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quinta-feira, 20 de novembro de 2025

A operação Mar Verde, à luz das mais recentes investigações.



         

          Como observa o investigador José Matos, a Operação Mar Verde, desencadeada em novembro de 1970 por um contingente das Forças Armadas Portuguesas e um agrupamento de oposicionistas do regime de Sékou Touré, foi das mais ousadas levadas a cabo durante toda a guerra colonial. Resta dizer que trouxe terríveis consequências para o Governo de Marcello Caetano, marcou o isolamento diplomático português ao seu nível mais baixo. Há significativa literatura sobre esta operação, inclusivamente José Matos e o investigador Mário Matos e Lemos já se tinham debruçado sobre o assunto. As limitações para investigar são muitas, mas foi possível juntar mais documentação e trazer novas informações a público. A obra intitula-se Ataque Secreto, Operação Mar Verde em Conacri, Guerra e Paz 2025.

As peripécias da operação são por demais conhecidas. Uma força naval portuguesa, em 22 de novembro de 1970, cercou a capital da República da Guiné. De acordo com o plano operacional elaborado por Alpoim Calvão, usou-se a escuridão da noite e desembarcaram vários grupos de tropas especiais em pontos estratégicos da cidade.

Calvão propusera esta operação inicialmente com objetivos mais modestos, foram crescendo depois os objetivos. E da libertação dos prisioneiros portugueses e do afundamento das embarcações do PAIGC, passou a sonhar-se com um golpe de Estado que derrubasse Sékou Touré, de modo que o novo Governo, amigável com o Estado Novo, levasse ao afastamento do PAIGC naquele país, que lhe dava um apoio fundamental. A operação contou com o apoio total de Spínola, Caetano aprovou-a, ministros do seu Governo mostraram radical oposição. José Matos levanta interrogações de peso que hoje nos fazem pensar no que houve de leviano e temerário, faltou uma verdadeira medição dos prós e contras: seria praticamente impossível não associar Portugal ao golpe, até porque havia a possibilidade de capturar Amílcar Cabral (dividem-se os investigadores se não se pretendia acima de tudo a sua liquidação física) o que deixaria Spínola com um problema em mãos; questiona se o aureolado comandante-chefe ficaria mesmo numa situação vantajosa para negociar com o líder dos nacionalistas uma saída pacífica para a guerra de guerrilhas, ou a guerrilha continuaria a lutar; o que seria se houvesse a perda de apoio na Guiné Conacri com a mudança de regime e a captura (ou morte?) de Amílcar, esta mudança levaria a guerrilha a desistir da luta?; e por quanto tempo seria possível manter um Governo desta oposição a Sékou Touré, um Governo do Front de Libération Nationale de la Guinée sem uma intervenção externa ou contra as forças do PAIGC e de Cuba que estavam no país?

São questões cruciais e a historiografia existente passa-lhe ao lado. Inequivocamente, Spínola perdera a ilusão de quebrar a espinha ao PAIGC, depois dos dramáticos acontecimentos de abril passado, com o massacre de uma equipa de negociadores no chão Manjaco. Perdera-se qualquer paridade no armamento, o PAIGC tinha um conjunto significativo de bases territoriais e com controlo administrativo, escolas e hospitais, o projeto de Armazéns do Povo estava em marcha. O Governador e comandante-chefe deste maio de 1968, imprimiu uma nova estratégia, recebeu fundos chorudos, constituiu a sua própria equipa, estabeleceu um plano de abandono de destacamentos, anunciou uma política dominada “Por uma Guiné melhor”, nesse mesmo ano de 1970 apareceram Congressos do Povo destinados a conquistar o apoio das comunidades tribais. Sempre que se desloca a Lisboa e participa nas reuniões do Conselho Superior de Defesa Nacional, fala categoricamente no agravamento da situação, pede mais meios humanos e materiais. Logo na exposição que faz ao Conselho em 8 de novembro de 1968, ficou escrito em ata que “O senhor Governador da Guiné voltou a salientar que é imperativamente necessário evitar que o inimigo atinja a fase de implantação militar em todo o território da Guiné, sob pena de a nossa soberania ficar irremediavelmente perdida”.

Não deixa de ser curiosa a comparação da correspondência de Schulz e de Spínola a pedir meios aéreos mais suscetíveis de fazer recuar a presença dos grupos do PAIGC dentro do território, só em abril de 1974 é que as negociações para a aquisição de aviões Mirage pareciam bem encaminhadas. Acresce que o PAIGC já podia contar com a ajuda cubana e apoio humanitário da Suécia. A presença do PAIGC na República da Guiné era por demais evidente. É então que descobre que havia um movimento de dissidentes da Guiné-Conacri dispostos a derrubar Sékou Touré, foi assim que nasceu a convergência com Alpoim Calvão, este idealizara somente a libertação dos prisioneiros portugueses e o afundamento dos meios navais inimigos.

José Matos faz-nos uma resenha dos antecedentes da Mar Verde, da evolução dos objetivos para a operação, cedo se começou a verificar que a oposição a Sékou Touré tinha imensas fragilidades; os grupos hostis foram sendo recolhidos em vários países e comprou-se armamento soviético sigilosamente na Bulgária; irá comprovar-se que o envolvimento da PIDE não garantiu informações rigorosas quanto à situação e localização de entidades e objetivos; também se esclarece  neste historial do José Matos que havia contactos com os opositores de Sékou Touré desde 1966, os oposicionistas durante muito tempo limitavam-se a pedir uma contribuição financeira e fornecimento de material bélico.

Estamos agora em plena invasão de Conacri, descrevem-se os meios em prémios, as dúvidas suscitadas logo na ilha de Soga, Spínola discursa aos comandos africanos antes da partida e desencadeia-se o assalto, conhecemos já os contornos essenciais de tudo quanto se passou, os meios aéreos da República da Guiné não estavam em Conacri, não encontraram o ditador, Cabral estava ausente de Conacri, falhou a ocupação da emissora, o tenente Januário dos comandos africanos desertou com vinte homens, houve afundamento de meios navais, libertaram-se os prisioneiros portugueses, sofremos baixas ainda que modestas. Ficou comprovado que os meios militares da República da Guiné estavam numa completa desorganização.

Segue-se a tempestade internacional: a condenação na ONU, a URSS oferece os seus préstimos navais, o que irá inquietar a NATO. Em definitivo, Spínola fica convencido da inviabilidade de uma solução militar e irá argumentar nesses termos na reunião do Conselho Superior de Defesa Nacional que se realizou em 7 de maio de 1971, consta na documentação:

“Devemos excluir, de uma vez para sempre, a veleidade de ganharmos militarmente a guerra que enfrentamos, a qual só poderia ser ganha no campo das armas face a uma viragem imprevisível na presente conjuntura mundial. O problema só poderá resolver-se no campo político e quero crer que tal solução ainda se apresenta viável.”

O resto da história já a sabemos: desentendimento entre Marcelo Caetano e Spínola; caminha-se para a exaustão dos meios; o PAIGC recebe mísseis e armamento que lhe permite operar em termos de guerra convencional; a legislação de Sá Viana Rebelo incendeia os ânimos, aos poucos irá constituir-se o Movimentos dos Capitães. Tudo culmina no 25 de abril.

José Matos dá-nos novamente prova das suas capacidades de rigor e assegura-nos uma leitura bastante emotiva.


                                                                                    Mário Beja Santos 

 



sexta-feira, 30 de maio de 2025

A desdita dos comandos africanos da Guiné na labiríntica historiografia pós-colonial.

 

 



Para me licenciar em História, aprendi que esta é a ciência do Homem no tempo, tempo que tem um antes, um durante e um depois, o investigador compulsa a documentação, pode socorrer-se de depoimentos escritos ou orais, em caso algum pode encobrir provas ou manejá-las de modo que a sua narrativa esteja em plena concordância com as acusações que comportam os recados que aparentam corresponder à clara certidão da verdade.

Os fuzilamentos dos comandos guineenses que combateram do lado português continuam a ser matéria fraturante, pasto de trabalhos que no fundo pretendem demonstrar como a nossa descolonização foi caótica, praticou injustiças, deixou um estendal de misérias. Sofia da Palma Rodrigues doutorou-se sobre este tema, ouviu velhos antigos combatentes, responsabiliza as autoridades portuguesas que acompanharam o prescrito pelo Acordo de Argel, e as subsequentes de desleixo criminoso, abandonaram, afinal, à mercê dos rancores do PAIGC homens que tinham sido valorosos a combater pela soberania portuguesa. É uma crítica acintosa, um uso atrabiliário da bibliografia e de diferentes fontes documentais, assim se escreve Por ti, Portugal, eu juro! A história dos comandos africanos da Guiné, por Sofia da Palma Rodrigues, Edições Tinta-da-China, 2024.

De acordo com o que se escreveu nos volumes dedicados à Guiné na Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África, publicados pelo Estado-Maior do Exército, em 1969, o governador e comandante-chefe das Forças Armadas da Guiné, António de Spínola, concebeu uma força especial de comandos e fuzileiros, que deu origem a três companhias de comandos e duas de fuzileiros, as primeiras vieram a agrupar-se no chamado Batalhão dos Comandos Africanos. Fez-se uma seleção por recrutamento voluntário de gente que veio dos pelotões de caçadores nativos, das forças das milícias, sobretudo. Está comprovado que as autoridades do PAIGC, o presidente Luís Cabral e os políticos do seu círculo, foram inteiramente responsáveis pelos crimes perpetrados após a independência, perseguindo, prendendo, torturando e fuzilando elementos dessas forças especiais, tanto dos comandos como dos fuzileiros, e mentindo descaradamente, forjando intentonas ou dizendo nada saber sobre estes fuzilamentos. Nos diferentes livros que escreveu, nas entrevistas que deu, Luís Cabral negou sempre conhecimento dessas matanças. Só que os seus colaboradores têm vindo a escrever que as coisas não se passaram assim. Veja-se o que disse Manecas Santos num livro também publicado em 2024 intitulado Uma biografia da luta, Rosa de Porcelana Editora, página 113:

“Pouco tempo após a independência, talvez por volta de 1976, Luís Cabral foi passar férias à Suécia. No regresso, fez uma paragem em Lisboa. Tinha boas relações com Ramalho Eanes que o convidou para um jantar. Durante a conversa, Eanes falou-lhe de um conjunto de militares, antigos efetivos do exército colonial, que ainda estavam detidos na Guiné. Fez-lhe um pedido: que fossem devolvidos a Portugal, mediante a sua garantia pessoal de que não se envolveriam em qualquer intriga posterior contra o PAIGC ou o Estado da Guiné-Bissau.

Luís concordou. Assim que chegou a Bissau, convocou o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, Umaru Djaló; Nino Vieira ministro do Interior; e António Alcântara Buscardini, chefe dos Serviços de Segurança do Estado. Informou-os sobre o acordo feito com Eanes e solicitou que providenciassem os documentos de viagem necessários para o regresso a Portugal dos militares em questão.

Foi então que Buscardini, com toda a desfaçatez, informou o presidente que os soldados que tinha prometido devolver já tinham sido executados. Ou seja, Buscardini tinha tomado individualmente uma decisão que punha em causa a palavra do chefe de Estado perante um homólogo; e tinha cometido uma violência contra os prisioneiros que teria sido impensável para o PAIGC, mesmo durante as hostilidades da luta armada.”

Esta é a versão de Manecas Santos, acontece que Luís Cabral, por mais uma vez, falou em tribunais e em tentativas de complô feitas pelos comandos, teria sido a justiça a decidir o seu fuzilamento. Como se sabe, não há uma só prova de qualquer envolvimento de comandos e fuzileiros em complôs e sabe-se que os fuzilamentos se prolongaram até finais de 1977.

Esta ilustre doutora diz abertamente ao que vem: “Este livro foca-se na recolha de testemunhos que põem em causa as narrativas oficiais que tanto Portugal como a Guiné-Bissau escolheram contar sobre si, e sobre os relatos de pessoas que foram cuspidas para fora de ambos os projetos políticos.” Por outras palavras, os historiadores, na plenitude andam a mentir. Por vezes diz coisas sem qualquer fundamento, como dizer que o PAIGC dominava já mais de metade do território quando Spínola se viu obrigado a apostar nos militares africanos e a dar-lhe funções de maior importância no Exército. É facto que Spínola apostou fortíssimo nestes comandos, eles foram utilizados para as operações mais arrojadas, fizeram muitas vezes vacilar os guerrilheiros do PAIGC e as populações por ele dominadas. Chegaram a ser cruciais em momentos em que se previa a hecatombe, como no cerco a Guidaje, em que os comandos entraram no Senegal e puseram o PAIGC em pânico, em Cumbamori.

Se esta historiografia pós-colonial servisse para pôr esta situação em pratos limpos, ouvir-se-iam aqueles que estiveram a pôr em execução o Acordo de Argel. A senhora doutora nunca refere as conversações travadas pelo brigadeiro graduado Carlos Fabião com os oficiais e sargentos dos comandos e dos fuzileiros, Fabião já faleceu, mas deixou depoimento do que fez e como fez. Nem uma palavra. O PAIGC aceitou incorporar todas as forças militares que combatiam do lado português, não cumpriram. Naquele vendaval de acusações que a doutora faz ao comportamento das autoridades portuguesas, não há nem uma palavra sobre a atmosfera que se viveu em Portugal, particularmente a partir do 11 de março, em que os spinolistas entraram em debandada. Era igualmente compreensível que na análise da situação concreta que se vivia nas conversações entre as autoridades portuguesas e as do PAIGC, estas apelassem à desmobilização das forças especiais, temiam que com a saída dos portugueses se gerassem focos de guerra civil. Valia a pena que a doutora tivesse procurado a documentação desta época nos arquivos da Defesa Nacional e não se limitasse a dizer que Glória Alves, o 2º comandante do Batalhão de Comandos afirmara que os guineenses tinham retirado o seu nome da lista que fora proposta por Fabião para virem para Portugal, fala também em Florindo Morais, mas diz que estes dois responsáveis não eram capazes de garantir como o processo aconteceu e recorre-se de interrogações: “Foram mesmo todos os que tinham o nome na lista a desistir? Houve alguém a precipitar esta decisão? O que terá levado estes militares a deixarem de querer ir para Portugal?” Será isto maneira de fazer historiografia? Andou a fazer entrevistas aos comandos africanos e esta questão não era importante?

Chegámos por fim ao mau da festa, Almeida Santos, que escreveu e promulgou o Decreto-Lei n.º 308-A/75, de 24 de junho, que previa que só conservariam a nacionalidade os cidadãos portugueses nascidos em África que tivessem pais, avós ou bisavós com linhagem europeia goesa. Nem uma palavra para a avalanche de retornados que começavam a afluir, nenhum partido político ao tempo contestou a necessidade desta legislação e, como é sabido, daí por diante, nenhum governo alterou a essência deste princípio da nacionalidade. É facto que se devia ter a seu tempo agido em nome do artigo 25º do anexo do Acordo de Argel, mas, como também é sabido, é assunto face ao qual nenhuma governação quis tratar por via diplomática pelas autoridades da República da Guiné-Bissau, a partir da Resolução do Conselho de Ministros nº18/83 em que se definiu que o pagamento das pensões seria transferido para o Estado da Guiné-Bissau, em troca Portugal perdoaria uma dívida de juros vencida no valor de 200 milhões de escudos. O que será que a senhora doutora queria, que cortássemos relações com a Guiné-Bissau por não cumprir com o estipulado?

Fuzilamento de comandos guineenses matéria fraturante? Sim, enquanto faltar historiografia que busque com rigor o tratamento das fontes e trate com a devida prudência as lacunas e omissões da História oral. Livro que não convence.

 

                                                                                     Mário Beja Santos


quarta-feira, 28 de maio de 2025

Obra de referência sobre os últimos anos do colonialismo português.

 



 


 

Publicado em novembro de 2024, pela Bertrand, Crepúsculo do Império, Portugal e as guerras de descolonização, coordenado por Pedro Aires Oliveira e João Vieira Borges, este volume de quase oitocentas páginas, que reúne a colaboração de mais de três dezenas de autores, destina-se a familiarizar o público com algumas das investigações mais inovadoras acerca das guerras coloniais de Portugal. Beneficia, naturalmente de avanços historiográficos facilitados pela abertura dos arquivos portugueses. “Instituições como o Arquivo Histórico Militar e o Arquivo da Defesa Nacional têm recebido, nos últimos anos, significativas incorporações, e funcionam segundo normas que, em geral, se alinham com as políticas de acesso arquivístico mais abertas no plano internacional. Como a história das guerras coloniais não se cinge apenas à sua dimensão militar e operacional, outros arquivos têm sido procurados pelos investigadores, com destaque para os acervos depositados nos Arquivos Nacionais Torre do Tombo e nos Arquivos Histórico-Diplomático e Histórico-Ultramarino. A isto teremos também de acrescentar toda uma pletora de arquivos internacionais, que tanto inclui os antigos aliados ocidentais de Portugal como os de vários ex-satélites da URSS que a partir de 1990 adotaram regras mais abertas no tocante aos acervos dos seus serviços diplomáticos e de inteligência (como a República Checa), ou a constelação de países do agora chamado Sul Global que desempenharam papel de relevo na solidariedade e apoio aos movimentos independentistas das colónias portuguesas”.

Vejamos, em síntese, a estrutura da obra. A primeira parte intitula-se “Enquadramento”, aqui se procura estabelecer um quando contextual das guerras coloniais portuguesas em termos políticos, estratégicos e militares; a segunda parte denomina-se “Economia e Sociedade”, aqui explora-se a dimensão económica das guerras e os seus impactos sociais; a terceira parte obedece ao mote “Mobilização, Luta e Propaganda”, procura familiarizar os leitores com diversos aspetos da conduta do conflito, numa visão que procura conciliar uma abordagem analítica e algum sentido cronológico; “Dor e Sofrimento” é a quarta parte, aqui se enunciam os aspetos mais dolorosos do conflito, aqueles que resultam das baixas em operações militares, atrocidades, situações de cativeiro. A quinta e última parte é “Fim do Império”, são duas sínteses sobre as vicissitudes deste processo, primeiro na metrópole e em África, e depois nos territórios onde o nível de empenhamento militar português foi comparativamente menor do que em África, mas nem por isso menos gerador de consequências dramáticas, basta recordar Timor.

Sendo totalmente inviável alargar comentários a todos os diferentes comentários, vejamos, a título meramente ilustrativo o modo como os investigadores abordaram certos temas:

“Insistir na tese da vitória traída pode ser politicamente conveniente ainda hoje, mas é insistir em não querer perceber que uma guerrilha não ter por objetivo uma vitória convencional. Ela aposta na atrição prolongada da vontade de combater de um inimigo à partida muito mais forte. As guerrilhas independentistas sabiam não ser realista, nem tiveram como objetivo marchar sobre Lisboa, Paris ou Londres, pois não precisavam disso para atingir o seu objetivo estratégico: transformar o colonialismo num ativo tóxico na política internacional e demasiado custoso em vidas e despesas para ser viável a prazo na política interna das potências colonizadoras.”

“Ponto determinante foi a incapacidade de o poder político transmitir às suas Forças Armadas o que pretendia delas, isto é, o que considerava uma vitória e qual o seu objetivo. Esta incapacidade está plasmada nas cartas de comando entregues pelo Governo aos generais quando os nomeava comandantes-chefes. São todas elas idênticas e do tipo de ordens gerais: manter a ordem no território, colaborar com as autoridades civis e assegurar a relação pacífica entre os habitantes. Com esta latitude de objetivos cada general deduziu a sua missão. E daí cada um ter agido de acordo com a sua análise.

A perda da vontade de combater é uma das condições para o fim de uma guerra. Os capitães preferiram derrubar o regime, antes que o regime fizesse dele os bodes expiatórios da sua incapacidade, como acontecera na Índia. Preferiram defender o seu povo antes que o regime levasse o povo à exaustão.

O 25 de Abril de 1974 também resulta do sentimento de desconfiança dos militares relativamente ao poder político da ditadura do Estado Novo e dos seus dirigentes.”

No ensaio dedicado à estratégia e liderança do Conselho Superior de Defesa Nacional, abordando-se a situação na Guiné no período que vai de novembro de 1969 a maio de 1973, escreve-se:

“A situação na Guiné era a mais crítica. Na reunião de maio de 1971, Spínola deixou claro não ser possível vencer militarmente, levantando forte oposição dos ministros da Defesa e do Ultramar, que preconizavam a possível solução política teria de ter uma vitória no campo militar. Para Spínola, a solução ultrapassava largamente a possibilidade de uma vitória militar, e apenas no quadro de uma plataforma diplomática e política era possível encontrar uma solução de fundo para a Guiné. Qualquer solução que fosse orientada para a vitória militar tinha apenas como consequência e exaustão de recursos humanos, materiais e financeiros. Sem demonstrar aberta concordância com Spínola, Caetano considerava que o esforço financeiro suportado era muito elevado e não tinha a certeza de que a economia do país pudesse continuar a suportá-lo por muito mais tempo.”

Abordando a condição em que ficaram os combatentes africanos que tinham sido leais a Portugal, vejamos o que se escreve sobre a Guiné:

“O elevado número de guineenses ao serviço de Portugal, a sua reconhecida destreza militar, e a própria notoriedade alcançada por muitos deles num território com aquelas dimensões, tornava o PAIGC particularmente receoso quanto à desmobilização daqueles elementos. O seu desarmamento começou a ser feito a partir de 19 de agosto, imediatamente após o acordo de independência, sob a supervisão do brigadeiro Carlos Fabião. Esse processo deveria ter lugar contra o pagamento de seis meses de salário e uma guia de marcha que habilitaria os antigos combatentes a apresentarem-se ao serviço nas Forças Armadas do Novo Estado, a partir de janeiro de 1975. A possibilidade de os militares guineenses das Forças Armadas portuguesas, na qualidade de cidadãos da República da Guiné-Bissau, serem elegíveis para o pagamento de pensões de sangue, invalidez e reforma por parte do Estado português estava previsto no Acordo de Argel, mas nos anos seguintes nenhum programa completo para concretizar essa promessa seria implementado. A queda em desgraça do setor spinolista da Revolução, na sequência dos acontecimentos do 11 de março de 1975 em Lisboa, trouxe graves consequências para estes elementos, particularmente para os que se tinham distinguido em unidades de operações especiais. Os serviços de segurança do novo Estado, organizados por elementos formados na URSS, RDA e Checoslováquia, terão sido instrumentais na identificação e eliminação de vários ex-comandos. Dados revelados em 1980, mencionam 53 fuzilamentos ocorridos em 1965, mas as matanças conheceriam um novo pico em 1978, a propósito de rumores que apontavam para o envolvimento de antigos elementos do Exército colonial num alegado golpe de Estado liderado por Malam Sanhá, um ex-comando.”

Livro essencial, portanto.

 

                                                        Mário Beja Santos


quarta-feira, 7 de maio de 2025

No nosso império com pés de barro ninguém voltou da guerra inteiro.

 


 

O que empolga na cadência deste romance é a estuante singeleza pontuada pela multiplicidade de ritmos literários, engrena-se numa prosódia que nos faz lembrar o que de melhor se escreveu no neorrealismo e na espiral da escrita dominam marcações expressionistas e até uma poderosa metáfora em desacerto com a cronologia da narrativa, pois aparece inaugurada a maior ponte suspensa da Europa, ali no vale de Alcântara e a sair em Almada, e segue-se uma convulsão que, bem vistas as coisas, é o anúncio de uma revolução com algumas analogias com a que tivemos em abril de 1974. Este primeiro livro de Nuno Duarte, coroado pelo Prémio Leya 2024, mais do que o despertar de um escritor é uma apoteose ao fervor da leitura.

Tudo se vai passar na década de 1960, os protagonistas nem chegam à categoria de gente remediada. Victor Tirapicos teve dois anos na prisão porque roubou havendo fome, saiu de um lugar de Sintra e veio para a Alcântara, para o Pátio do Cabrinha, é acolhido por um tio sapateiro, alguém que faz as chuteiras do Atlético Clube de Portugal, o Victor dar-se-á bem com o tio Artur e a tia Ema. Ali no Pátio vive gente que tem nome, tal como a Cesaltina e a Cordália, o Manuel Cheirinho, o Ângelo Barraquinho, o Rui Folha e dentre em breve uma rapariga muda que trabalha na fábrica do chocolate Regina. Victor vem à procura de trabalho, vai ser construída a ponte sobre o Tejo, os norte-americanos estarão profundamente envolvidos, trarão 70 mil toneladas de aço e tecnologia de ponta. Já estamos com a guerra colonial em Angola, far-se-á a ponte e nessa altura haverá três frentes da guerra. Victor tem muito enlevo no seu irmão Quim, tudo fará para que o mano chegue à universidade. As relações com o pai ficaram estragadas, não perdoou ao filho aquele roubo de batatas.

Entra em cena a menina dos chocolates Regina, chama-se Dália, é muda, comunica com o que escreve numa pequena sebenta. O Victor trouxe a experiência de anos numa serralharia da Abrunheira, será admitido nos trabalhos da ponte. A atração Dália-Victor é rápida e pujante, circulamos por tudo quanto é Pátio do Cabrinha, vai crescendo o clímax para os trabalhos da construção, e haverá momentos em que Nuno Duarte nos consegue assombrar com a saga de tal empreendimento, escrevendo coisas como esta:

“A grandiosa obra entrou numa fase decisiva, todos os dias os cabos principais eram esticados de margem a margem, desenrolados em bobinas com sem quilómetros de fio de uma ancoragem à outra, aos quatro fios de cada vez, a roda a levá-los para um lado e depois a voltar, a trazer outros quatro, como se fosse uma roca de fiar gigante, e a deixá-los no local certo onde eram postos junto dos restantes por operários como o Victor e como o Vicente e como o Ivo e como o Tito, lá em cima no passadiço onde o João quase ficara sem mãos. Mais de duzentos operários por turno, espalhados ao longo do cabo, ao longo da ponte sem nome que se construía sobre o rio Tejo. Dois turnos por dia, dezasseis horas a levar e a trazer fios que, todos juntos, formavam os cabos da ponte, em pouco mais de três meses estavam os milhões de fios unidos, a máquina humana que construía a ponte estava afinada como um instrumento de precisão, os muitos homens que eram os seus componentes, operários, técnicos e engenheiros funcionavam com a cadência de um metrónomo. E, lá em cima, o Victor mirava o mundo.”

Há taberna e há bêbedos, a PIDE anda atenta, irá buscar o Rui Folha. As obras da ponte atraem meio mundo, os norte-americanos pagavam bem, naquele final de 1962 já ali trabalhavam 1500 homens, ficaremos embrenhados por este cenário em que o estaleiro era um imenso labirinto de barracões e material, há cada vez mais gente, há mesmo um Lenine e um João Pança, este é eletricista e veio de Niza, viverá uma experiência que podia ter dado um acidente mortal, Victor é analfabeto, mas vai encontrar quem lhe ensine as primeiras letras, o Ângelo Barraquinho.

Não faltam cenas canalhas, Tito Brandão, esteve na prisão com o Victor, procura atrair este para uma roubalheira, Victor recusa, haverá na ponte um roubo de monta, terá um enorme peso no desfecho do romance. Iremos ao campo do Atlético vê-lo jogar com o Belenenses, entra um biltre em cena, chama-se Josué, é sucateiro, saberemos mais tarde que é um monstro, aparecerá também no desfecho do romance. De vez em quando aparece ali o almirante Américo Thomaz, o tal Presidente da República corta-fitas, a obra cresce, o pai do Victor cada vez mais doente, não perdoou ao filho, mesmo nas vascas da agonia. Victor e Dália casam-se na conservatória, e começa a latejar forte na narrativa aquela guerra colonial, aqueles barcos pejados de militares que partem e chegam. Há tragédias na ponte, gente que morre, ninguém pode sobreviver daquelas quedas. A atmosfera do país é aqui retratada a corpo inteiro no olhar desta gente que se organizou como proletariado urbano naquele vale de Alcântara que começa a ter sumiço, a ficar deformado pelos imensuráveis arruamentos que conduzem à ponte, que põem fim aos negócios do tio Artur que tem cada vez menos meias solas para tirar.

A tragédia familiar vai focar-se no Quim, aquele mano tão amado por Victor, não continuou os estudos, partirá para a guerra, isto enquanto a ponte cresce. A guerra é um sorvedoiro de gente, Nuno Duarte entremeia com mestria a espiral da guerra inútil com todos os preparativos daquela ponte ter o nome de Salazar, há de premeio chuvas diluvianas e o Quim lá anda pelo norte de Moçambique, não com uma Mauser, mas com uma G3, é atirador especial, os habitantes do vale de Alcantâra foram escorraçados à força das barracas onde viviam, vão desaparecendo o Casal Ventoso e outros lugares que eram verdadeiros esgotos.

E temos um final apocalítico, haverá um cataclismo na inauguração da ponte, em 6 de agosto de 1966. Tudo irá mudar em Portugal, é a mensagem radiosa, seguramente metafórica de um regime que se colapsa e de Forças Armadas triunfantes. E é a hora de deixar uma derradeira mensagem: “Para ter justiça, não basta a esperança nem um partido que se utilize dela no nome, é preciso vontade, pois esperança sem vontade é coisa nenhuma. É a vontade que fará deste, talvez, um país melhor, mais justo, mais livre, mais próspero. Talvez um dia Portugal seja isso tudo, um país enfim moderno, com pontes, mas sem pés de barro. Haja esperança.”

Um belíssimo romance, é inevitável acreditar que temos um grande escritor na calha.

 

                                                            Mário Beja Santos

 


quinta-feira, 3 de abril de 2025

Um comandante do PAIGC, o homem dos mísseis Strela e de Guidaje, vem depor para a História.

 



 

Tirando o acervo documental, felizmente e em grande parte conservado e tratado, de Amílcar Cabral, para além das suas obras de cariz ideológico na luta anticolonial e como líder revolucionário, restam-nos poucos depoimentos de responsáveis do PAIGC, tanto no que se refere ao período da luta armada como nos tempos posteriores. Há uma primeira obra de Aristides Pereira, para a qual concorreu Leopoldo Amado, uma segunda também deste alto dirigente entrevistado pelo jornalista José Vicente Lopes, desta feita mais disponível e quebrando sigilos do passado; há o testemunho de Luís Cabral sobre a obra do irmão, a par do seu percurso dentro do PAIGC, biografia e hagiografia; temos igualmente testemunhos de dirigentes ou quadros do PAIGC de origem cabo-verdiana ou guineense, mas o cabal esclarecimento que comportam é diminuto, alguns deles  têm até a particularidade de serem de pura vanglória ou procurarem trazer justificação às tragédias de governação a partir de 1974 (das quais eles não têm qualquer responsabilidade).

O que Rosário Luz vem procurar neste trabalho biográfico (ou autobiográfico?) sobre Manecas Santos é procurar revisitar a viagem de uma sigla, revelada efémera, sobre a unidade Guiné-Cabo Verde, contando com um ator de eleição, o então jovem cabo-verdiano Manuel Maria Monteiro Santos, nascido na cidade de Mindelo, em ambiente burguês, tendo estudado em Lisboa e daqui partido para a luta, preparando-se em Cuba, e depois, degrau a degrau, galgando a hierarquia e assumindo responsabilidades nomeadamente no período histórico de 1973, quando o aparecimento dos mísseis Strela abanaram fortemente a última supremacia que restava às Forças Armadas na Guiné; viagem que se prolonga com o seu desempenho no poder do Estado, como chegou a ministro da Economia e das Finanças e vem agora depor sobre o colapso do Estado. Temos, pois, Manecas Santos na primeira pessoa, em jeito de prólogo fala da sua chegada à Guiné em 1968, como fez a tarimba, com quem combateu e aonde, em 1971 passa a ser comandante de um corpo de Exército e no ano seguinte, tendo voltado de treinos em antiaéreos na Crimeia, irá assumir o comando militar na frente norte.

Fala-nos do Mindelo, da família e do meio; concluído o liceu em S. Vicente, vem para Lisboa, estuda na Faculdade de Ciências, refere-nos os estudantes africanos, em 1964 parte para Paris, daqui segue para Argel, depois Havana, confessa que a intensidade do treinamento físico foi implacável e que, fisicamente, a guerra na Guiné não foi mais do que um passeio. Descreve o Exército de Libertação e como ele foi concebido por Amílcar Cabral. “Cabral cuidava pessoalmente da formação de todas as unidades do Exército. Era ele quem escolhia o comandante, o segundo oficial e organizava toda a estrutura. Apesar da sua baixa estatura, emanava autoridade, e quando era necessário impor-se, fazia-o sem titubear. No entanto, possuía uma natureza afável e um trato agradável. Mantinha uma relação de extrema proximidade com os soldados, chamando cada um pelo nome e visitando frequentemente as bases para verificar o andamento das operações.” Menciona o recrutamento dos guerrilheiros, como o trabalho de mobilização foi encetado no Sul. Alude à organização tanto do Exército como o papel das milícias, o apoio dado pela União Soviética, observa a importância da medida tomada no I Congresso em que o poder miliar ficou subordinado ao poder político. E deixa-nos uma descrição detalhada de como se processou a guerrilha na Guiné, esta foi o palco das mais violentas das guerras coloniais. É neste preciso instante que Manecas Santos nos traz a primeira inverdade: em meados de 1968, cerca de dois terços do território já estavam sob a administração do PAIGC.

Há cerca de 18 anos à porfia no que concerne a História da Guiné Portuguesa e a História da Guiné-Bissau, tenho-me deparado com mitologias e mentiras cujos autores teimam em franco despudor reincidir. O doutor Carlos Lopes, a quem devemos estudos de alto significado, escreveu que na Operação Tridente o PAIGC tinha abatido 500 militares portugueses; o historiador português Rui Ramos veio dizer que em 1970 o PAIGC tinha sido sustido, já não tinha bases na Guiné, vinha do exterior, flagelava e retirava – pergunta-se como é que é possível uma tirada destas quando possuímos a história das campanhas da Guiné que demonstram inequivocamente que nesse ano de 1970 íamos aos mesmo santuários em que PAIGC estava instalado há anos, e com pouco sucesso.

Inevitavelmente, falará da operação de cerco a Guidaje e da resposta das tropas portuguesas enviando um batalhão de comandos africanos até uma base do PAIGC em Cumbamory. Dirá: “Sofremos baixas absolutamente negligenciadas: cinco feridos e nenhum homem morto. O exército colonial sofreu baixas pesadas. O adversário deixou 16 cadáveres em campo, todos de comandos africanos.” Desse-se Manecas Santos ao cuidado de investigar o que sabemos sobre tal operação, teria ido ao Arquivo da Defesa Nacional, onde existe um registo das transmissões portuguesas que interferiram nas transmissões de Cumbamory para Conacri, onde se diz abertamente que as forças do PAIGC tiveram um número de mortos superior a 60…

Quanto ao assassinato de Cabral, é contido, não fala nem na PIDE nem em Spínola, dirá que foi praticado por ilustres desconhecidos, está certamente esquecido que o embaixador de Cuba em Conacri, Oscar Oramas, chegou pouco depois ao local do crime, e escreveu mais tarde que viu Osvaldo Vieira, entre outros, a esconder-se atrás da vegetação; acontece que esses ilustres desconhecidos ameaçaram todo o grupo cabo-verdiano de morte, deram-lhes ordem de prisão, enquanto se dirigiam para Sékou Turé. Acontece que não existe nenhum documento que comprove qualquer propósito de Spínola ou da PIDE para induzir tal assassinato. Mas convém deixar sempre no ar de que o complô tinha o braço longo de Spínola e dos seus infiltrados.

Reconheça-se a importância do seu depoimento na época do pós-Cabral, dá-nos um retrato da multiplicidade de contradições dentro do PAIGC e da sua ocupação do Estado, relata o definhamento ideológico, fala da sua atividade como ministro e quantos aos fuzilamentos praticados pelo PAIGC, dirá algo de surpreendente, que talvez por volta de 1976 Luís Cabral jantou com Ramalho Eanes em Belém, e este ter-lhe-á pedido que fossem devolvidos a Portugal antigos efetivos do exército colonial, Cabral Terá concordado, convocou altos responsáveis, entre eles António Alcântara Buscardini, chefe dos Serviços de Segurança do Estado e este, com toda a desfaçatez informou Cabral que os soldados não podiam ser devolvidos porque já tinham sido executados, tinha tomado individualmente tal decisão, Cabral engoliu a afronta. A história seguramente estará na desmemória de Manecas, haverá fuzilamentos, que estão devidamente registados até dezembro de 1977, e há que perguntar como é que é possível um chefe de segurança andar a praticar matanças sem o presidente saber. Nino Vieira será uma rábula parecida depois de 14 de novembro de 1980, manda abrir as valas de gente executada, ele que era primeiro-ministro, também não sabia…

Um testemunho para juntar ao de outros líderes do PAIGC, impõe-se como um retrato fiel do desmoronamento do Estado, onde Manecas Santos foi elemento preponderante. 


                                                        Mário Beja Santos




sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

São Cristóvão pela Europa (299).

 

 

Na Região francesa de Hauts de France, Fieulaine é uma pequena comuna no departamento de Aisne.

Junto à estrada D 13, existe um cruzeiro contendo uma imagem de São Cristóvão.

 


 

A comuna de Neuve Chapelle pertence ao departamento Nord de Calais.

Tem um significado particular na História de Portugal.

A cem metros do limite da comuna de Neuve-Chapelle, já na comuna de Richebourg, situa-se o cemitério militar que acolhe os portugueses que tombaram nos campos de batalha da I Guerra Mundial nomeadamente em La Lys.

 



A Igreja Matriz da localidade é dedicada a São Cristóvão e por isso tem uma imagem do nosso Santo:




Mas esta igreja interessa a Portugal por outra razão.

Aqui se encontra exposta uma réplica (restaurada) do célebre Cristo das Trincheiras de Neuve-Chapelle.

Símbolo dos sofrimentos dos soldados portugueses durante a I Guerra Mundial, o Cristo das Trincheiras foi conservado por eles nas suas trincheiras. Foi trucidado e mutilado pelo fogo inimigo até ao fim da guerra em 1918.

Em 1957, o original foi oferecido a Portugal como reconhecimento pelo sacrifício dos soldados portugueses e colocado junto dos túmulos dos soldados desconhecidos na Sala do Capítulo do Mosteiro da Batalha.

 




 

                                 Fotografias de 5 e 6 de Outubro de 2024

                                                                            José Liberato



segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Os desastres da guerra e do amor, fidelidade e desilusão política.

 



Logo ficamos a saber que é um foragido, saberemos depois que conheceu as crueldades da guerra, será sempre uma guerra indeterminada, reencaminha-se, na sua deserção, para os locais da sua origem, aparece-nos literalmente exausto, emporcalhado, numa natureza áspera, em que a montanha rumoreja, o vento atravessa os cumes, desce para a comba e vibra entre os arbustos, a sua ânsia é chegar ao casebre que o protegerá como na infância. E saltamos para outra história, estamos em Berlim, no dia 11 de setembro de 2001, num cruzeiro de nome Beethoven, ali decorrerá uma conferência, as Jornadas Paul Heudeber, um famosíssimo matemático alemão, desaparecido em 1995, não se sabe se por acidente ou suicídio. Este matemático vivia na Berlim da RDA, por inteira convicção política, a sua amada, Maja, vivia em Bona, trabalha junto de Willy Brandt, o chanceler social-democrata. A correspondência entre as duas Alemanhas é de uma extrema beleza: “És o selo de tudo, única. O teu afastamento aproxima o infinito. Só tu me permites escapar ao tempo, ao mal, aos fluxos da melancolia.” Somos apresentados aos participantes do evento científico, sempre no rio Havel, para ele convergem alguns dos nomes mais sonantes da matemática à escala mundial. Voltamos ao desertor, ele caminha no rumorejar obsessivo da montanha, lá em cima as manchas pretas dos aviões que descarregam bombas em terras longínquas, o mar não está longe, está sedento e esfaimado, a barba é rude como a casca da árvore, passou por um desfiladeiro, a casa está ali em baixo, à direita. Assim arranca este espantoso romance intitulado Desertar, por Mathias Enard, Prémio Goncourt 2015, Publicações Dom Quixote, 2024.

Mudamos de tempo e lugar, em 2021 a guerra parece próxima, entra em cena Irina, filha de Maja e Paul, nasceu em 1951, a RDA acabava de cumprir dois anos. Paul ganha notoriedade internacional com a sua obra As Conjeturas do Ettersberg, escrito acerca da sua detenção no campo de concentração de Buchenwald, o livro deu a volta ao mundo, terá sido a única obra de matemática com a categoria de bestseller. Parece caber a Irina a missão de revelar ao leitor o amor de Maja e Paul, compete-lhe procurar interpretar esse tempo da ascensão do nazismo até ai colapso dos estados comunistas e por onde pairou a paixão ardente daquele casal onde o amor aplacava as dissidências políticas.

O desertor mata a sede, lava o corpo em água gelada, chega uma intrusa com um burro, vão começar as vicissitudes de dois sobreviventes. Voltamos às jornadas no Havel, Irina dá-nos conta das convicções do seu pai, acreditava piamente na agonia do imperialismo, escrevendo mesmo a Maja: “Berlim Ocidental é um prego na sola do sapato de Khrushchov. Prefiro pensar com orgulho que o socialismo mostra a cada dia a força desse coração, o poder dessa Europa, e que, em breve, será essa poça de capitalismo que é Berlim Ocidental que irá secar sozinha. Desertor e a recém-chegada e o burro ali estão, na solidão da montanha, o desertor ainda pensou em usar a arma, agora medem-se, algo os irmana, “a guerra fez tudo voltar ao zero, apagou tudo aplainou tudo limou tudo, os automóveis calcinados nas valetas das estradas os aviões manchas no poente um zumbido um assobio e tudo arde nos gritos da derrota.” Voltando à correspondência amorosa, Paul escreve a Maja em 1961, chegou o muro de Berlim: “Construímos uma barricada contra o fascismo. Em betão e numa noite. Ou pouco mais. Agora somos grandes e invencíveis – claro, o lado ocidental está cercado e vencido. Tudo depende da forma como considerarmos este conjunto; o princípio do infinito é que este contenha sempre uma quantidade maior.” E de novo nas jornadas, Maja está flamante, isto a par de uma chuva diluviana que caiu para os lados daquela montanha em que o desertor e a sobrevivente se irão confrontar. A memória de Irina é imparável, recorda-nos a história da matemática, o entusiasmo do pai pelo socialismo que ele pensa que está a ser instaurado na RDA. Lá para aquela montanha perto da Rocha Negra, o desertor trata da sobrevivente, e a memória de Irina faz-nos cair em cheio em Buchenwald, pelas cartas amorosas iremos também saber que fugiram aos nazis, encontraram acolhimento em Liège, a Gestapo recambiou-os para a Alemanha, o desertor trata carinhosamente a sobrevivente, na correspondência amorosa Paul escreve: “Maja meu amor venceremos, temos a força do círculo, a do triângulo retângulo sem o qual não existe o círculo, sólidos como dois anéis um dentro do outro, a invariância do campo da paixão. Mando esta carta para Norte. Enfio-me dentro dela como um génio na lâmpada. Se sussurrares abracadabra com carinho e esfregares o papel muito devagar contra o peito, eu apareço.”

Um acontecimento histórico deita for terra a realização das jornadas no rio Havel, a televisão mostra as imagens de um avião a despenhar-se numa nuvem de fogo, corpos a cair das janelas, as Torres Gémeas desmoronam-se, à volta da mesa os cientistas falam do que aconteceu na Europa, há uma instabilidade que se avizinha, um tanto indefinível. O desertor pensa partir sozinho, hesita, ir-se embora abandonando-a indefesa e tão doente em matá-la. E naquele dia de setembro de 2011, percorremos um tanto a história da Europa e a história da matemática, há até um estranho participante nas jornadas, de nome Isidro Baza que conta publicamente como Paul e ele viveram aqueles anos 1940.

Desertor e sobrevivente e um burro muito doente encaminham-se para uma fronteira próxima, observam o despenhadeiro da Rocha Negra. Destes dois caminheiros sabemos que ele acendeu uma fogueira, colocou pedras planas e preparou uma fogueira para preparar as trutas que apanhou no rio, a sobrevivente está agitada, ainda desconfia do desertor e até lhe passa pela cabeça matá-lo. Agora há lembranças de 1995, quando a guerra chegou ao fim na Bósnia, onde Paul morreu afogado aos 77 anos. De Nova Iorque, um ilustre matemático que comparecera às jornadas do rio Havel, Linden S. Pawley escreve a Irina, estamos em maio de 2012, carta confessional, ele e Maja tinham tido uma relação ocasional, volta ao passado, há fuga para a Bélgica em maio de 1940, eles fugitivos, há uma denúncia, segue-se Buchenwald. “Querida Irina, não me julgues. Não nos julgues. Achei importante escrever-te, antes de tudo acabar no esquecimento.” Temos agora uma carta de Paul envelhecido: “Maja, meu amor. A matemática é um véu pousado sobre o mundo, que se ajusta às formas do mundo, para o envolver completamente; é uma linguagem e é uma matérias, palavras numa mão, lábios num ombro; a matemática arranca-se como um gesto rápido: podemos ver então a realidade do universo, podemos acaricia-la como o gesso dos moldes, com as asperezas, as saliências, as linhas, sejam elas de fuga ou de vida. Esse véu, essa toalha sobre o mundo, também é a mortalha na qual me envolvo quando chega a hora de ir embora.”

É neste carrossel de múltiplos tempos e lugares que Irina vai a caminho de Ettersburg, perto de Weimar, é nisto que aqueles fugitivos se deparam com três soldados, há quem queira abusar da sobrevivente, no desespero ela espeta-lhe uma agulha no olho, estamos já em 2021, há bombardeamentos russos na Rússia, Irina imagina o seu pai a escrever uma parte da sua obra em Buchenwald.

É uma obra prodigiosa, talvez uma metáfora sobre as diferentes guerras que endemoninham a Europa, é uma escrita esplendente de um escritor cultíssimo, e é preciso ter muito talento para gerar esta tensão no leitor com a história justaposta de dois destinos aparentemente sem relação um com o outro. 


                                                                Mário Beja Santos




quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Angola, 1961, começou a defesa do Império: Documentação e análise de um rigor dificilmente atingível por um só investigador.




O historiador Valentim Alexandre dá-nos conta neste seu trabalho de arromba o propósito da obra: “Sendo totalmente autónomo, este livro inscreve-se num projeto mais vasto, que visa fazer o estudo da última fase do colonialismo português. Noutro volume, intitulado Contra o Vento, seguimos a evolução do Império, após a Segunda Guerra Mundial, até 1960 – um período caracterizado pelo movimento de descolonização que, com incidência primeiro na Ásia e depois em África, levou à desagregação dos sistemas coloniais europeus. A exceção foi Portugal, que tomou nesta fase um rumo divergente, resistindo aos ‘ventos de mudança’. O livro depois publicado – Os Desastres da Guerra – Portugal e as Revoltas em Angola (1961 – janeiro a abril) – tem como centro a análise das três convulsões que, em começos de 1961, em zonas geográficas diferentes, abalaram o domínio colonial em Angola – a revolta da Baixa de Cassange, de janeiro a março; o assalto às prisões de Luanda, em fevereiro; e a insurreição no norte do território, a partir de 15 de março – assim como das suas repercussões em Angola e na metrópole. O presente volume retoma o fio dessa meada em que, a 13 de abril, o Presidente do Conselho, Oliveira Salazar, vencido o golpe de Estado conhecido por Abrilada, assumiu a pasta da Defesa, fazendo-se desde então a mobilização do contingente geral do Exército para combater a insurreição angolana.”

Nesse dia 13 de abril, Salazar dera início à remodelação governamental, num breve discurso anuncia que se irá avançar para Angola, rapidamente e em força. A opinião pública ignora que houve uma tentativa de golpe de Estado, quem promovia alterar o curso dos acontecimentos era um movimento encabeçado pelo próprio ministro da Defesa, Botelho Moniz, escrevera-se a Salazar uma carta, falava-se em situação angustiosa e em breve insustentável das Forças Armadas, havia que restituir ao país as liberdades essenciais, entre outros argumentos. O ditador não desconhece que há sinais de ebulição nas colónias africanas, a Guiné está cercada de países independentes, o Congo deixou de ser belga, há crise na Federação das Rodésias e da Niassalândia, os efetivos militares portugueses são mínimos, mas outras colónias conhecem surtos nacionalistas e há pressões para a sua anexação no Estado da Índia. Adriano Moreira é o novo ministro do Ultramar, é nesse período dramático que ele se dirige a Angola, percorre as zonas em turbilhão, discursa, anuncia reformas, publica diplomas, não são medidas de fundo, e o ministro sabe perfeitamente que não pode contar com grandes aberturas por parte de Salazar, a rutura virá no ano seguinte.

Reocupa-se em termos militares o norte de Angola, os primeiros batalhões e outros contingentes são deslocados para os locais onde houvera massacres, e onde os próprios angolanos tinham fugido face às atrocidades da UPA, que, demonstradamente, não trazia preparação para lutar em termos de guerrilha. A questão angolana é analisada na ONU, o regime de Salazar descobre que nem os Estados Unidos estão do seu lado e há velhos aliados que se abstêm nas votações, a favor só se manifestam a África do Sul e a Espanha. A propaganda portuguesa exibe os massacres e monta um discurso que ganhará perenidade: os terroristas vem de fora, são apoiados pelos comunistas, Portugal passou a estar na vanguarda da defesa do Ocidente. E, contudo, os velhos aliados continuam a fazer bons negócios e a dar ajudas a Portugal.

Valentim Alexandre disseca a essências das reformas, procura-se acabar com o trabalho forçado e com as monoculturas de entidades estrangeiras. Cedo se percebe que era necessário revogar o Estatuto do Indigenato, para ter um mínimo de credibilidade a nível internacional. Discute-se a integração económica do espaço português, o autor disseca o relacionamento da UPA com o MPLA (este ainda tinha um papel extremamente tímido na alvorada da luta armada e a UPA beneficiava de um melhor tratamento internacional, da Argélia aos Estados Unidos). É-nos também dado um mapeamento das forças partidárias envolvidas no conflito angolano e quais a suas linhas de clivagem. Regressamos Às fragilidades do Império português, no caso da Guiné, o PAIGC já está a preparar quadros, um movimento de manjacos ataca em S. Domingos, Susana e Varela e depois umas emboscadas (pratica atos de vandalismo e depois sai do teatro de guerra.

Tudo se adensa na cena internacional, o regime tem cada vez mais dificuldade de argumentação tanto junto da NATO como em Nova Iorque. Na cena interna, como observa o autor, “O PCP era a única força de oposição que tinha uma perspetiva anticolonial definida desde 1955, na sequência da crise de Goa. Nos anos seguintes, o PCP seguiu com grande atenção a questão colonial, a que dava um largo espaço no jornal Avante!, onde se denunciava a repressão exercida nas colónias. O PCP manteve a mesma linha, no essencial, em começos de 1961, após as rebeliões em Angola.” Anteriormente o autor dera-nos conta como o conceito imperial vincara o republicanismo e a oposição liberal ao Estado Novo aparecia ou a calar ou a consentir a defesa do Ultramar português, como se vira no ato eleitoral que ocorrera em 1961.

A síntese da obra neste volume de mais de quinhentas páginas dá-nos uma grande angular da natureza da resposta do regime, do tal quadro que condicionava a política colonial portuguesa e a dos anos de 1870, naquilo que mais tarde se irá chamar o Terceiro Império, a saga africana, um lastro histórico que Valentim Alexandre aprecia numa escrita luminosa, abrindo caminho para o que se segue, a questão da reforma do regime colonial português, o ditador é fortemente centralizador e há os defensores da gradual autonomia, isto é, as relações políticas entre as diversas parcelas do Império. “Adiada em 1961, pela premência que a insurreição no norte de Angola criava, a questão eclodirá no ano seguinte, num debate tumultuoso, que culminará em outubro numa célebre reunião plenária do Conselho Ultramarino. No campo das relações económicas deu-se um passo importante na via de criação do ‘espaço económico português’ tendente a estabelecer a livre circulação de mercadorias de origem nacional entre os vários territórios.”

É impressionante o trabalho deste historiador que lançou mãos a algo que só é imaginável nas mãos de uma farta equipa – parece que estamos a acompanhar mês a mês, com o pano de fundo da maré anticolonial (1945-1960), as vicissitudes do fim do Império, com uma ordem de trabalhos e um rigor inatacáveis.

De leitura obrigatória.


                                                                                               Mário Beja Santos




sexta-feira, 11 de outubro de 2024

No cinzel de uma obra-prima literária as memórias de uma guerra que não se apagam.

 



A Selva Dentro de Casa, por Possidónio Cachapa, Publicações Dom Quixote, 2024, está muito longe de ser destinado só a antigos combatentes, é uma recordatória para um país inteiro do legado de uma guerra colonial, tal como o autor escreve em primorosa dedicatória:

“Este livro é dedicado a todos aqueles que adormeceram para sempre, entre palmeiras distantes, imaginadas por nós a preto-e-branco, e que nunca pediram para ver.

E para os que regressaram pela selva dentro. A que nunca chegou a ser deles. A selva escura. Tão sombria que não conseguirão falar dela até ao fim. A floresta que como um sonho se fecha e afasta quando se evoca o seu nome. Que parte das coisas que eles não conseguiram dizer, aos filhos e às mulheres, porque não há palavras para descrever o Inferno possam, finalmente, surgir à luz.

Mas, também, a todos os homens, mulheres e crianças que ao mesmo tempo viviam uma outra guerra dentro das suas casas. Que essa criança interior encontre finalmente a paz.”

Trata-se de uma tentativa vitoriosa de trazer à consciência de um povo o que se terá passado na vida daqueles milhares de jovens que saíram de casa para ter um arremedo de preparação bélica, metidos depois no meio do transporte mais rápido ou mais vagaroso para saltar de continente e cair no local ensombrado pela multiplicidade de violências e horrores que uma guerra pode oferecer. Sou levado a supor que há um certo pendor autobiográfico nesta criança – narrador, o sobrinho do Quim, aquele menino tão amado pelo seu tio, a viver algures numa fundura alentejana vai-nos desenvencilhando protagonistas que parecem ter carne viva, tal a corrente elétrica imposta pela narrativa, a mãe, a tia Lurdes, logo na entrada, a poderosa descrição do lugar e do tempo:

“Durante todos os anos da minha infância, os meses avançaram da mesma maneira: a noite que chegava mais cedo e o caminho penoso para a escola que odiávamos; o Inverno que vinha tão gelado arrefecia tudo em que tocávamos e nem sacos de água quente nos salvavam de tremer, quando se entrava nos lençóis; o aparecimento das primeiras flores lilases e que depois quase desapareciam, debaixo de uma onda de verde e de odores que enlouqueciam de calor.

E, finalmente, o começo do Verão (…) O Verão era a coisa mais importante das nossas vidas.”

É a comunicação fulgente, funcional, de fácil entendimento que nos cativa logo e nos leva de cambulhada até ao final da história. O tio leva o menino às festas, o menino vai à escola e vão se interpolando os episódios do Quim na tropa, o sobrinho na sua fundura alentejana, a tropa passa por Luanda, o pai do menino reaparece, não é propriamente pai é progenitor, o Quim chega a Moçambique, andam todos de olhos arregalados a ver o Lourenço Marques, o menino brinca aos índios e aos cowboys, lá na guerra o Quim chama-se o Cachopas, extraem as amígdalas ao sobrinho, a mãe e a tia Lurdes sempre presentes. Lá na guerra Quim descobre o sexo com a Celina (que na verdade se chamava Salima), a guerra manifesta-se, o Casinhas foi atingido e morreu e o Quim irá lembrar-se muitas vezes desta primeira morte, de ter visto um corpo conhecido a dançar, crivado de balas, e a memória crispou-se de não ter sentido uma dor imediata.

Na fundura alentejana a vida prossegue com a sua miséria remediada, a certa altura o menino não resistirá a, às escondidas, ir abrir uma caixa de madeira que a mãe tem escondida e tirar uns cobres para comprar uns doces. O Quim já está a viver na selva adentro, surge-lhe um bálsamo, uma improvável madrinha de guerra, a Susanita, irmã do Zé Carriço. A mãe do menino mudou de emprego, faz limpezas numa pequena fábrica têxtil, recolhe os restos de tecido que caem das máquinas e ao fim do dia lava o chão, as duas casas de banho, traz para casa um ordenado de sobrevivência. A mãe descobre que o menino a rouba, temos pancadaria com o cinto, foi acontecimento decisivo. “O coração com que amara a minha mãe estava agora fechado numa caixa de madeira invisível, cuja chave não voltou a aparecer.”

Na selva adentro, já se fazem operações ditas de limpeza, varre-se tudo a eito, poupavam-se as mulheres que tinham os filhos no colo, mas não as que vinham aos gritos em direção à tropa, as aldeias são incendiadas ao lança-chamas. O soldado Valverde fora morto durante a refrega, apareceu com a garganta cortada e o oficial vingou-se, deu um tiro na cabeça de um jovem, a coluna regressa ao quartel com aqueles que não morreram durante a operação de limpeza. O pai reapareceu, voltou a haver discussão, pediu oficialmente a separação, queria refazer a vida. Deixou duas notas de conto. O menino ama o seu lugar no mundo, quando o seu amigo Bento voltou para os campos lhe disse para olhar as flores roxas, sinal de que vinha aí a primavera, foi o êxtase, gritavam de alegria, vinha a caminho a renovação da vida.

A Susanita escreve ao Quim: “Quando voltares hás de trazer-me um corno de elefante para meter na parede do meu quarto.” E na mesma carta mandou uma fotografia. “Não era uma beleza mas tinha o cabelo bem penteado preso numa fita, e com um sorriso artificial. Quim gostou.” A tropa delira ao ver aquelas manadas de elefante. A Susanita já se apresenta naquela fundura alentejana como a namorada do tio, vai enunciado à família o que o Quim manda nos aerogramas, que quando voltar quer ir aprender para eletricistas, está farto de carregar baldes de massa. O pai reaparece, deixa dinheiro para umas botas novas. A comissão do Quim caminha para o fim, escreve à mãe de Furancungo, parece que vão para Lourenço Marques. É neste patamar da narrativa que Possidónio Cachapa tem um golpe de asa, numa operação Quim pensa que vai morrer, tudo porque uma manga, uma cobra de picada mortal se enrosca numa perna, então o narrador introduz Mankumpete, o menino que nasceu na beira do lago Chiwa, foi obrigado a alistar-se na FRELIMO, vai ter um papel decisivo na vida do Quim, são algumas das melhores páginas desta obra tão esplendente, o tio volta da guerra, é já um outro homem, o amor pelo sobrinho não desfaleceu, mas precisa de muito álcool, na taberna fala-se muito da guerra, o Quim pede ao sobrinho para ir ter com a tia Susanita e o parágrafo final é um dos mais belos exercícios da pirotecnia:

“O Sol ainda estava alto e a luz fazia doer um pouco os olhos, atirava contra as paredes brancas da vila. O mês de abril, no Alentejo, às vezes, vinha assim, a anunciar um bom tempo que poderia chegar ou não. Das pedras da calçada, as ervas infestantes surgiam por todo o lado. Só lá iriam com napalm.

Os meus pés caminharam por esse verde misturado com rocha calcária e, por um instante, deixei de saber onde estava. Uma tontura apossara-se de mim com o calor, e temi cair. Da minha névoa ora branca ora verde, pensei sentir alguma cosia rastejar até junto do meu corpo. E, sem abrir os olhos, reconheci um aperto pela perna acima, enquanto os sons desapareciam, reduzindo-se a uma espécie de silvo.”

A ternura deste sobrinho e a selva dentro do Quim catapultam este romance para a nossa melhor literatura. 


                                                                                    Mário Beja Santos