domingo, 30 de agosto de 2015

42,70 €





        
O recorde este ano foi para Terra, Universo de Vida. É o manual de Biologia e Geologia para o 11º ano, que a Leonor, a minha filha mais velha, é obrigada a usar – e eu, o pai dela, fui obrigado a pagar. Muito obrigado. Obrigado aos autores e, sobretudo, obrigado à editora (à Porto Editora, claro) por esta obra tão valiosa. No site do Ministério da Educação indicam o preço do livro: 32 euros e 74 cêntimos. Mas não referem o sempre indispensável «caderno de actividades». Tudo por junto, a coisa ficou em 42,70 €.
Os «cadernos de exercícios» ou «cadernos de actividades» são uma, entre muitas, das habilidades deste negócio milionário. O Ministério, no seu site, indica apenas o preço do manual. Mas depois todos os professores exigem o «caderno de actividades», sem o qual a aprendizagem da matéria é impossível. Sei bem que, nos termos da lei, é proibido obrigar a compra em conjunto do manual e do caderno de actividades. Também sei que quem já tenha o manual pode comprar só o caderno de actividades, ou vice-versa. Mas porque é que o MNE não publicita também o preço dos cadernos de exercícios e de actividades? No caso da Biologia, o livro custa 32,74€. Mas, depois, o «manual de auto-avaliação» carrega a factura com mais 9,96€.
Aliás, a pouca-vergonha é tanta que, regra geral, manuais e cadernos de actividades vêm ambos embrulhados no mesmo celofane. Se vou ao balcão de uma papelaria e peço «o livro de Biologia do 11º ano», entregam-me o manual mais o caderno de actividades, tudo por atacado. Chamam-lhe «bloco pedagógico». E depois apresentam a conta: 42 euros.
 
 
 
 
Há outros expedientes. Tomemos, por exemplo, o caso de Jogo de Partículas, o manual de Física e Química do 11º ano, da Texto Editora, com revisão científica do Prof. Virgílio Meira Soares, ex-reitor da Universidade de Lisboa. No Jogo de Parículas temos o manual propriamente dito, o caderno de actividades e, last but not the least, o «caderno de actividades laboratoriais». Nos termos da lei, o caderno de actividades pode ser vendido separadamente do manual. Mas, segundo as regras da Texto Editora, o «caderno de actividades laboratoriais» não pode. Está lá dito, com todas as letras: «Este Caderno de Actividades Laboratoriais é parte integrante do Manual Jogo de Partículas 11º ano, não podendo ser vendido separadamente.» Quer dizer, se se perder o caderno de actividades laboratoriais serei obrigado a comprar tudo de novo. Mais: isto dificulta e complica o esforço de reutilização – nuns bancos de trocas aparece o conjunto completo, noutros só encontramos o manual, noutros só surge o «caderno de actividades laboratoriais». Este último não deveria ser integrado no manual, para evitar confusões e problemas, para impedir a dispersão de livros e o risco de perda, e extravio? Mais uma forma engenhosa de tornear a lei. O Ministério da Educação assiste, impassível. Como mudaram as «metas pedagógicas», e apesar de no ano lexctivo passado a Leonor já ter o Jogo de Partículas, este ano lá tive de comprar tudo de novo. Foi o «bloco pedagógico» inteirinho: manual, caderno de actividades laboratoriais e caderno de exercícios e problemas. Paguei 41,45 €. Isto em Físico-Química. Em Biologia já havia pago 42,70 €, e por aí adiante.
 
 
 
 
Este quadro elaborado pelo Público é bem elucidativo (aqui). Só em manuais escolares, um aluno de 12 anos, no 7º de escolaridade, tem de gastar 252 euros. É muita sabedoria para uma criança. Um aluno do 10º ano gasta, em média, 251 euros. Portanto, uma família que tenha um filho a estudar no 7º e outro no 10º ano de escolaridade gastará em 2015 mais de 500 euros só em manuais escolares. Para incentivo à natalidade, não estamos mal.
         Gostava de saber por que motivo um manual escolar custa 42 euros. Pensava eu, na minha estupidez de estúpido, que os livros escolares deveriam, em regra, custar menos do que a média dos restantes livros. Quando muito, deveriam, custar o mesmo do que os outros livros. Um manual de estudo deveria, por exemplo, custar o mesmo que o romance de um autor mundialmente famoso, que para ser editado em Portugal exige o pagamento de direitos, negociações internacionais, traduções, etc. Ou deveria custar o mesmo que um daqueles calhamaços de História, de grandes especialistas estrangeiros, com centenas e centenas de páginas. Por exemplo, Dia D – A Batalha da Normandia, do famoso historiador britânico Anthony Beevor. É um livro de 690 páginas. Custa 24,40€. E é editado pela Bertrand que… faz parte do grupo Porto Editora. Se a Porto Editora/Bertrand consegue comercializar um livro de Anthony Beevor, com 700 páginas, por 24 euros, por que razão vende praticamente pelo dobro do preço um manual de Biologia para o 11º ano de escolaridade? Ilustrações a cores, a qualidade do papel? Não brinquem. Os manuais escolares são fabricados a uma tal escala, para milhares e milhares de alunos, que os custos de produção certamente são muito inferiores ao preço final de venda ao público. Vi por alto as tiragens, quando as fichas técnicas (outro escândalo) as indicam: 6.000, 7.000 exemplares. Com tiragens desta dimensão, não seria possível obter livros mais em conta? 42 euros é o preço de um, de um só, dos vários livros que sou obrigado a comprar para que a minha filha faça a escolaridade obrigatória. O Ministério da Educação não controla os preços, já sabemos. Mas, no mínimo, poderia fazer um estudo para que percebêssemos por que razão os livros escolares são assim tão caros, mais caros do que os restantes livros. A lei estabelece critérios para a certificação de manuais escolares. Há diversos critérios, mas nenhum deles tem a ver com o preço de venda ao público. Porquê? Não seria lógico, para defesa dos consumidores?  A Lei nº 47/2006, no seu artigo 26º, também prevê a existência, no âmbito do Conselho Nacional de Educação, de uma comissão especializada permanente para acompanhamento dos manuais escolares. Vamos ao site do CNE e verificamos que, quase dez anos após a aprovação dessa lei, a comissão não existe. Existe uma comissão, a 2ª, que trata dos manuais e recursos pedagógicos mas também trata da articulação curricular do pré-escolar ao secundário, dos curricula, da avaliação educacional, da educação especial e por aí fora. De resto, de pouco adiantaria: a CNE tem feito sucessivas recomendações – em 1989, em 2006 e em 2011 – a favor de um sistema de partilha e troca de livros e os sucessivos governos jamais lhe deram ouvidos. A recomendação de 1989 era feita «com carácter de urgência». Passaram 26 anos, a «urgência» mantém-se.
 
 
 
         A primeira questão dos manuais escolares, antes de qualquer outra, é o seu preço – exorbitante. A segunda questão é a qualidade dos conteúdos. Deve ser fraca, mesmo muito fraca, pois, sempre que podem, as editoras publicam novos manuais, revogando os anteriores. Os que nos venderam o ano passado, por 40 e muitos euros, rapidamente se desgastam com a chegada do Outono. Se temos de mudar de manuais todos os anos, isto significa que, além de caros, os livros são maus. Degradam-se com facilidade, desactualizam-se mais depressa do que seria suposto. A lei impõe que os manuais tenham a duração de seis anos. Mas permite que esse prazo seja encurtado, penso que excepcionalmente, «nos casos em que o conhecimento científico evolua de forma célere ou o conteúdo dos programas se revele desfasado relativamente ao conhecimento científico generalizadamente aceite» (artigo 4º). Terão sido feitas descobertas revolucionárias, no campo da Física ou da Matemática, da Biologia e da Química, da História e da Língua Portuguesa, que justifiquem não cumprir a lei? E, para evitar o desperdício, não se poderiam, em caso de alterações imprescindíveis, fazer breves «cadernos» de actualização, mantendo os manuais, ou recorrer a fotocópias, à Internet, etc.? Chegamos ao ensino universitário, onde a exigência de actualização é naturalmente maior, e nada disto se passa: os livros perduram vários anos, em reedições sucessivas.
         O Ministério da Educação, de facto, não ajuda. 2015 é o terceiro ano consecutivo em que há manuais novos obrigatórios por causa da entrada em vigor das metas curriculares. Leram bem: o terceiro ano consecutivo com mudanças obrigatórias de manuais. Isto numa altura de crise, de austeridade, de redução dos gastos públicos e privados. Há cortes em tudo, menos nos gastos do Estado e das famílias com os manuais escolares. Como referiu ao Público Graça Margarido – que no agrupamento de escolas Filipa de Lencastre, em Lisboa, tem efeito um trabalho notável no combate ao desperdício –, as mudanças de metas curriculares são fatais para qualquer programa de reutilização dos livros de estudo. Implicam que milhares e milhares de livros, muitos deles novinhos em folha, vão para o lixo (ou, na melhor das hipóteses, para os bancos alimentares, que dão 100 euros por cada tonelada de papel recolhido).
Eu gostava de perguntar ao Senhor Ministério se alguma vez foi feito um estudo, um cálculo, de quanto pesam no orçamento das famílias essas constantes mudanças de metas e programas. Se houve, por exemplo, uma avaliação do impacto orçamental da alteração das «metas curriculares». Nos anos da austeridade, não havia melhor do que estar a mudar as metas dos curricula? É que, importa dizê-lo, o custo não recai apenas sobre as famílias: dezenas de autarquias compram os manuais e oferecem-nos aos pais, seja qual for o seu rendimento. Ou seja, eu pago os livros das minhas filhas e, com os meus impostos, ainda tenho de pagar os livros das filhas do senhor A ou da senhora B, que vivem numa quinta apalaçada da serra de Sintra. Em vez comprarem os manuais às editoras ou às livrarias, as autarquias não poupariam se apoiassem a existência de bancos de trocas de livros? Para ter uma noção do custo, navegue um pouco pela base de dados da contratação pública, aqui.
Aliás, se havia que mudar de manuais por causa do famigerado Acordo Ortográfico, porque não se aproveitou na altura para alterar as «metas curriculares»? Não sei. E era assim tão imprescindível mudar as metas curriculares? Não sei. Só sei que a legislação determina que os manuais tenham uma duração de seis anos e, cá em casa, nunca foi possível que a Leonor, com 15 anos, deixasse os livros às irmãs, gémeas de 12. Têm três anos de diferença, metade do que impõe a lei, mas nunca foi possível passar os livros da mais velha para as mais novas. O Ministério da Educação, que tem tantos observatórios e grupos de trabalho, bem poderia promover um estudo que me respondesse à questão: por que motivo nunca consegui que a Margarida e a Joana aproveitassem os livros da irmã mais velha? Afinal, só têm 3 anos de diferença – e a lei obriga a que os manuais vigorem, no mínimo, 6 anos.
 
 
 
 
aqui falei desta situação e do impagável Professor Adalberto, que no Porto dirige um «Observatório dos Recursos Educativos», financiado pela Porto Editora, que defende, entre outras maravilhas, que «o empréstimo de manuais escolares fica mais caro ao Estado». A melhor deste Observatório é quando diz que em França e na Alemanha existem sistemas de empréstimo de manuais escolares – e cito – «por razões de ordem histórica que se prendem com a experiência traumática da 2ª Guerra Mundial».
Também saudei o trabalho do Reutilizar.org e do seu dirigente, Henrique Cunha. O movimento Reutilizar já recebeu 100 queixas de pais por causa dos manuais. Leram bem: 100 queixas, que vão ser reencaminhadas para o Provedor de Justiça. Falemos então de números. Em média, cada família portuguesa gasta anualmente 528 euros por aluno em material escolar, entre livros, canetas e mochilas. Mas fixemo-nos nos manuais e livros escolares. Este ano, corri Lisboa inteira em busca de manuais de anos anteriores. De Caselas aos supermercados Brio, eu e a Rita revirámos tudo. Graças ao trabalho voluntário de gente boa, consegui fazer alguma poupança, mas a conta final em livros novos, que tive de comprar, deve andar por volta dos 400 euros (ainda não posso dar valores finais pois falta comprar um ou outro livro, que está encomendado na papelaria, a um vendedor sorridente). Valores finais são estes: a indústria dos manuais escolares tem um volume de negócios de 220 milhões de euros por ano (o Correio da Manhã, de 6/8/2015, fala em 223 milhões). É muito dinheiro. Dinheiro pago pelas famílias. Mas o que diz o presidente da Confederação Nacional da Associação de Pais (Confap)? É melhor comprar manuais novos. Reutilizar, como exemplo de poupança e de combate ao desperdício, reciclar manuais escolares por vários motivos, até por razões ambientais e ecológicas, isso nunca. O que se deve mesmo é gastar, gastar, gastar todos os anos, milhões de euros em manuais escolares. É mais pedagógico, mais sadio. «As crianças sentem-se mais valorizadas. Há também mais responsabilidade para terem boas notas» − estas palavras são, pasme-se, de Jorge Acenção, o presidente da Confap, a confederação das associações de pais. A Confap, por razões que não percebo (mas gostava de perceber…), sempre foi complacente perante este escândalo, mostrando-se adversária da implementação em Portugal de um sistema de trocas ou empréstimos idêntico aos que são praticados na generalidade dos países europeus. Países muito mais ricos que nós, países em que as famílias não tiveram que sofrer cortes salariais nem passar pela austeridade. Entre o mercado de 220 milhões de euros/ano e os interesses das famílias, a confederação das associações de pais coloca-se do lado da indústria livreira, em vez de defender os interesses dos pais. Segundo o presidente da Confap, livros novinhos, a estrear, fazem com que as crianças se sintam «mais valorizadas» e, com isso, sintam «mais responsabilidade para terem boas notas». Como 94% das famílias portuguesas continuam a insistir na compra de livros novos (aqui), Portugal deve ser um case-study de sucesso escolar e excelência educativa. Já noutros países, como a Finlândia, a Suécia, a Noruega, a Dinamarca, a Bélgica ou o Reino Unido, onde não existe esta paródia estival dos manuais milionários, grassa o insucesso e o abandono escolar precoce. Nesses países, as crianças, coitadas, são «menos valorizadas», sentem-se com menos «responsabilidade para terem boas notas». Enfim, terras atrasadas, com alunos pouco motivados.
 
 
 
        
         No meio de tudo isto, como se comporta o poder político, o governo?
Em primeiro lugar, a Direcção-Geral das Actividades Económicas, tutelada pelo Ministério da Economia, assinou em 2012 uma convenção com a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros nos termos da qual, contas feitas, resultou um aumento de encargos para as famílias de 22 milhões de euros no preço dos livros escolares (aqui). Piedoso, o Ministério da Educação diz esperar que seja celebrada uma «nova convenção de preços, com efeitos a partir do ano lectivo de 2016/2017» (cf. Expresso, de 22/8/2015). Mas, entretanto, a indústria livreira pôde aumentar o preço dos livros em 5,2%. O que afirmou, sobre isto, o presidente da Confap? «São contingências do negócio, mas quero acreditar que as intenções foram boas para ambas as partes». As intenções de ambas as partes terão sido as melhores – óptimas! – mas apenas uma delas ficou a ganhar. Contingências do negócio.
Além do Ministério da Economia, o Ministério das Finanças também deu uma ajuda. O Fisco mudou as regras das deduções das despesas escolares. Prepare-se: segundo informa a DECO, os cadernos e demais material escolar com IVA superior a 6% não vão poder ser dedutíveis como despesas de educação no IRS que entregar em 2016.
E, no meio disto, o que fez o Ministério da Educação? Alterou as «metas curriculares». Com isso, vão milhares de manuais para o lixo, têm de se comprar novos livros, continuando a alimentar uma indústria que factura 220 milhões de euros por ano.
A culpa não é deste Governo ou daquele. Existem recomendações do Conselho Nacional de Educação, com mais de 25 anos, no sentido de ser instituído em Portugal um sistema de empréstimo ou troca de manuais escolares. Desde 1989, pelo menos, que o CNE propõe a aplicação faseada do princípio da gratuitidade dos manuais escolares. Há cerca de dez anos, a Lei nº 47/2006 determinava, no seu artigo 29º, que, no prazo de um ano (ou seja, em 2007), fosse emitido um despacho ministerial a definir as regras e os princípios do sistema de empréstimo de livros. Que se passou, entretanto? Ao certo, não sei. Só sei que o manual de Biologia da Leonor custa 42,70 euros – e que eu tive de pagar por ele, como tive de pagar quase todos os manuais dela e das irmãs. Tudo junto, ronda os 400 euros, no mínimo. Uma família com duas crianças, uma no 7º outra no 10º, pagará mais de 500 euros em manuais escolares. Depois há o resto da tralha: livros, canetas, dossiers, mochilas.
 
 
 
No fundo, e se bem percebi, quer o PSD/CDS, quer o PS, nada propõem de concreto para um problema que, todos os anos, afecta milhares de famílias e movimenta milhões de euros. Fazem uma vaga promessa sobre «o digital», acenando com uma utopia distante. Ou seja, não têm sequer coragem de denunciar o statu quo extorsionário ou de anunciar um sistema de trocas e empréstimos de manuais escolares. Como é evidente, quando e se um dia chegar «o digital», as grandes editoras estarão preparadas para esse novo – e ainda mais lucrativo – segmento de mercado.
O Professor Santana Castilho, autor do livro Crónicas de Dias de Desespero, um retrato arrepiante da crise e suas tragédias, analisou também a situação dos manuais escolares. No seu estilo cáustico habitual, deu cabo – e bem – das fantasias digitais propugnadas pelo PSD/CDS e pelo PS. Acontece que o Bloco de Esquerda defende a criação de uma bolsa de empréstimos escolares. O que diz, a este respeito, Santana Castilho?
 

 
         Para Santana Castilho, devemos ter as maiores cautelas com as bolsas de empréstimos escolares. Caso contrário, muitas famílias iletradas ver-se-iam privadas dos únicos livros que têm em casa: aqueles que custam 40 euros, são feitos em papel lustroso, e no final do ano vão para o caixote do lixo. Com o sistema de trocas, saem mas entram livros todos os anos nos lares portugueses. Portanto, as famílias, mesmo as mais iletradas, continuariam a ter nas suas casas livros e manuais escolares, atlas e dicionários. Com a poupança realizada, poder-se-ia, inclusivamente, isentar as famílias de menores recursos da obrigação de devolver os livros ou até oferecer-lhes outro tipo de livros (por ex., títulos integrados no Plano Nacional de Leitura). O sistema de trocas – como, aliás, o demonstra a experiência dos EUA – favorece e fomenta o carinho pelo objecto-livro, o maior cuidado no seu manuseamento. Não se percebe como é que o Prof. Santana Castilho, sempre tão contundente nas suas opiniões, questiona com tamanha ligeireza, e de forma tão descabelada, uma elementar medida de justiça social. Uma argumentação imprópria do autor de O Ensino Passado a Limpo, um notável livro de Santana Castilho, saído em 2011. Prefaciado por Pedro Passos Coelho, publicado com a chancela da Porto Editora.
 
António Araújo
 
  
 
 
 
 

Oliver Sacks (1933-2015).

 
 


sexta-feira, 28 de agosto de 2015

V-Day.

 
 
 
 
         Há uns dias, o Expresso publicou uma excelente reportagem sobre a celebérrima fotografia de Alfred Einsenstaedt, tirada em Times Square no Dia da Vitória, 14 de Agosto de 1945. A reportagem, como dissemos, é excelente, e pouco haverá a acrescentar ao trabalho de Ricardo Silva. Simplesmente, assume de forma inequívoca que o marinheiro fotografado é o lusodescendente George Mendonça (ou Mendonsa), com raízes na ilha da Madeira. Mendonça está tão convicto de que é ele o marinheiro beijoqueiro que chegou a processar judicialmente a Time Inc. por usar a sua imagem sem a devida autorização. Ora, existem, ou existiram, pelo menos doze homens que reivindicaram serem eles o marinheiro fotografado por Einsenstaedt no cruzamento da Rua 44 com a Broadway.
 

George Mendonça
 
Carl Muscarello
 
 
Também entre as mulheres há alguma controvérsia, com uma acesa disputa entre Greta Friedman e Edith Shain. Mesmo sobre o momento de captação da imagem, não há dados totalmente seguros, já que, como conta a douta Wikipedia, Alfred Einsenstaedt apresenta duas versões algo diferentes sobre o que se passou há 70 anos em Times Square. Aliás, nem sempre se apresenta a mesma fotografia. Com o mesmo título, há duas ou três de Eisenstaedt com ligeiras diferenças entre si. O fotógrafo tirou uma série e ora se publica uma, ora se publica outra. Tudo muito obscuro.  De certeza certa só sabemos que a máquina usada para captar a fotografia lendária, uma Leica IIIa, foi leiloada por uma fortuna (aqui).
 
 

Descubra as diferenças

 
         E também sabemos que em torno desta fotografia se gerou uma curiosíssima guerra de memória. Antes de morrer de cancro, em Junho de 2010, aos 91 anos de idade, a enfermeira Edith Shain apareceu em diversas comemorações e festejos, nas vestes alvas da mulher beijada no Dia da Vitória. Do outro lado da trincheira, num cortejo comemorativo do 4 de Julho, realizado em Rhode Island em 2009, aparece a sua rival, Greta Friedman. Esta tinha a seu lado o lusodescendente George Mendonça. Antes disso, em 2005, Edith Shain apresentou-se em Times Square com outro sério candidato a beijoqueiro, o ex-polícia Carl Muscarello. De todos os candidatos, George Mendonça e Carl Muscarello são, provavelmente, os que têm mais hipóteses de alcançar o título. Na competição feminina, Edith Shain e Greta Friedman figuram entre as favoritas. Edith Shain e Muscarello estiveram juntos, como se disse, em 2005, no preciso lugar em que, supostamente, se tinham beijado décadas atrás. A ocasião era de festa, 60º aniversário do Dia da Vitória. Apresentou-se ao público a escultura de John Seward Johnson II intitulada Unconditional Surrender – ou, melhor, a réplica em plástico e alumínio do original dessa obra, feito em bronze.
 
George Mendonça e Greta Friedman, Rhode Island, 2009
 

Edith Shain e Carl Muscarello na apresentação de Unconditional Surrender
em Times Square, 2005
 
         A história do escultor é curiosa e acidentada. John Seward Johnson II é neto de Robert Wood Johnson I, um dos co-fundadores da empresa Johnson & Johnson, vindo a ser primo, por via materna, do actor Michael Douglas. Nascido em berço de ouro, disléxico, Seward Johnson não se chegou a licenciar. Serviu na Marinha durante quatro anos, na guerra da Coreia. Depois, foi trabalhar para a colossal empresa familiar, de onde seria despedido pelo seu tio. Desde então, dedicou-se a fazer esculturas hiper-realistas, num estilo desprezado pela crítica mas venerado pelo público, especialmente infantil. Seward Johnson teve uma vida pessoal atribulada: no testamento, o seu pai não o contemplava, mas, na barra dos tribunais, acabou por conseguir obter uma parcela da fortuna Johnson, graças à qual desenvolve hoje uma intensa actividade filantrópica de apoio às artes. A mulher enganava-o, o que o fazia sofrer, a ponto de ter tentado o suicídio. Divorciou-se, andou em bolandas judiciárias, mas parece ter encarreirado. Pelo caminho, fez estátuas ao gosto popular.  
 
Seward Johnson, Double Check (1982), aquando do 9/11
 
 
É da sua autoria uma escultura tornada célebre pelas piores razões. Double Check, de 1982, mostrava um executivo a verificar o conteúdo da sua pasta, numa atitude típica. Estava colocada em Manhattan, nas imediações das Torres Gémeas. Foi descoberta nos escombros, entre cinza e poeira. Nos dias seguintes aos atentados, tornou-se um ponto de peregrinação para quem ia até lá, em busca de restos dos entes queridos ou apenas para mirar os despojos da catástrofe. As pessoas deixavam flores ou mensagens nos interstícios da estátua moribunda, que agora voltou a ganhar brilho e cor. Haja esperança.
 
Fotografia de Victor Jorgensen, 1945
 
         O mundo é um lugar estranho. Toda a gente sabe quem é Eisenstaedt e a sua fotografia ganhou foros de lenda. Existem diversos candidatos ao lugar de marinheiro voraz, entre os quais o lusodescendente Mendonça. Mas, à excepção da Wikipedia, ninguém se lembra de Victor Jorgensen. Morreu em 1994, era fotógrafo ao serviço da Marinha e, naquele dia, naquele mesmo lugar, fotografou também o casalinho osculante. A fotografia seria publicada no NewYork Times, mas, por um azar, não tem a expressividade e a força da imagem de Alfred Eisenstaedt. Por uma questão de metros, uma diferença milimétrica de ângulo e perspectiva. A vida é assim. De qualquer modo, Jorgensen teve uma existência boa e feliz. Correu mundo, publicou nas revistas mais conhecidas e prestigiadas. Porém, será sempre recordado como o autor-da-fotografia-parecida-à-de-Einsenstaedt. Num certo sentido, melhor fora que não tivesse estado em Times Square naquele dia 14 de Agosto. Há 70 anos, V-Day. Vitória, vitória, acabou-se a história.  
 
António Araújo
 

quinta-feira, 27 de agosto de 2015





impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

# 68 - HERBIE HANCOCK

 
 

 
“I think of myself as a jazz musician, because that’s my foundation”, afirmou Herbie Hancock em 2010 a propósito do seu último trabalho “The Imagine Project”. Contudo, ele prossegue o raciocínio dizendo que ao definir-se deste modo dá consigo separado do resto da comunidade musical; efectuando o subsequente passo cartesiano, deduz ainda que caso se designasse como “músico”, ficaria apartado da grande parte da humanidade que não pertence a esse grupo. Como é óbvio, Hancock conclui por se afiançar simplesmente como “um ser humano”.
A mais premente inferência que se pode retirar desta reflexão, digamos assim, é que Herbie Hancock, de tanto abrir os braços para que tudo caiba neles, se institucionalizou. Em contrapartida, esta estrénua vontade de consenso ofereceu-lhe, pelo menos desde o final do século passado, um estatuto senatorial e fê-lo receptáculo de sucessivas comendas, cortesias e funções honorárias – além de um Grammy, em 2008.
Há, portanto, que retroceder às fundações para descobrir o Herbie Hancock que importa, aquele que precisamente se distinguiu da restante humanidade, pela obra e pelo génio. Talvez seja mesmo necessário ir ter com o catecúmeno de 23 anos, que irrompeu na cena do jazz em 1963, convocado pela mão segura de Miles Davis a integrar o seu histórico “Segundo Quinteto” – nem a Gata Borralheira teve debute mais feliz… Convêm, no entanto, esclarecer que o viçoso pianista não viera do éter, pois no ano anterior ao seu recrutamento por Davis havia lançado uma obra de inusitada maturidade (“Takin’ Off”), onde ele e o também promissor Freddie Hubbard eram tutelados por Dexter Gordon no saxofone tenor.
 
 

 
Maiden Voyage
1965
Blue Note - 84195
Herbie Hancock (piano), Freddie Hubbard (trompete),
George Coleman (saxofone tenor), Ron Carter (contrabaixo), Tony Williams (bateria).
 
Poderá parecer exorbitante, mas para que o historial do “Segundo Quinteto” de Miles seja completamente narrado, há que acrescentar-lhe o episódio dos dois discos protagonizados por Herbie Hancock: “Empyrean Isles” de 1964 e “Maiden Voyage” de 1965. Gravados com 10 meses de intervalo, são inseparáveis no itinerário conceptual: ambos partilham semelhante inspiração náutica e atmosfera marítima. Só isto seria já novidade na criação do jazz: uma obra, um par delas, com enredo temático. Porém, o mais fascinante desta dupla de discos não é a sua originalidade, como era de regra à época – a fractura como nota dominante da década de 60 – mas a sua insólita forma de continuidade. Neles se inventa uma história alternativa: como seria o jazz modal sem Miles Davis? A pergunta tem mais do que um sentido.
O primeiro nexo é que à imagem dos colegas de trabalho que depois do serviço vão beber um copo juntos, também Herbie Hancock reuniu a formação de Miles… sem Miles. Aliás, “Maiden Voyage” aprimora e completa as propostas de “Empyrean Isles”, pelo simples e nada despiciendo facto de acrescentar mais um sopro ao grupo anterior, o saxofone tenor de George Coleman – o único “milesiano” que não comparecera antes. Isto faz com que à partida a situação de Freddie Hubard seja tão ingrata como a do intruso que penetra numa festa privada. O trompetista resolveu o óbice da forma mais inteligente: em vez de se juntar a eles, contrasta com eles; “Maiden Voyage” desprende uma música macia e graciosa, Hubbard é ressonante.
À interrogação sobre um outro percurso para o jazz modal, encontra-se resposta decisiva na arte de Hancock em inventar inesperadas progressões harmónicas. Mas outra chave, que acabou por determinar a carreira futura do pianista, é o seu insuperável condão para compôr peças trauteáveis, quase como se fossem canções. De modo que boa parte dos temas de “Maiden Voyage” deu logo entrada no cancioneiro do jazz – e com eles Herbie Hancock no galarim.
 
 
José Navarro de Andrade
 
 
 

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Mãe Filhinha.

 
 


 
Cuando el fotoperiodista Ángel López Soto (Buenos Aires, 1962) se enteró el año pasado de la muerte de su retratada, Mãe Filhinha, la noticia le marcó para siempre. No tanto por el hecho en sí —era centenaria—, sino porque la brasileña se lo había vaticinado años atrás. "La matriarca me dijo que iba a morir a los 110 años, como su madre. Y así sucedió". Si el argentino tiene que destacar a alguien para definir su trayectoria fotográfica, la elige a ella. La fotografió seis veces, la última, seis años antes de esa muerte premonitoria. Era la médium más anciana de su tribu en Cachoeira, una ciudad a 55 kilómetros de San Salvador (Brasil).
Lo que atrajo a López Soto de Cachoeira fue la fiesta de la Boa Morte (Buena Muerte), una celebración pagana de sincretismo religioso interpretada por casi una treintena de mujeres que forman la Irmandade da Boa Morte (Hermandad de la Buena Muerte). Las integrantes, descendientes de esclavas, rinden homenaje a las ancestras cada verano. El momento más íntimo de este festejo, que dura tres días, llega cuando entran en trance y se comunican con el más allá: "Es algo especial y reservado que les conecta a ellas y a sus seguidores con las fuerzas de los orixás [dioses de esta creencia de origen africano]", explica el fotógrafo.
"Mãe Filhinha tenía seriedad y alegría al mismo tiempo, pero sobre todo era prudente", recuerda López Soto, afincado en Madrid.
"La fotografía para mí es una puerta a la curiosidad", dice quien comenzó la profesión a los 22 años. Desde entonces, el argentino asegura haber estado en más de 70 países, entre los que destacan sus trabajos sobre India y sobre tibetanos exiliados por todo el mundo. 
La obra de este autor es un "invite a la reflexión". López Soto lleva a sus espaldas miles de instantáneas, pero sobre todo historias: "Las de la gente".