O
Vasco Barreto, que é brilhante-fulgurante mas doido, achou por bem dizer umas coisas só à altura da grandeza de carácter que todos lhe reconhecem. Somos
amigos há muitos anos, mas nesta excedeste-te, Vasco, poças. E, como amigos de
muitos anos, fomos falando deste caso dos dois alunos de Vila Nova de Famalicão
que correm o risco de recuar dois anos num percurso escolar brilhante. Ninguém
deseja que isso aconteça. E estou em crer que toda a gente, ou pelo menos quase
toda, a que assinou este manifesto, não deseja que os dois alunos de Famalicão
percam dois anos da sua carreira académica. Ninguém o deseja, nós também não.
E, por isso, o Vasco e eu (não, não foi «eu e o Vasco», foi «o Vasco e eu»),
decidimos escrever um texto que saiu hoje no Público, edição online ena versão papel. Há quem se mova por grandes
princípios, abstracções lindíssimas, ideologias de um sentido ou de outro. A
nós preocupa-nos mais o concreto e básico, as pessoas de carne e osso. Talvez
seja mais comezinho e mais terra a terra, porventura mais poucochinho, mas não
é despiciendo nem de somenos, julgamos nós. Quanto a si, julgue o que quiser –
mas conceda apenas que eu e o Vasco, ou o Vasco e eu, escrevemos este texto de
coração aberto e em plena boa-fé, total e absoluta.
Esta
artista chama-se Sara Giromini e tem por nome de guerra Sara Winter. Antiga feminista,
é agora uma das mais radicais e polémicas apoiantes de Jair Bolsonaro. Para o caso,
isso não interessa, ou talvez interesse, mas vamos ao essencial: uma menina foi
violada pelo tio desde os 6 anos. Agora, com 10 anos, engravidou. A justiça
autorizou o aborto. O aborto não interessa, ou pouco interessa. O que interessa
é que essa artista que ali vedes divulgou
nas redes sociais a identidade da menina. Podemos ser contra ou a favor do
aborto, concordar que ele possa ser feito apenas em situações horripilantes como esta.
Podemos ser a favor de tudo ou contra tudo. O que ultrapassa tudo, mas
absolutamente tudo, é que, por raiva e ardor militante, Sara Winter publicitou o nome de uma
criança vítima de violação. Vítima durante quatro anos de inferno. O Ministério Público pede agora
uma indemnização a Sara Winter, vejamos no que dá. E vejamos o que dizem – ou silenciam
– do gesto de Sara Winter os apoiantes portugueses de Jair Messias Bolsonaro e das suas tristes cruzadas. Absoluto desprezo.
Uma
revelação importante: 60 anos depois, o fim de uma polémica, ou o que parece
sê-lo. Begoña Urroz, a menina na imagem, não foi morta pela ETA, mas pelo DRIL,
um grupo luso-espanhol, celebrizado pelo desvio e sequestro do paquete Santa Maria. A acompanhar, aqui.
A fechar a rubrica e a infinita salada apaziguadora começada
ontem, essa a recheio de música inspirada pelo encantamento e pela contemplação
de algo ou alguém, persiste-se hoje na tentativa de meter um Rossio de igual
tamanho na mesma Betesga: o do amor, nas suas também infinitas tonalidades e
desdobramentos. Amor divino e amor terreno, amor com maiúsculas e com
minúsculas, Calibri ou Times New Roman, físico e metafísico, animal, vegetal,
postal, gasoso e atmosférico.
1) Coração e Boca e Atos
e Vida, como é
conhecida a Cantata Jesus Bleibet Meine
Freud, de J. S. Bach. É com tudo isso que
nos embala o coral final, com o que “há de dar testemunho, sem temor nem hipocrisia”, de coisas divinas e da felicidade
humana. Aqui num arranjo para dois pianos, interpretado por Lucas e
Arthur Jussen.
2) Se Leonor ia fermosa
e não segura pela verdura, já as ovelhinhas de todas as idades podem pastar com
a maior segurança e, sobretudo, na mais maravilhosa paz com Schafe können sicher weiden, de uma
outra Cantata de Bach, a da Caça. Também
num arranjo para piano, interpretado por Khatia Buniatishvili.
3) As nuvens que ilustram a primeira das três Gymnopédies, de Erik Satie, estão ali muito bem, no ambiente delas. Com sol ou chuva, as 3G são realmente serenas
e atmosféricas. Não há agitação infantil que resista à sedução do seu torpor
vaporoso. A agitação adulta também lhe sucumbe em circunstâncias e situações
variadas. Por Anne Quéféllec.
4) Na minha experiência pessoal, todavia, tiro e queda
mesmo é My Funny Valentine, na voz de
Chet Baker. Em poucos segundos induz um revirar de olhos de sonolência
fulminante, assaz distinto do enfastiado rodar para cima na oblíqua do globo
ocular aborrescente, perdão, adolescente – tantas vezes mais do que justificado,
diga-se. Em idades mais tenras, porém, é a pupila que escorrega por si para
dentro da pálpebra, deixando ver o fundo branco antes da persiana – a pálpebra
– baixar rendida ao peso feliz da beatitude. É uma coisa linda de se ver.
“My Funny [preencher com o nome
aplicável], my favourite work of art”.
Os ingredientes das últimas saladas júnior, esta e a
próxima, não nasceram para infantes. Foram convertidos, e os infantes a eles.
Uma conversão mútua, digamos, íntima e pessoalíssima. O fabrico é artesanal e certificado:
foi testado empiricamente com rebentos lá de casa. Suponho que toda a gente
terá feito a sua conversão caseira, e nisso cada uma é como cada qual. Se
funciona, funciona – e a Federação certifica. Fica então uma delas, primus inter ziliões de pares.
O sopro que emana de tais canções, ou aquilo que o
inspira, prende tanto ou mais ao seu embalo que muitas canções de embalar. Sussurram
para lá do ouvido, ao coração, e na essência permanecem um sussurro mesmo
quando se encorpa e cresce em volume a voz que as entoa. Propagam o repouso que
evocam, a mesma acalmia, a mesma tranquilidade, a mesma mescla de sombra e
cintilação.
Será da sombra das árvores, debaixo da qual se sonha
ou descansa? Da cintilação do sol nas folhas, do brilho de quem se quer nos
nossos olhos, do esplendor dos dias que hão de vir?
1) Um plátano frondoso, para
começar. Ombra Mai Fu, não há sombra mais amável e suave, diz a ária de abertura da ópera Xerxes, de
G. F. Haendel. Aqui
cantada por um contratenor que cala tudo à volta: Andreas Scholl.
2) A tília dos sonhos doces, em Der Lindenbaum, um lied
de Franz Schubert, parte do ciclo de canções Winterreise. Por Dietrich Fischer-Diskau (acompanhado ao piano por
A. Brendel), barítono a quem já ouvi chamar de Callas de calças. Por mim podia
sempre vestir o que quisesse, calado ou a cantar. Com aquela voz, podia até nem
vestir nada.
3) “Tu és o repouso / E a paz
gentil / O anseio / E o que o apazigua” – é assim que começa outro liedde Schubert:Du Bist Die Ruh,
cantado por outro barítono que também pode usar saias, calções,
tanga ou nu: Christian Gerhaher, acompanhado ao piano por G. Huber.
O
prometido é devido: clássicos-tradicionais no menu de hoje. A Estrela d’Alva,
de Zeca Afonso, é hors concours, joga na ementa extraordinária.
O
concurso não é o do cancioneiro, e isto de clássico-tradicional tem muito que
se lhe diga. Aqui, não vou dizer nada. De momento, eis o que se me atravessa à
frente, num sortido de três:
1) Perlimpinchim,
resgatada de viés ao cancioneiro português, com tempero mirandês, por Né
Ladeiras, na voz que é só dela e como só ela sabe.
2)
Tradicional-tradicional de outras paragens: Hush Little Baby. Aqui
oferece-me dizer o seguinte. Para dormir, os infantes têm antes de mais de sossegar.
Os truques para os levar a isso são infinitos, como infinitas são as
interpretações de uma cantiga assim, que recorre sem pejo ao suborno. Tudo vai
do jeito e do feitio dos intervenientes.
Há as
nhã-nhã, de que esta
é um exemplo cabal. Não duvido da eficácia, acredito até que ponha um eucalipto
a dormir em pé, e de caminho seque o bébé e a água do banho. Ao método
liofilização, pessoalmente prefiro o da distração, como a manobra de diversão
muito bem conseguida (em baixo) por Yo-Yo Ma e Bobby McFerrin. Pode não ser tão
rápido e soporífero, mas é investimento com retorno seguro a longo prazo. Outro
ao mesmo nível, em variante mais calma e embalante, é o proposto por Nina Simone.
3)
Por fim, um do mais célebres “hush little baby” de sempre: o desse clássico mil
vezes glosado que é Summertime, composto pelos irmãos Gershwin para a
ópera Porgy and Bess. Cantam, e oh como cantam, Ella Fitzgerald e Louis
Armstrong.
Adolescentes
de dois continentes, rapazes e raparigas, gerações distantes. Das crinolinas e
do fato de fazenda, ao fato Zoot e à fibra de bambu. Entre cordas acústicas e
cordas elétricas, o que os embala? Com que sonham? O que é isso de “dormir” e o
que tem a ver com adormecer? Ó-ó, dormir-dormir, praticam, mas não é coisa que cantem,
nem o que os faz cantar.
A
faixa etária desta rubrica hoje subiu porque sim, e porque acaba de sair o
relatório da OMS sobre comportamento e saúde dos adolescentes. Volta a descer à
infância nos próximos dias também porque sim, e regressa às origens nas
cantigas de embalar do mais clássico e tradicional que há. Sem extravios
estrambólicos nem “pecados de velhice” nostálgicos como este de Rossini, do Álbum
que compôs Para as Crianças Adolescentes.
A
viajar de frente para trás:
1) Mother
May I Sleep With Danger, homónima de um filme e de uma série televisiva
com… vampiros. Vampiros e zombies: what else? O que havia de ser?
De Joy Crooke.
2) La Mandoline. Nota para os francófonos de hoje:
“passar a noite no violino” não é passar a noite dentro de um violino. É no chilindró. Ou “atrás das grades”, para os lusófonos millenials e zoomers – chilindró, convenhamos, está para lá de boomer. Em contrapartida, o requintado “mais
vale mijar num violino” (autant pisser
dans un violon) é transgeracional. Quer dizer “tanto faz, não serve de
nada”.
Por
Bourvil, de Gille Paule e Bernard Michel.
3) La Rêveuse.Tão pungente, esta rapariga que
sonha. Tão tocante o seu enlevo. Só se sonha assim acordado.
De Marin
Marais, por Jordi Savall, Pierre Hantai e Rolf Lislevand.
Há
crianças que em criança têm gostos fortes e afiados, gostos que outras só
descobrem e apuram com a idade – ou não. Pelam-se por alho e picante, mioleira,
sopa de ossos de assuã, couves de Bruxelas, cabeças de peixe e respetivos
olhos, quiçáMarmite
(!) e até aquilo a que os adultos chamam polidamente de “gosto adquirido”, como
os queijos malcheirosos ou para lá de podres. Se queijo é propriamente leite
podre, variedades há que levam a podridão mais longe e no devir fermentado se
tornam, elas mesmas, queijo podre. Mais meta não se encontra.
Veja-se o Foujou,
que me abstenho de descrever, mas dizem muito apreciado por paladares “bastante
desenvolvidos”. Basta dizer que este laticínio decadente do sudeste francês convive
mal com os demais habitantes do frigorífico e da casa em geral, uma incompatibilidade
perfeitamente compreensível quando as camadas do fundo do frasco não são
avistadas durante 15-20 anos em muitas famílias. É assim que mandam as regras
da arte: deixar intocados os fundos do fundo para não perturbar o movimento
perpétuo da fermentação ao longo das gerações.
Outras crianças toleram amenamente ou, pelo
menos, não vomitam texturas dúbias e consistências incertas como ervilhas,
favas ou cenouras cozidas, fiapos de tomate no arroz e a película de nata a
boiar no leite.
Para todas essas crianças com um twist, espontâneo ou cultivado pelos
pais a adubo cínico-repressivo, abertas a coisas fora do anormal, capazes de
apreciar bizarrias e coisas que parecem difíceis, mas não são fáceis, ficam
hoje duas sugestões de embalar:
1) A primeira, um tocador de serpente -- muito
mais à frente que um vulgaríssimo encantador de serpentes. Nunca ouviram o som da
serpente – em português serpentão, que o bicho é grande demais para tamanhos do
Sul? Então abalancem-se a ouvir esse instrumento de sopro que é precisamente
das tais coisas que parecem difíceis, mas não são fáceis. Por Michel Godard, um dos mais
virtuosos tocadores de serpente da atualidade. Aqui em
Miserere, no álbum A Serpent’s Dream, em que encontram
também Le Sommeil, se ainda for
preciso.
2) Também fora do
anormal, um tocador
de flauta que embala as ruínas, tal como há cantores que fazem chorar as pedras
da calçada.
É ele Vincent Lucas, em Un Joueur de Flûte Berce les Ruines, de
Francis Poulenc.
(Para as crias do
Plantas Tristes e seus diabólicos pais)
Leves e breves, para
crianças tranquilas. Catálogo Primavera-Outono.
Atenção, crianças! O catálogo de hoje não substitui o
catálogo de pais, para o caso de quererem trocar um ou dois dos vossos. Podem
trocar por um, dois, cinco ou trinta, sem número fixo. Os que vos calharam
saíram pesados, pegajosos, peludos, picantes e implicantes já antes da
conjuntura? Já eram sisudos, maçadores, decapantes e arreliantes? Continuam a não
vos ouvir, a arrumar-vos o quarto, a andar por cima dos brinquedos e a não vos
deixar ajavardar à mesa? Não stressem mais do que é preciso. É escolher qualquer
modelo neste sortido de pais, inventariado
pelo essencial Claude Ponti,bastando preencher a referência no cupão de
encomenda.
Podem também guarnecer o artigo da vossa escolha com
acessórios, como i) o patodeapoio equipado com rodinhas, voz de ranger de
portas, 30 tipos de riso e grito silente de recusa-responder; ou ii) o
sinistreiro, que engole ideias negras, horrivilifientas, catastrofóficas e
caidentro; ou ainda iii) a lanterneta, que ilumina os cantos sombrios, atrás de
espelhos e fundos de armário, convertível em levantador de moral parental, com
adaptador internacional e três intensidades. No campo ou na cidade, é
indispensável o melão de jardim, que se alimenta de dor de cabeça e dor mental
em geral.
Quanto à música embalante do dia, hoje é a vez do catálogo de
modelos que despreocupam e aligeiram ambientes densos. Passeios
descontraídos antes ou depois do jantar, balanços sossegados e flutuantes, sem ponta de melancolia. Também
dispõem à sesta. Duas amostras da coleção Primavera-Outono:
1) Dolly, a Berceuse que
Gabriel Fauré compôs para a sua filha, Dolly de seu nome, pelas irmãs Labèque.
2) Berceuse des Soirs d'Automne, de Reynaldo Hahn, por Huseyin Sermet
e Kun Woo Paik.
A imprensa internacional fez-nos saber
que a conjuntura covidal tem posto as crianças a dormir mal. Apesar das perturbações
do sono afetarem miúdos e graúdos, até aqui só os graúdos atraíam os holofotes.
Nisto, o Malomil também não andou bem.
O projeto de espalhar
quietude – condição necessária, ainda que não suficiente, para a sonolência
– tem negligenciado os mais pequenos. Estes, quando muito andam a ser aviados
com Melamil, uma droga que apregoa encurtar o tempo para adormecer.
Pois bem, chegou o momento de acertar a
balança. Nas próximas edições esta rubrica será júnior, com meia dúzia de
canções de embalar e outras que, não o sendo, embalam no sono, ou dispõem para
o sonho.
Com pena, deixo de fora canções de
embalar cujo embalo hipnotiza e induz ao transe, mas tenho dúvidas que
adormeçam, como a Lullaby
dos The Cure. Já sem pena alguma ficam de fora canções de embalar plástico,
vendidas em pacote para bébés e infantes a pais incautos. Atrofiam os ouvidos
tenrinhos, cheios de potencial, e deixam-nos balofos de enxúndia e entulho, tão
desalmadas são. O problema, por conseguinte, não é serem simples. Há-as simples
e gloriosas. É mesmo não terem alma.
Dito isto, também não levo ninguém ao
engano. Não garanto, nem por sombras, um efeito rápido tão cilindrante como o
que este pai obteve
com a sua interpretação da Wiegenlied,
a famosa canção de embalar de Johannes Brahms. Ao fim de 30 segundos? Brincamos?
É quase indecente.
A abrir a rubrica, já a seguir, uma “Criança
a Adormecer” – precisamente. É assim que se intitula esta cena de infância, de Robert
Schumann (Kinderszenen, Op.15 - 12. Kind
im Einschlummern), interpretada por Martha Argerich.