dinastia, mas não nega que os Pahlavi dignificaram a condição feminina, um pouco à imagem do programa laico de Atatürk na Turquia. Antes de 1979, Teerão era uma grande metrópole com um leve ar cosmopolita. Nos anos 60 e 70, a liberdade e a libertinagem de Teerão não seriam as mesmas de Greenwich Village, mas a capital da Pérsia estava mais próxima do Ocidente do que de Riade ou Islamabad. Neste ambiente de abertura, Shirin Ebadi teve a possibilidade de entrar na magistratura, e a meninice de Entekhabifard foi semelhante à de qualquer jovem ocidental: bonecas Barbie, acesso a qualquer tipo de livros, festas, maquilhagem, música punk e a idolatria dos ícones pop americanos. Esta normalidade muito ocidental descrita por Ebadi e Entekhabifard foi interrompida pela revolução islamita. Nós, ocidentais, habituámo-nos a ver o Irão como um sinónimo de fanatismo religioso e de anti-ocidentalismo, mas na verdade o Irão é porventura o país muçulmano mais parecido com o Ocidente. Não por acaso, Marjane Satrapi escreveu esse grande romance gráfico chamado Persépolis (Edições Contraponto) para provar este ponto: a normalidade iraniana está mais próxima do cosmopolitismo do que do islamismo, até porque a Pérsia é anterior ao próprio Islão.
Persépolis é um romance sobre a família e sobre a pátria, sobre o carinho familiar e sobre a busca de uma redenção colectiva - para a família e para o país. Através das vinhetas da Satrapi-criança, vemos a luta contra o Xá e, logo depois, a desilusão perante o desenlace da revolução. Através das vinhetas da Satrapi-adolescente, vemos a resistência do espírito perante a opressão: as festas às escondidas, a compra de cassetes à socapa, o desafio aos professores, a avó que ensina a neta a colocar jasmim no sutiã, a fuga para a Áustria. Através das vinhetas da Satrapi-adulta, vemos uma sociedade cosmopolita a resistir às escondidas, isto é, vemos um país esquizofrénico onde as pessoas têm uma – falsa – persona pública e um – verdadeiro – alter ego privado. E é esta sufocante esquizofrenia que leva Satrapi ao exílio derradeiro em França. Mas, apesar deste sabor trágico, Persépolis não deixa o Irão (e o leitor) num beco sem saída. O livro é percorrido por um espírito de esperança e de orgulho em relação à pátria persa. Como todas as grandes escritoras, Satrapi não mostra isso de forma explícita, mas o patriotismo está lá, escondido nos pormenores. É como se Satrapi acreditasse que a Pérsia tem a redenção à sua espera. E, de facto, o regime de 1979, ao contrário da civilização persa, não pode durar para sempre. O seu fim até pode estar mais próximo do que se pensa. A geração que devia estar a consumar a revolução islamita, a geração de Satrapi, está a contestá-la. Aliás, Persépolis confirma uma das frases mais fortes de Shirin Ebadi: “a juventude iraniana permanece animadamente pró-americana”. O Irão ainda vai ser nosso amigo. Um país onde as avós enchem o sutiã com jasmim só pode ser nosso amigo.
Ao longo das suas memórias (O Despertar do Irão, Guerra & Paz), Ebadi utiliza muito a palavra “segregação”. Uma palavra apropriada, sem dúvida. O Irão transformou-se numa espécie de Apartheid com a misoginia no lugar do racismo. Qualquer demonstração de feminilidade passou a estar no centro da política. Até podemos dizer que esta teocracia foi construída sobre um grande pilar: impedir que as mulheres infectem os homens; a mulher é por inerência uma rameira que desorienta o homem, esse ser casto que é apanhado desprevenido pela peçonha da fêmea. Este totalitarismo de alcova gerou e ainda gera um ambiente tão sinistro e absurdo que por vezes chega a ser cómico. Ao longo da leitura de O Despertar do Irão ficamos muitas vezes com a impressão de estarmos perante uma série de humor nonsense. Por exemplo, as festas de anos das filhas de Ebadi tinham de ser realizadas durante a hora de ponta, pois desta forma o ruído dos carros abafava o som da aparelhagem. Se descobrisse a festa, a polícia dos costumes (komiteh) invadiria a casa. As festas eram proibidas, tal como o álcool e cassetes de música. Eram e julgo que continuam a ser.
A restante lista do nonsense é interminável: se for apanhada com maquilhagem, uma mulher pode ser presa; se mostrar o pulso, uma jovem pode ser humilhada em público; se mostrar o tornozelo, uma rapariga pode ser açoitada. Ser mulher é um pecado, logo qualquer centímetro do corpo feminino é pecaminoso, mesmo o tornozelo, que, como se sabe, é uma proeminência deveras excitante. Perante este retrocesso da condição feminina, Ebadi começou uma segunda vida enquanto advogada das causas difíceis: a defesa dos dissidentes e a defesa das mulheres. Tornou-se particularmente subversiva, porque nunca invocou leis e teorias de Direitos Humanos exteriores à tradição islâmica. Para criticar a teocracia, Ebadi usou sempre os códigos morais do Islão, provando com isso duas coisas: o radicalismo islamita não respeita o Islão, e não existe um abismo irreconciliável entre a fé islâmica e a decência constitucional.
Camelia Entekhabifard (jornalista exilada nos EUA) nasceu em 1973, isto é, tem a idade das filhas de Shirin Ebadi. Nas suas memórias (O Preço da Liberdade, Edições Asa), podemos ver que a demência surreal não anulou apenas a vida profissional de mulheres maduras como Ebadi. O rolo compressor do nonsense também chegou à vida das adolescentes. Por exemplo, Entekhabifard foi espancada por usar sandálias sem meias no pico do Verão. No sistema educativo, Entekhabifard presenciou a implementação da segregação através do fim das escolas mistas. Parece que as cartas de amor e os beijos fugidios são armas de destruição massiva. Entekhabifard viu rapazes a serem açoitados e raparigas a serem levadas a um hospital para que um médico confirmasse a sua virgindade. O seu crime? Estavam numa festa. Quando cresceu, Entekhabifard serviu uma vingança bem fria ao regime através do seu trabalho jornalístico que apontou baterias a esta patética sexualização da política: fez peças sobre a “revirginização de raparigas” e sobre a prostituição na cidade santa de Qom. Pagou caro esta coragem: ameaças de morte, prisão, tortura, exílio.
Devemos notar que a luta de Entekhabifard e Ebadi não tem como referência uma noção abstracta de Direitos Humanos ou de Direitos da Mulher. Pelo contrário, estas duas mulheres têm como referencial a memória familiar e a sociedade iraniana pré-79. Entekhabifard não esconde o respeito pelo legado do Xá e da Imperatriz Diba no que diz respeito à emancipação das mulheres. Ao invés de Entekhabifard, Ebadi deplora a velha dinastia, mas não nega que os Pahlavi dignificaram a condição feminina, um pouco à imagem do programa laico de Atatürk na Turquia. Antes de 1979, Teerão era uma grande metrópole com um leve ar cosmopolita. Nos anos 60 e 70, a liberdade e a libertinagem de Teerão não seriam as mesmas de Greenwich Village, mas a capital da Pérsia estava mais próxima do Ocidente do que de Riade ou Islamabad. Neste ambiente de abertura, Shirin Ebadi teve a possibilidade de entrar na magistratura, e a meninice de Entekhabifard foi semelhante à de qualquer jovem ocidental: bonecas Barbie, acesso a qualquer tipo de livros, festas, maquilhagem, música punk e a idolatria dos ícones pop americanos. Esta normalidade muito ocidental descrita por Ebadi e Entekhabifard foi interrompida pela revolução islamita. Nós, ocidentais, habituámo-nos a ver o Irão como um sinónimo de fanatismo religioso e de anti-ocidentalismo, mas na verdade o Irão é porventura o país muçulmano mais parecido com o Ocidente. Não por acaso, Marjane Satrapi escreveu esse grande romance gráfico chamado Persépolis (Edições Contraponto) para provar este ponto: a normalidade iraniana está mais próxima do cosmopolitismo do que do islamismo, até porque a Pérsia é anterior ao próprio Islão.
Persépolis é um romance sobre a família e sobre a pátria, sobre o carinho familiar e sobre a busca de uma redenção colectiva - para a família e para o país. Através das vinhetas da Satrapi-criança, vemos a luta contra o Xá e, logo depois, a desilusão perante o desenlace da revolução. Através das vinhetas da Satrapi-adolescente, vemos a resistência do espírito perante a opressão: as festas às escondidas, a compra de cassetes à socapa, o desafio aos professores, a avó que ensina a neta a colocar jasmim no sutiã, a fuga para a Áustria. Através das vinhetas da Satrapi-adulta, vemos uma sociedade cosmopolita a resistir às escondidas, isto é, vemos um país esquizofrénico onde as pessoas têm uma – falsa – persona pública e um – verdadeiro – alter ego privado. E é esta sufocante esquizofrenia que leva Satrapi ao exílio derradeiro em França. Mas, apesar deste sabor trágico, Persépolis não deixa o Irão (e o leitor) num beco sem saída. O livro é percorrido por um espírito de esperança e de orgulho em relação à pátria persa. Como todas as grandes escritoras, Satrapi não mostra isso de forma explícita, mas o patriotismo está lá, escondido nos pormenores. É como se Satrapi acreditasse que a Pérsia tem a redenção à sua espera. E, de facto, o regime de 1979, ao contrário da civilização persa, não pode durar para sempre. O seu fim até pode estar mais próximo do que se pensa. A geração que devia estar a consumar a revolução islamita, a geração de Satrapi, está a contestá-la. Aliás, Persépolis confirma uma das frases mais fortes de Shirin Ebadi: “a juventude iraniana permanece animadamente pró-americana”. O Irão ainda vai ser nosso amigo. Um país onde as avós enchem o sutiã com jasmim só pode ser nosso amigo.
Henrique Raposo
Ensaio publicado em 2012 na revista do Expresso (no
Actual, se a memória não me valha); o título original é “o Irão é nosso amigo”.
quarta-feira, 15 de novembro de 2017
As cheias, 50 anos depois.
A
maior tragédia natural que se abateu sobre Lisboa, desde o terramoto de 1755. As
cheias de 1967. Muitos mortos, tantos que nem se sabe a conta. 50 anos depois,
a reportagem de Dina Soares na Renascença, aqui.
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terça-feira, 26 de setembro de 2017
Histórias de mulheres: Ruby Bridges (e Margarida Araújo)
![]() |
Norman Rockwell, The Problem We All Live With, 1964
|
![]() |
Margarida Araújo, Norman Rockwell Revisited, 2012
|
Margarida Araújo, a própria
|
Há cinco anos, escrevi no Malomil um texto desmesurado e loooongo sobre Ruby Bridges
e o quadro de Norman Rockwell. Mandei-lhe um desenho da minha Margarida, ela
agradeceu com um livro assinado para a raça da miúda – que agora está na
escola, como Ruby esteve. Mas a ida de Ruby para a escola não foi, nem de
longe, semelhante à da minha Margarida. É importante que a minha Margarida e as
outras margaridas do mundo saibam quem é Ruby Bridges, o que fez e faz. Deu uma
entrevista à TVI
(aqui), que exibiu também o filme da Disney sobre ela. Ruby estará
em Lisboa, no próximo sábado, no Encontro da Fundação Francisco Manuel dos
Santos. Para todas as margaridas do mundo, beijos e abraços. Mas para a minha
Margarida, um beijo do pai, que é especial e diferente de todos os outros
beijos do mundo (espero eu…). Passaram cinco anos, Maggie, cinco anos de ti.
E eu a ver-te, pasmado e feliz.
António Araújo
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sexta-feira, 16 de junho de 2017
Visto do céu.
Estou
à vontade para mostrar estas imagens de Johnny Miller pois não fui eu, que nem
sequer o conhecia, quem teve a ideia de as trazer para o interior da Revista XXI – Ter Opinião, cujo nº 8 é dedicado ao tema da desigualdade. A ideia
(parabéns!) foi da equipa-maravilha constituída pela Bárbara Reis e pela Paula
Barreiros. Há quem fale da desigualdade de perto, indo ao interior das casas e
das famílias, como o cineasta Ken Loach. Em contrapartida, o fotógrafo Johnny
Miller (não confundir com o antigo profissional de golfe nem com o actor
britânico nascido em 1972, bendita Wikipedia…) preferiu ver a injustiça a partir do céu,
utilizando um drone. Sim, um drone. Para fotografar paisagens urbanas de Nairobi,
da Cidade do México, da África do Sul e doutros lugares. Vista de longe, nota-se melhor – ou,
melhor, a desigualdade só se vê de cima, observando os contrastes entre, por um lado, casas
ou campos de golfe e, por outro, bairros de barracas e construções de lata
e miséria. Um rendilhado que parece um padrão de tecido, formado pelas casas agrupadas em linhas umas vezes simétricas, outras desordenadas. Quase abstracção, mas não é, é tudo real e bem autêntico. Miller chamou a esta série Unequal Scenes. Absolutamente extraordinária, na originalidade
da abordagem e na crueza que só a imagem mostra. Já agora, veja o
vídeo, é só um minutinho bastante elucidativo:
quarta-feira, 20 de abril de 2016
A vida de Strider Wolf.
O David Teles Pereira mandou-me a
notícia deste ensaio fotográfico, galardoado este ano com o Pulitzer. A vida de
Strider Wolf, um rapaz de seis anos. Aos dois anos, o companheiro da mãe
maltratava-o, batia-lhe com violência. A custódia do menino foi entregue aos
avós. Larry e Lanette, assim se chamam, foram despejados da casa onde viviam
por atrasos no pagamento da renda. Andaram por vários sítios, vivendo em tendas
de campismo, abrigos no meio do campo, aí por onde calhava. Por deixarem de ter uma
«morada fixa», a burocracia cortou-lhes o subsídio de residência. Se já eram
pobres, ficaram ainda mais pobres. Por todo o mundo há pobres, mas custa mais ver a pobreza
num país que é rico. A história é longa e pungente – e mais
vale lê-la na versão original, sem arrebiques nem floreados. No final da
jornada, o menino e os seus avós encontraram finalmente uma casa que podiam
pagar, um tecto para se abrigar. Fica no Estado do Maine, numa terra chamada…
Lisbon.
domingo, 15 de março de 2015
Our Kids, entre outros livros.
Com a amizade de sempre,
o Pedro Lomba, uma das pessoas mais lidas e mais cultas da sua geração,
mandou-me a referência a um livro recente, cuja existência desconhecia. Em Our Kids, Robert Putnam discute a
questão da crescente desigualdade de rendimentos nos Estados Unidos, e
sobretudo que efeitos isso tem no sistema educativo norte-americano. Concorde-se ou não com o
que escreve o autor de Bowling Alone,
ninguém contesta a seriedade e a profundidade das suas abordagens. Existe uma excelente recensão ao livro de Putnam, que devo a outro Pedro, um outro amigo de
sempre, o Pedro Magalhães. Aqui, um vídeo desenvolvido, de uma palestra de Putnam em Georgetown, e este, mais breve:
Sem ter ainda lido o livro, outro grande amigo, o Onésimo Teotónio de Almeida, nas conversas por e-mail que mantemos diariamente, mandou-me uma das suas «notas bárbaras», apontamentos que, com imensa generosidade, partilha com a legião imensa dos que admiramos a sua joie de vivre. Palavra puxa palavra, recordei-lhe um documentário que vi há uns tempos e que muito me impressionou, The Ivory Tower. Não sei se já falei dele aqui no Malomil, nem interessa. O que interessa, pois fala com saber de experiência feita, é a resposta do Onésimo. Dirão que é opinião, pessoal, subjectiva. Ainda bem. O Onésimo pensa pela sua cabeça, fala com base na experiência. É dos espíritos mais livres e independentes que conheço. O que diz não vai em cantigas nem em cartilhas. Mandou-me esta mensagem que, com a sua autorização, aqui transcrevo:
Lembrei-me de lhe
enviar este artigo. Poderá ser tão
exagerado para o positivo como Ivory Tower é para o negativo.
Como lhe disse, não vi o filme, apenas o trailer. Conheço os
argumentos e tenho lido, ao longo das décadas, sobre aquelas críticas. Lido livros
também. Um deles tenho aqui à mão e li há dez anos – The University in Ruins, de Bill Readings – mas já li vários outros. Também
aqui à mão está um que acho mais pertinente por ser de um antigo Reitor (President)
de Harvard, Derek Bok, Universities in
the Market Place. Levanta problemas mais sérios, como o
da comercialização do ensino superior. Há muitos sobre o tema e as
críticas surgem de todos os lados. Nos EUA nada está isento de profundas
críticas, mesmo de académicos que recebem salários de superstars nas
universidades mas têm o direito de expressar os seus pontos de vista e
publicá-los nas editoras do sistema universitário que eles próprios criticam.
Só direi uma coisa: se há
instituição no mundo ainda preocupada com a meritocracia, com os valores
democráticos, com dar oportunidade aos que não nasceram num berço de fadas, aos
que nunca puderam entrar numa universidade por não terem posses, é a
universidade americana. Espero não escandalizá-lo ao dizer-lhe isso, mas
poderia sentar-me consigo horas e horas a falar-lhe destas realidades. A
começar pelo needs blind, que permite qualquer jovem entrar na
universidade por mérito e com bolsa completa se os pais não puderem colaborar
com nada (porque o aluno primeiro é seleccionado mediante critérios académicos
e só depois a sua candidatura passa para o Departamento de Financial
Aid a fim de ser decidido, com base na informação do IRS, qual o
montante que os pais podem pagar). E seria importante lembrar que na
universidade americana não se espera que, após a licenciatura, sejam os pais a
pagar. O aluno ou a empresa em que trabalha pagam para o mestrado. Para o
doutoramento, porém, é a universidade que financia porque ela está
disposta a investir se o aluno está disposto a mergulhar a sério num
doutoramento. Nas melhores universidades, o doutoramento é absolutamente gratuito
para os melhores. Quer dizer, a universidade paga tudo para a grande maioria
dos alunos de doutoramento. E o compromisso é tomado por cinco anos. Por
exemplo, todos os anos o meu departamento aceita para o doutoramento dois ou
três alunos que são admitidos por cinco anos (às vezes seis) com tudo pago e
com um salário que lhes permite viver. Não folgadamente, mas com um mínimo de
decência. Além disso, poderia falar-lhe do imenso esforço que as universidades
fazem para atrair minorias - alunos e professores. Se eu contasse algumas
histórias, pouca gente em Portugal me acreditaria.
Mas regressando à
meritocracia e ao lugar que ela ocupa no ideário da universidade americana: os
exemplos poderiam começar com figuras muito conhecidas, como Obama, e acabar
comigo, que fui o primeiro da minha família a ir para a universidade, pois
antes de mim ficaram-se apenas pelo Liceu. Ir dos Açores estudar para uma
universidade no Continente era uma despesa enormíssima. É verdade que vim daí
com a licenciatura, no entanto as portas aqui estiveram sempre abertas para mim
e para tantos outros como eu. E continuam.
Digo isto com a maior das
sinceridades. Faço-o em particular, mas já o fiz publicamente muitas vezes.
Devo no entanto acrescentar que, quando o fiz publicamente, fui com frequência
bombardeado. Em vez de as pessoas ouvirem o meu testemunho e aproveitarem para
se informar melhor, preferiram reagir ideologicamente. Sem o dizer
explicitamente, pensaram-me vendido ao sistema.
Quarenta e tantos anos de
experiência nada podem quando as convicções ideológicas das pessoas é que
dominam as suas cabeças.
Um abraço amigo do
Onésimo
segunda-feira, 1 de julho de 2013
Moçambique: notas de campo (11).
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Estar
no sítio certo à hora marcada pelo destino aconteceu esta tarde quando saía do
Macurungo por uma estrada de terra batida, ao mesmo tempo que o tique-taque de
um selecto Jaguar. Nas ruas movimentadas daquele subúrbio típico da cidade da
Beira, em Moçambique, como nas restantes, já me tinha cruzado pouco antes, como
quase todos os dias, com águas paradas, lixeiras a céu aberto, animais
domésticos que andam por ali, entre galinhas e cães, casas demasiado próximas
umas das outras, pessoas que transportam água em bidões porque não é de acesso
fácil, mercados de rua sem grandes cuidados higiénicos onde um dos negócios
habituais é a venda de fritos e bolos prontos a comer, preparados e expostos ao
ar livre, pelos vistos com muita procura, ou pessoas que atiram lixo para a tâmega,
como designam os canais de esgotos a céu aberto em homenagem a uma empresa do
tempo colonial. E moscas. Muitas. Invariavelmente faz também parte da paisagem
um sem-número de crianças de todas as idades, mesmo em horas de escola. Pairam
simplesmente por ali. Está certo que algumas preocupadas em despachar os tpc’s
à vista da vizinhança e dos transeuntes. Depois, para reconfortar a vista, não
me fez mal ver uma cápsula asséptica de ar-condicionado quase silenciosa, saída
de um mundo aparentemente paralelo. Perante isto, a comunidade internacional
discutirá vivamente a corrupção. Talvez quando o Jaguar for arrancado ao dono
pela justiça de um tribunal internacional ou quando vier uma qualquer revolução
e o preço da sua venda for repartido em migalhas por aqueles pobres, o seu
mundo ficará melhor. Quem sabe bem. Os pobres alcançarão justiça. Pelo que é
comum dizer-se, num mundo justo o dinheiro seria sobretudo deles, não fossem os
desvios imorais de uns pouquíssimos homens e mulheres seduzidos pela ganância.
Entretanto, muitos mais anos passarão e continuaremos a fazer vista grossa à
questão da natalidade. O maior problema daquela paisagem naquele momento não
era o Jaguar. Bem pelo contrário. Pelo menos para mim e para outros que olhavam
entre o divertido, o respeitoso ou o indiferente.
Gabriel Mithá Ribeiro
sexta-feira, 30 de novembro de 2012
De Versalhes à Bastilha.
A desigualdade está a avançar a nível global. Mas a América é dos países onde o fenómeno assume maiores proporções. 1 por cento dos americanos mais abastados concentram mais valor do que os 90 por cento da base, segundo um estudo do Economic Policy Institute, de Washington. Antes da crise de 2007/2009, a concentração de riqueza nos dez por cento dos americanos mais ricos atingiu os 49,7%, a mais alta concentração desde 1917. O problema não está na existência ricos, mas no aumento do fosso ricos/pobres e na falência da classe média. Entre 2007 e 2010, a riqueza média das famílias norte-americanas caiu 40 por cento. 43,6 milhões de norte-americanos, de uma população total de 311 milhões, está dependente, para sobreviver, dos «cupões de comida» do Programa de Assistência Nacional Alimentar. Enquanto isso, uns alimentam fantasias de construir réplicas de Versalhes, como mostra este excepcional documentário. A este ritmo, para onde vamos? Possivelmente, a caminho de novas bastilhas.
António Araújo
quarta-feira, 21 de novembro de 2012
terça-feira, 20 de novembro de 2012
Justiça para ouriços.
Justice for Hedgehogs (trad. portuguesa: Justiça para Ouriços, Almedina, 2012) é o
mais recente livro de Ronald Dworkin e também o livro que pretende reunir num
todo coerente a sua filosofia política, moral e jurídica [1].
Nessa medida, pode sem dúvida considerar-se o seu opus magnum. A atestá-lo está, desde logo, a circunstância de Justice for Hedgehogs ter sido objecto
de uma conferência, ocorrida antes mesmo da publicação da obra, em que
participaram importantes constitucionalistas e filósofos como Frank Michelman, Frances Kamm, Thomas Scanlon e Jeremy
Waldron, entre muitos outros [2].
O
propósito de Dworkin em Justice for
Hedgehogs consiste, como o próprio afirma, em defender «uma ampla e antiga tese filosófica: a unidade
do valor» (p. 1). O título do livro tem na sua base um fragmento do poeta
grego Arquíloco, retomado por Isaiah Berlin, segundo o qual «a raposa sabe
muitas coisas, mas o ouriço sabe uma grande coisa». Segundo Berlin, apesar das
divergências sobre a interpretação correcta destas palavras, as mesmas podem
significar simplesmente que a raposa, com toda a sua manha, é vencida pela
defesa única do ouriço. Mas, prossegue Berlin, tomada figurativamente, a
diferença entre a raposa e o porco-espinho pode exprimir uma das mais profundas
diferenças entre pensadores e, até, os seres humanos em geral. Trata-se da
diferença entre aqueles que «relacionam tudo com uma única visão central, um
sistema, mais ou menos coerente ou articulado, em termos do qual tudo compreendem,
pensam e sentem – um princípio organizativo único, universal apenas em função
do qual tudo o que são e dizem tem significado – e, por outro lado, aqueles que
perseguem muitos fins, muitas vezes não relacionados e até contraditórios» [3].
Pois
bem, ao contrário da desconfiança de Berlin em relação à ideia de unidade de
valor, Dworkin abraça-a como motor central do seu projecto filosófico. Segundo
ele, a ideia de que os valores éticos e morais dependem uns dos outros
apresenta-se como uma crença, a proposta de uma forma de vida, mas é também uma
complexa teoria filosófica.
Na
Parte I do livro, Dworkin começa por defender a ideia de que existe verdade na
moral, quer contra aqueles que perfilham aquilo que designa como cepticismo
interno, isto é, o cepticismo inerente a juízos morais substantivos, e quer
contra aqueles que perfilham o cepticismo externo, que se baseia em afirmações
externas, de «segunda-ordem», sobre a moral. Os cépticos internos fundam-se na
moral para denegrir a moral, afirmando por exemplo que, se Deus não existe,
desaparece qualquer base para a moral, ou que a moral é vazia porque todo o
comportamento humano é determinado causalmente por acontecimentos que escapam
ao controlo de qualquer pessoa; os externos julgam a moral a partir de fora e
rejeitam qualquer possibilidade de conhecimento moral, afirmando, por exemplo,
que os juízos morais não são verdadeiros nem falsos, mas a simples expressão de
sentimentos (pp. 31-34). A Parte II é dedicada à demonstração da natureza «interpretativa»
do raciocínio moral. Nas Partes III e IV, respectivamente, Dworkin desenvolve
os conteúdos da ética e da moral, conceitos que distingue da seguinte forma:
«os padrões da moral determinam como devemos tratar os outros; os padrões da
ética, como devemos nós próprios viver» (pp. 13 e 191). Finalmente, na Parte V,
em que são abordados a política e o direito, a análise deixa de se ocupar das
ideias de responsabilidade (ética) e obrigações (morais), para se centrar na
ideia de direitos.
Se é
este o plano geral da obra, Dworkin inicia-a com um «Baedeker» (um guia de
viagem) em que expõe resumidamente as suas principais ideias no sentido precisamente
inverso àquele, atrás mencionado, em que surgem ordenadas no livro. O seu
propósito é o de dotar as pessoas particularmente interessadas na política da
compreensão de como «as discussões filosóficas mais abstractas do livro são
passos necessários para chegar àquilo que mais lhes diz respeito». Já para
aqueles mais orientados para as questões filosóficas, a mesma estratégia serve
para os encorajar a «encontrar importância prática naquilo que poderão ser
tentados a acreditar serem matérias filosóficas abstrusas» (p. 2).
Na
impossibilidade, por manifesta falta de espaço, de explorar as ideias de
Dworkin tal como desenvolvidas ao longo da obra, vale a pena seguir aqui o
«guia» introdutório proposto pelo autor. Sob a epígrafe «Justiça», encarada
como justiça distributiva, Dworkin começa por expor as suas ideias sobre a
igualdade, a liberdade, a democracia e o direito.
.
.
No que
diz respeito à igualdade, Dworkin parte daqueles que designa como os «dois
princípios reinantes» que devem ser adoptados por qualquer poder político
legítimo (p. 2): o respeito pelo valor igual de cada pessoa a esse poder
submetida; o respeito pela responsabilidade e direito de cada pessoa a decidir
por si mesma como fazer algo valioso com a sua vida. Toda a distribuição de
recursos deve ser justificada em face destes dois princípios. Nesta sequência,
será de rejeitar uma economia política baseada no laissez faire, uma vez que,
ao aceitar sem restrições todos os resultados do funcionamento do mercado, não
respeita o valor igual de cada um, designadamente o daqueles que, sem qualquer
responsabilidade, se encontram numa posição que é, à partida, desfavorável.
Será também de rejeitar uma distribuição igualitária de recursos segundo a
ideia de bem-estar, agora pela circunstância de esta não valorizar devidamente
o princípio da responsabilidade de cada um pela sua própria vida. Se eu decidir
passar a minha vida em divertimento ou num trabalho menos produtivo, devo
assumir a responsabilidade pelo custo que esta escolha impõe: «devo ter menos
em consequência» (p. 3).
Dworkin
propõe a sua teoria de justiça distributiva, baseada na igualdade de recursos.
Dworkin toma como ponto de partida um mercado imaginário em que todos os
recursos disponíveis são objecto de um leilão, que apenas cessa quando ninguém
inveja o feixe de recursos atribuído a qualquer outro. Deste modo, respeita-se
o princípio do igual valor de cada um. Para além disso, são também objecto de
leilão apólices de seguro que visam minorar as consequências da boa ou má sorte
dos participantes. Assim, respeita-se também o princípio da responsabilidade
individual. Dworkin imagina depois que se concebam sistemas de impostos segundo
o modelo dos mercados imaginários, isto é, sistemas de impostos progressivos
concebidos como sucedâneos dos prémios que seria razoável assumir que as
pessoas estivessem dispostas a pagar no mercado de seguros hipotético.
No que
diz respeito à liberdade, e contra a tese de I. Berlin da inevitabilidade do
conflito entre esta e a igualdade, Dworkin procura uma teoria da liberdade que
elimine tal conflito. Para o efeito, distingue entre liberdade total, que é
simplesmente a capacidade de fazer o que se quiser sem restrições do poder
político, e liberdade substancial, que consiste naquela parte da liberdade
total que o poder político não tem fundamento para restringir. Com base nesta
distinção, Dworkin nega um direito geral de liberdade e sustenta a existência
de diferentes direitos de liberdade: o direito à independência ética, que
decorre do princípio da responsabilidade individual; a liberdade de expressão,
igualmente resultante do princípio da responsabilidade individual; o direito ao
devido processo legal e o direito de propriedade, resultantes do princípio do
igual valor de cada pessoa. Neste esquema de liberdades desaparece o conflito
com a igualdade, no sentido em que não é possível determinar o que é exigido
pela liberdade sem, do mesmo passo, decidir qual a distribuição da propriedade
e da oportunidade que satisfaz a exigência de igual respeito por todos. Neste
sentido, é falsa a pretensão de que os impostos limitariam a liberdade das
pessoas, desde que os rendimentos subtraídos pelos impostos tenham uma
justificação moral, isto é, não nos subtraiam mais do que aquilo que temos
direito a reter.
Dworkin
nega também a existência de qualquer conflito entre a liberdade e a igualdade,
por um lado, e o princípio democrático ou liberdade positiva, por outro. Para o
efeito, distingue entre uma concepção estatística, ou maioritária, da
democracia e uma concepção societária. De acordo com esta última, cada cidadão
participa numa comunidade genuinamente democrática enquanto parceiro igual, o
que significa mais do que ter o mesmo voto igual. Significa, na verdade, que a
própria democracia exige a protecção dos direitos à igualdade e liberdade
negativa que é muitas vezes acusada de ameaçar.
Dworkin
nega, por último, a existência de qualquer conflito entre a justiça e o
direito, que surge apresentado como um ramo da moral política, por sua vez
considerada um ramo da moral pessoal, sendo esta encarada como um ramo de uma
teoria geral do que é viver bem. Não se julgue que as concepções políticas
defendidas pelo autor se integram por via de um ajustamento à medida. Pelo
contrário, Dworkin sustenta que «na moral política, a integração é uma condição
necessária da verdade» (pp. 5-6).
A fim
de fundamentar esta importante conclusão, Dworkin começa por efectuar uma
precisão sobre a natureza dos conceitos que estão em causa quando discutimos a
igualdade, a liberdade, a democracia e o direito. Não se trata de conceitos de que
partilhemos na exacta medida em que estamos de acordo sobre os critérios a que
recorremos para identificar exemplos dos mesmos. Nalguns casos, com efeito, o
nosso desacordo sobre os conceitos resulta de usarmos diferentes critérios na
identificação dos exemplos com que ilustramos os conceitos. Em tais casos, não
existe propriamente desacordo sobre os conceitos. Mas, relativamente a alguns
conceitos existe desacordo sobre os conceitos para além do desacordo sobre os
critérios. Trata-se dos conceitos que descrevem valores e em que o nosso
desacordo diz respeito aos próprios valores e ao modo como devem ser expressos.
A raiz do nosso desacordo reside aqui em interpretarmos as práticas em que
figuram tais conceitos de modos diversos. Estamos assim perante desacordos de
valor e não desacordos de facto ou desacordos relativos a significados
convencionados.
Neste
sentido, a moral política depende da interpretação, tal como esta assenta no
valor. Não pode defender-se uma teoria da justiça sem se ser também levado a
defender uma teoria da objectividade moral (p. 8). Dworkin defende «a
independência metafísica do valor» (p. 9). Isto não significa que aceite a
existência, para além das pretensões morais, de propriedades morais
metafísicas, que designa como «morons». Não existe qualquer distinção
significativa entre questões morais – como saber se a justiça exige um serviço
de saúde universal – e questões sobre moral – tendentes a determinar se a
pretensão de que a justiça exige um serviço de saúde universal é verdadeira ou
apenas exprime uma atitude (p. 10).
Se não
existem questões morais de «segundo grau», chamemos-lhes assim, a independência
do valor estrutura-se sobre a interconexão entre os seus diferentes conceitos e
departamentos. Isso acontece, desde logo, porque os conceitos de valor não se
encontram «aí fora», à espera de ser encontrados, como os factos em bruto, mas
antes existem em práticas sociais que carecem de ser interpretadas.
Dworkin
sustenta que nenhuma abordagem filosófica catalogada se ajusta ao seu modo de
ver, porque nenhuma prescinde do falso pressuposto de que «existem importantes questões
sobre valores que não devem ser respondidas através de juízos de valor» (p.
11). Os nossos juízos morais são interpretações de conceitos morais básicos e
testamos essas interpretações ao colocá-las em quadros de valor mais amplos, de
modo a apurar se se ajustam em conjunto e sustentam as melhores concepções dos
conceitos envolvidos.
.
.
Com
estes pressupostos, Dworkin desenvolve os dois princípios do individualismo
ético, que qualifica noutros contextos, designadamente na sua teoria da
justiça, como princípios políticos. O primeiro é um princípio de auto-respeito,
de acordo com o qual cada pessoa deve levar a sua vida a sério, aceitando ser
importante que essa vida seja um sucesso, em vez de uma oportunidade desperdiçada.
O segundo é o princípio da autenticidade: cada pessoa tem uma responsabilidade
pessoal na identificação daquilo que vale como sucesso na sua própria vida (pp.
203-204). Dworkin discute estes princípios no contexto da ética, relativa ao
estudo do viver bem, defendendo ainda uma visão «compatibilista» do
determinismo e do livre arbítrio (pp. 219 e ss.). Seguidamente, passa à moral,
respeitante ao estudo de como devemos tratar as outras pessoas, em que trata,
reconhecendo uma inspiração kantiana, os temas das condições em que é lícito
causar um prejuízo a outrem, das promessas e obrigações, etc. Por último,
fechando o círculo, Dworkin desenvolve uma teoria da justiça, cujos principais
traços foram já expostos.
O
«Baedeker» apresentado pelo autor, bem como o epílogo, fornecem ainda
esclarecimentos sobre o lugar da argumentação desenvolvida pelo autor na
história intelectual. Depois de afirmar que a moral quer dos filósofos antigos,
quer dos filósofos embriagados de Deus da Idade Média, era uma moral da
auto-afirmação, Dworkin sustenta que «o novo regime epistemológico» das Luzes
colocou um problema novo às convicções sobre o valor: desde então, «não temos
direito a pensar que as nossas convicções morais são verdadeiras a menos que
consideremos tais convicções uma exigência da razão pura ou um produto de algo
“lá fora” no mundo» (p. 16). Pois bem, é contra este «novo regime
epistemológico» que Dworkin propõe a sua leitura da lei de Hume: da posição por
este assumida de que de nenhuma proposição sobre o que é se pode seguir uma
proposição sobre o que deve ser, não devem retirar-se consequências cépticas
sobre o conhecimento moral, mas as consequências precisamente opostas, isto é,
«a independência da moral como um departamento separado do conhecimento, com os
seus próprios padrões de inquérito e justificação». Ao contrário do que se
poderia pensar, e pensou, a lei, ou princípio, de Hume «exige-nos que rejeitemos
o código epistemológico do Iluminismo para o domínio moral» (p. 17).
Se Hume
é assim reinterpretado como o fundador da independência da moral em face dos
demais domínios do conhecimento, Kant surge como o unificador da ética e da
moral, ainda que essa unificação tenha de ser salva do horizonte metafísico em
que a encerrou. Aquele a que Dworkin chama o «princípio de Kant», isto é, o
princípio de que «uma pessoa apenas pode alcançar a dignidade e auto-respeito
indispensáveis a uma vida de sucesso se mostrar respeito pela humanidade em
todas as suas formas» é assumido como «um molde para a unificação da ética e da
moral» (p. 19). Essa unificação visa retomar o ideal da Grécia clássica,
aparentemente abandonado pela filosofia moral moderna, segundo o qual a
dimensão ética do viver bem é mais do que satisfazer o desejo de cada um e a
dimensão moral da preocupação com as vidas dos outros é mais do que uma
perspectiva instrumental.
O
projecto de Dworkin abrange dois objectivos: estabelecer a independência do valor,
mas também encontrar um «molde» para a unidade do valor. A ambição do primeiro
objectivo é bem demonstrada pelo modo como Dworkin o encara: a revolução de
Galileu «fez o mundo do valor seguro para a ciência», ainda que cedendo à
tentação de tornar o método da física uma metafísica totalitária; do que se
trata agora é de saber como «pode fazer-se o mundo da ciência seguro para o
valor» (p. 417). Por outras palavras, o projecto de Dworkin é encarado como uma
libertação: «a ética e a moral são independentes da física e dos seus
parceiros: o valor é do mesmo modo auto-sustentado» (p. 418). Quanto ao segundo
objectivo, Dworkin não deixa de ter consciência da diferença entre os dois
ideais éticos: viver bem – isto é, com o mesmo respeito pela importância da
vida dos outros e da sua responsabilidade ética que atribuímos à nossa própria
vida – e ter uma vida boa (p. 419). Podemos viver bem, respeitando a nossa
dignidade e a daqueles que nos rodeiam, sem ter uma vida boa, em virtude da má
sorte, grande pobreza, injustiça, doença grave ou morte prematura. Aliás, uma
riqueza injusta pode ser também um entrave a viver bem, na medida em que obriga
a um maior envolvimento na vida política da comunidade, através do empenho em
assegurar justiça para os seus restantes membros (pp. 421-422). Uma vida boa,
por seu turno, é uma vida não trivial, não desperdiçada. Para além da distinção
entre os parâmetros que permitem a cada um escolher uma vida boa – a sua
cultura, meio social, talentos e gostos – e as limitações – doenças,
deficiências físicas ou mentais, injustiça na distribuição de recursos – que
impedem que se conduza uma vida segundo aqueles parâmetros, é da natureza do
projecto de Dworkin que pouco mais possa ser dito sobre o conteúdo de uma vida
boa (pp. 195 e ss.). Na realidade, os princípios do individualismo ético
prendem-se sobretudo com o viver bem. Isso não exclui, porventura, a
possibilidade de alguém levar uma vida boa sem vivê-la bem…
Miguel
Nogueira de Brito
[1] Justice
for Hedgehogs, The Belknap Press of Harvard University Press, Cambridge,
Massachusetts, e Londres, 2011. Este texto foi publicado como recensão na Revista
Regulação & Concorrência, Ano 2, n.º 7/8, Julho-Dezembro de 2011.
[3] Cf. Isaiah Berlin, “The Hedgehog and
the Fox: An Essay on Tolstoy’s View of History”, in The Proper Study of Mankind: An Anthology of Essays, organizado por
Henry Hardy e Roger Hausheer, Chatto &
Windus, Londres, 1997, p. 436.
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