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terça-feira, 5 de maio de 2020

O estado de apocalipse.






          Os convidados comentam os cortinados e bibelots dos anfitriões depois de saírem; os telespectadores comentam mal espreitam um directo no ecrã. As críticas foram instantâneas quando se viu o belo tapete Lx Tiles numa sala de receber na residência do primeiro-ministro em S. Bento. E António Costa recebia a RTP, nas pessoas de António José Teixeira, hoje director de Informação, ontem assessor de outra actual figura televisiva, Luís Marques Mendes, e Carlos Daniel, o entra-e-sai-e-entra na RTP, sempre com a porta giratória à disposição pelas altas instâncias do poder. Costa estava duplamente em casa: na residência oficial; na informação do operador de que é representante máximo do único accionista.

          Os telespectadores tiveram razão em apenas comentar o que se via, porque, quanto ao que se ouvia, nada houve de novo na entrevista. Era 30 de Abril. Costa repetiu durante uma hora o que dissera à tarde durante mais de uma hora. Foi uma conversa de amigos; pena não terem servido um cálice de Porto.


          As três ou quatro câmaras mostraram brilhantemente o cenário. Os espectadores puderam manter a atenção visual na magnífica sala, melhor que os cenários das séries da Netflix ou da Fox Life. Não lhes escapou o tapete, mas um outro acessório, essencial, pôde transmitir incólume, de forma subliminar, a mensagem da entrevista. Era um livro que estava na cómoda por trás dos jornalistas. Um livro aberto. Um livro de arte, bem ilustrado. Muitas pessoas gostam de ter livros de arte na sala, para os convidados verem as capas. Transmitem o seu grau de sofisticação e aquecem visualmente a ambiência. O Arquitecto do Universo de S. Bento preferiu abri-lo, revelar o interior, transmitir a sua mensagem. Vêem-se, e viu-se ao longe, durante a entrevista, o verso da folha 209 e a frente da folha 210. Ei-lo!, ilustrando o primeiro-ministro e os dois conversadores da RTP, o Apocalipse do Lorvão![1] A mensagem foi clara: depois do estado de emergência, depois do estado de calamidade, fatalmente virá o estado de apocalipse!





          Do lado esquerdo, o monge desenhou e pintou a Nova Jerusalém, a Jerusalém Celeste, profetizada por Ezequiel e retomada por S.Paulo no Apocalipse. Está nas imagens, está no texto sagrado:

E levou-nos, em espírito, a um grande e alto monte e mostrou-nos a grande cidade, a santa Jerusalém, que de Costa descia do céu.
E tinha a glória de Costa; e a sua luz era semelhante a uma pedra preciosíssima, como um punho cerrado, como rosa resplandecente.
E tinha um grande e alto muro, com 12 portas, nas portas doze ministros, e nomes escritos sobre elas, que são os nomes das 12 lojas de Portugal.
Da banda do levante tinha três portas de lojas, da banda do norte três portas de lojas, da banda do sul três portas de lojas, da banda do poente três portas de lojas.[2]

          O verso da folha 209 do Apocalipse do Lorvão é muito rigorosa nesta representação da visão do Grande Arquitecto de S. Bento.[3] O artista dos reinados de Afonso Henriques e Sancho I mostra as 12 portas de lojas, os 12 ministros, mostra o Arquitecto do Universo entregando a Cidade a si mesmo, na sua ubiquidade, e em baixo, o Cordeiro, metáfora visual do povo, sob o poder da espada, ou a espada do poder.

          Na cidade celeste, continua Paulo, Costa defende-nos do novo coronavírus: «não entrará nela coisa alguma que contamine», nela só entrarão «os que estão inscritos no livro» de Costa, agora com máscaras ou viseiras.



          Na frente da folha 210, escolhida para mais inculcar nos espectadores a mensagem da entrevista, o autor do mosteiro de Lorvão escolheu a Água da Vida e a Árvore da Vida. Foi de novo literal e simbólico na representação icónica: duma torneira sai em jacto a Água da Vida, que «é a palavra do senhor primeiro-ministro», para a boca dum crente, que um ministro segura, qual algoz; «e, no meio da praça da Cidade, e de uma e da outra banda do Tejo, estava a Árvore da Vida, que produz doze frutos, dando seu fruto mês em mês a cada ministro».

          Agradeçamos à RTP ter-nos trazido, com tanta doçura, tão brilhante representação dos nossos anos por vir: o estado de apocalipse. «E, se alguém tirar quaisquer palavras do livro desta profecia, Costa tirará a sua parte da árvore da vida, e da cidade dele».

Eduardo Cintra Torres




[1] Datado de 1189; da livraria do Mosteiro do Lorvão; depositado por Alexandre Herculano na Torre do Tombo em 1853; edição fac-símile, Valencia, ed. Patrimonio, 2003.
[2] Os palimpsestos introduzidos malevolamente nas citações em todo este texto foram criados a partir do Apocalipse do Apóstolo S. João, 21:10-13, 22-1-2, 22-17, 22-19, da Bíblia Sagrada, trad. por João Ferreira de Almeida.
[3] A folha 209v e a folha 201f foram retiradas da versão digitalizada do original, disponibilizada no site da Torre do Tombo.











sábado, 11 de abril de 2020

A capa do Expresso.




          A capa da revista E, do Expresso de 4 de Abril de 2020 provocou muitos comentários negativos nas redes sociais por se considerar que compara o presidente da República e o primeiro-ministro portugueses a Winston Churchill, primeiro-ministro britânico durante a II Guerra Mundial.

          O texto inscrito na capa estimula, efectivamente, essa comparação: «Winston Churchill tornou-se um herói devido à II Guerra Mundial. Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa são líderes à altura desta pandemia?». Embora na forma interrogativa, a comparação existe no facto de a segunda frase estar a seguir à primeira, criando uma falácia consequencial: a frase B é consequência da frase A, caso contrário não estaria a seguir à primeira. Deste modo, o convite à comparação está presente: neste pequeno texto, a revista do Expresso considerou apropriado que o líder britânico (e mundial) na guerra de 1939-45 seja tomado como exemplo (hipotético, dada a interrogativa) para os leitores considerarem Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa como «heróis» «à altura» de Churchill. Ao mesmo tempo, a revista considera legítimo que se considerem no mesmo patamar líderes, quaisquer que sejam, em tempo de guerra real e líderes em tempo de «guerra», com aspas, como tem sido considerada a pandemia e a consequente coronacrisis. A hipótese do jornal é também atrevida por permitir-se imaginar essa comparação entre um líder de uma guerra que já terminou, que pode ser avaliada historicamente, e uma crise que não estará ainda a meio. Quer dizer, permite-se comparar uma avaliação do passado com uma avaliação do futuro, o que em termos científicos é um erro inaceitável e e termos jornalísticos é um erro gritante, se bem que prática comum do jornalismo desde há pelo menos uma década.

          Como acontece na imprensa, o texto remete para o interior, para artigos de Henrique Monteiro e de Ângela Silva (esta uma espécie de porta-voz de Marcelo Rebelo de Sousa na imprensa), textos que não analiso, porque analiso apenas a capa, que revela a ousadia de comparar os dirigentes políticos portugueses a Churchill.

          Essa ousadia é mais forte ainda na ilustração, porque a ilustração não implica a interrogação presente no texto verbal.

          A fotomontagem mostra uma fotografia de Churchill em plano médio aproximado, com o preto e branco acrescentado no fundo negro, a conotar o passado. Embora não seja possível verificar se o negro do fundo faz parte da fotografia original ou se foi acrescentado, pode dizer-se que ele serve os efeitos desejados pela capa, de transmitir um momento difícil («negro»), de concentrar toda a luz, e assim a atenção, na figura de Churchill e de o associar ao passado e a um passado para ser tomado como realista, dada a ligação que, historicamente se veio a atribuir, até hoje, entre o «realismo» e o preto e branco. Se aí temos o passado, o presente é dado aos leitores pela presença e pela cor da máscara acrescentada a Churchill. A máscara é um índice da actual pandemia.

          Churchill está, pois, de máscara antivírus, isto é, o leitor é confrontado com uma imagem do que nunca aconteceu na realidade, com uma falsificação histórica ao serviço de um conjunto de ideias. É uma falsificação porque nunca existiu; e é ao serviço de uma ideia, porque pretende transmitiu ideias através da junção da máscara a Churchill.

          Quais são essas ideias?

          Em primeiro lugar, que a pandemia e a coronacrisis se assemelham à II Guerra Mundial.

          Em segundo lugar, que quem se destaca(r) na coronacrisis é comparável a quem se destacou como líder na II Guerra Mundial.

          Em terceiro lugar, numa consideração multimodal (imagem e texto verbal), que Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa são comparáveis a Churchill. Se o texto verbal, se fica pela interrogativa (a revista não quis exagerar no texto verbal, que é mais facilmente desmontável criticamente por qualquer um), a junção da imagem e do texto transforma a frase verbal numa afirmação: quem lidera durante a coronacrisis é comparável a Churchill.

          Acrescento dois aspectos contextuais.

          Em primeiro lugar, não só Churchill nunca terá usado uma máscara daquelas (não há fotografias de Churchill com uma), como Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa, se a usaram, foi em raríssimas situações pontuais (visitas a empresas ou hospitais). Não a usaram em reuniões com mais ou muito mais de cinco pessoas, como as duas já realizadas no Infarmed. Como sabemos, Portugal não dispõe de máscaras suficientes nem para o pessoal hospitalar na luta contra a pandemia, quanto mais para a população.

          Em segundo lugar, a glorificação do presidente e do primeiro-ministro tem sido uma marca constante dos media do grupo Impresa, com destaque para o Expresso e para a SIC. Esta comparação verbal-visual de ambos com Churchill na capa da E, que considero um vómito, faz parte dessa linha editorial tornada notícias e reportagens.

          Em terceiro lugar, numa nota pessoal, pareceu-me, quando vi a capa pela primeira vez, que a revista censurava Churchill, calava-o com uma mordaça. Sendo ele um defensor acérrimo da liberdade de expressão e de imprensa, o que não acontece com tanta gente em Portugal, incluindo alguns líderes, afligiu-me.



Eduardo Cintra Torres
















quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

André Ventura semiotizado.






A fotografia de André Ventura numa igreja, em atitude de oração, é do fotógrafo Bruno Gonçalves, do Sol. São conhecidas as circunstâncias em que o repórter a captou, mas interessa-me primordialmente a própria fotografia (Figura 1). As circunstâncias, ou contexto, são relevantes para a conotação que aqui faço, que é validada pelo facto de André Ventura, presidente do partido Chega, ter reproduzido a notícia do Sol, encimada por esta imagem, no seu mural no Facebook. A análise não põe em causa o carácter jornalístico da fotografia. 


Figura 1

Na imagem, vemos o interior de uma igreja. Ao centro, André Ventura está ajoelhado. Foi captado em plano médio, do tronco para cima, o que permite em simultâneo uma intimidade do observador com o observado e a distância necessária para significar a oração em retiro. Veste fato escuro, com camisa branca e gravata vermelha, que assinala por uso habitual a sua filiação futebolística pelo Sport Lisboa e Benfica. Ventura está de perfil; pela disposição dos bancos, o observador compreende que olha na direcção do altar. Do punho direito esquerdo destaca-se o brilho de um botão de punho. Uma das mãos está pousada no banco de madeira, a outra está junto da boca. Não há mais ninguém visível. Depreende-se que não decorria uma celebração. Ao fundo, na parede de mármore, iluminada, destaca-se uma imagem de Santo António. De ambos os lados do santo, dois medalhões de mármore representam passos da Paixão de Cristo: do lado direito o momento em que Cristo é atraiçoado, do lado esquerdo, a crucificação. Ao nível do busto de Ventura encontra-se ao fundo a figura de outro santo, que adiante identifico. O gesto da mão de Ventura parece indicar o momento em que terminou o sinal da cruz. Ventura beija o dedo, um ritual que representa o cumprimento a Jesus Cristo. Não faz parte do sinal da cruz, caiu em desuso, mas é ainda comum entre as classes populares do Interior e também entre sectores católicos tradicionalistas. A fotografia foi tirada do corredor central da igreja. Ao lado de Ventura, o fotógrafo baixou-se para não o captar de cima para baixo, dado estar ajoelhado. Se o não tivesse feito, a fotografia perdia o normativo jornalístico e estético pretendido, que por norma capta o ser humano ao nível dos olhos. Contudo, o fotógrafo colocou a câmara abaixo da linha horizontal da cabeça de Ventura, obtendo deste modo um quase imperceptível contrapicado, em que o observador o vê ligeiramente de baixo para cima. É possível que, de novo, o objectivo do fotógrafo fosse o sentido estético, dado que pôde, assim, incluir na íntegra a imagem de Santo António, o que não teria conseguido se a câmara estivesse numa posição horizontal em relação a Ventura. Para obter o plano médio de Ventura incluindo a totalidade da imagem de Santo António, precisava do ligeiro contrapicado, o que acaba por transmitir uma posição de superioridade do observado face ao observador. Na composição, o perfil da face de Ventura ocupa o centro. Os dedos da mão e a cabeça de Ventura situam-se ligeiramente a cima do eixo vertical, como mandam as regras. Deste modo, traçando as diagonais do rectângulo, o que domina o triângulo superior é a cabeça de Ventura e a figura de Santo António (Figuras 2 e 3). 



Figuras 2 e 3


Ventura está virado para o lado esquerdo, que, na leitura de textos visuais ou verbais, corresponde ao início. A imagem transmite, pois, uma orientação de Leste para Oeste, contrária à realidade, por estar esta igreja urbana orientada sensivelmente Norte-Sul, o que o observador comum desconhece. Na fotografia, a luz vem de Oriente, a inspiração divina vem de Oriente. Esta representação é comum na arte religiosa ocidental e já foi aproveitada na fotografia de propaganda, como na imagem de John F. Kennedy igualmente rezando, sentado ou de joelhos, de perfil, com o olhar em direcção a Oriente, de onde vem a luz que ilumina o político norte-americano, o primeiro católico eleito para a Presidência dos EUA (Figura 4; fotografia de Yousuf Karsh, 1960). 


Figura 4

O perfil pode ter diversos significados. No caso em análise, como na fotografia de Kennedy, representa um desligamento entre o sujeito representado e o observador. O olhar de Ventura para o altar fá-lo parecer desinteressado do observador (e do fotógrafo). O vector do olhar, o mais importante na imagem, acentua a espiritualidade do que é mostrado, neste caso a fé católica de Ventura, que ele tem repetido na sua propaganda política. O olhar em frente também transmite confiança e igualdade na relação com Deus, enquanto o olhar para baixo significaria uma relação desigual, com o político numa posição inferior. É o que sucede noutra imagem captada pelo repórter no mesmo instante e que ele divulgou, a preto e branco, no seu mural no Facebook, em 25 de Outubro de 2019, no dia anterior à publicação da reportagem no Sol (Figura 5). 

Figura 5

O segundo vector mais importante é o da mão esquerda na boca, que remete para o seu silêncio e, por extensão, para a oração mental, confirmando, com o perfil, que a relação mostrada — a que Ventura pretendeu criar — é entre ele e o divino. Apesar da distância e dessa relação de Ventura com o que lhe está à frente, na imagem cria-se outra relação, entre ele e Santo António, pela composição, já atrás referida, e cuja envolvência se completa pelo fechamento referencial de ambos na mesma área da imagem, pelo braço do santo num movimento que abraça o que está — na imagem — à direita do observador, movimento que termina com o candeeiro atrás de Ventura. O centro da imagem, resultando da composição e do enquadramento, forma um triângulo: Santo António, o santo do lado esquerdo e Ventura (Figura 6). Este está no lugar que o observador imagina de outra figura católica na organização estética deste altar. Quem são os dois santos que, na predela, acompanham este altar lateral? Do lado esquerdo da imagem é S. Nuno de Santa Maria, ou seja, Nuno Álvares Pereira elevado a santo. Traz a capa de carmelita, um livro e a espada. Tapado por Ventura, está S. João de Deus, santo português nascido em Montemor-o-Novo em 1495, protector dos pobres, padroeiro dos doentes, dos hospitais e dos enfermeiros. Ao substituir na imagem S. João de Deus na triangulação do altar dos santos portugueses, Ventura fica no seu lugar, criando visualmente uma nova trindade, confirmada pela composição da imagem: Santo António, São Nuno e Ventura — uma trindade portuguesa, por acréscimo abençoada e iluminada.  O lugar que Ventura ocupa na igreja (de S. Nicolau, em Lisboa) aparenta ter sido escolhida com precisão, para permitir o enquadramento que vemos na foto. Dificilmente terá sido coincidência, pois Ventura conhece bem esta igreja, dos seus tempos de estudante, tendo vivido numa residência anexa e servido como acólito mas, mesmo que o fosse, é irrelevante, pois o que conta é o que o observador vê: Ventura em triângulo religioso com santos portugueses: um deles pregador e popular, o primeiro santo nascido em Portugal; outro militar, salvador da independência em Aljubarrota; outro (escondido) protector dos pobres e dos serviços de saúde. Em consequência, a fotografia pode funcionar como propaganda de Ventura, mesmo não tendo sido essa a intenção do fotógrafo. A intenção é aqui irrelevante; o que conta é o que se vê e como se é levado a ver, pela composição dos referentes no rectângulo da imagem. Essa função de propaganda existiu no momento da captação, em 25 de Outubro de 2019, no primeiro dia de Ventura como deputado, quando convidou media para o acompanharem de manhã, incluindo à Igreja de S. Nicolau, função que ficou selada quando Ventura usou o link do artigo do Sol de 22 de Fevereiro de 2020 no seu mural no Facebook, no dia seguinte. De representação do seu catolicismo, a fotografia passou, no mural, a representação de um catolicismo superior ao da própria Igreja Católica, e a contra-corrente, como ele se apresenta também na política. Comentando a notícia, intitulada «D. Manuel Clemente cancela audiência a André Ventura», escreveu no Facebook: «Custa ver que o sistema está corrompido e a usar todas as armas baixas contra o CHEGA. Mas a mim, pessoalmente, custa-me ainda mais ver a Igreja, que também é a minha Igreja, deixar-se condicionar e intimidar pelo poder instalado. Não foi isso que Cristo nos ensinou. Mas eu sei que a voz do Povo é a voz de Deus, e essa voz está cada vez mais perto de mim.» Quer dizer, não só a Igreja, representada pelo cardeal-patriarca, está intimidada pelo poder instalado, como o alegado cancelamento da audiência (poderá ter sido adiamento) é considerado por Ventura um ensinamento contrário a Cristo; mais ainda, a voz do Povo, com maiúscula, está em crescendo próxima de Ventura e, por antítese, mais longe da Igreja, ou esta mais longe dela. Apesar de o Patriarcado negar qualquer relação do adiamento ou cancelamento com declarações de Ventura sobre o caso Marega, Ventura preferiu reagir de imediato e considerar o cancelamento ou adiamento da audiência com D. Manuel Clemente «um dos episódios mais tristes» da sua vida política. Deste modo, a fotografia serve este discurso, pois mostra Ventura em contacto directo com Cristo, que está em todos os altares, e sem a mediação da Igreja, de que não se vê nenhum ministro na imagem. Santo António, doutor da Igreja, português de Lisboa, e com uma popularidade extraordinária, que atravessa quase oito séculos de História, santo milagreiro, também ele falava sem ser ouvido por quem devia. Essa atitude, que o Padre António Vieira utilizou para o seu sermão de Santo António aos Peixes — aos peixes, «já que os homens se não aproveitam» —, é indirectamente retomada por Ventura: se a hierarquia da Igreja não o ouve, falará aos peixes, isto é ao Povo com maiúscula. O político apresenta-se, assim, como vítima, igualmente da Igreja que «é também a minha». Sente-se atraiçoado pelos seus e crucificado, como Cristo no dois medalhões na Igreja de S. Nicolau visíveis na fotografia. O gesto mediático de visitar a Igreja de S. Nicolau, a posição cirúrgica ao lado do altar dos santos portugueses e o aproveitamento posterior da fotografia de um repórter fotográfico revelam alguém com uma capacidade invulgar de utilizar a imagem, com objectivos simbólicos. A fotografia, captada num momento organizado para os media, fica a significar a sua mediatização como político de fé, perseguido e injustiçado como Cristo, líder contra-corrente, capaz de falar directamente com ele e com o povo, sem aparente intermediação, e identificado com santos portugueses. A fotografia, pelo poderoso significado iconográfico que permite, diz mais do que o que pode ser dito, diz mais ainda do que o próprio Ventura diz, e ele diz muito pelo discurso verbal. Julgo que voltaremos a vê-la. 


Eduardo Cintra Torres









domingo, 9 de junho de 2019

Uma sinopse no Purgatório.

 
 
 
 
 

 
 
 
Uma sinopse no Purgatório
 
Em 2015, apresentei à SP Televisão, a seu pedido, uma sinopse para uma série ficcional, destinada a um canal generalista. O texto de seis páginas entrou no silêncio do Purgatório. Há, dias, porém, vi, numa rua da minha freguesia, um anúncio publicitário de uma produção em estreia na SIC, Golpe de Sorte. A ideia-base era a da minha sinopse. Muito alterada, para tentar atrair mais espectadores, lá estava o pobre que ganha o EuroMilhões e à sua custa aprende a aplicá-los. Fui ao purgatório do meu computador e desencantei, silencioso numa pasta sem uso, o texto da minha sinopse. Ei-lo.
 
João Pateta
 
Sinopse para uma série televisiva curta
I
 
João é empregado de balcão, mas mais que tudo um faz-tudo, num desses bares de vila do “país real” a que se pode chamar tasca. Chamam-lhe pateta porque, se faz tudo, faz tudo mal. Ou assim acham. Ele tem sempre uma razão lógica para fazer como fez. E tenta explicar porque lavou assim o chão da tasca ou porque arrumou daquela maneira os copos.
A tasca é dum Manel, que dá emprego ao João porque ele faz tudo, mesmo que mal, e não há na vila quem queria fazer tudo e pelo mesmo valor, que é menos de metade do salário mínimo.
O João é alto, tem uns 20 e poucos anos, e aparenta ser aparvalhado, mas nas suas explicações percebe-se uma inteligência diferente. Não diz o que sabe. Se começa a falar, começam a gozar. Se fala de alguma coisa que leu, só o facto de ele dizer que leu é risível. Que fique bem claro: ele não é pateta. Todos acham que é, mas não é.
A mãe é, ou fica no princípio da narrativa, meia entrevadinha. Bem da cabeça, mas diminuída. O pai, que trabalha no campo, perde assim a mulher-criada, que também trabalhava no campo e fazia tudo em casa, enquanto ele via novelas e futebol.
O João leva porrada do pai, uma vez por outra, e, se não reage, é por ter na cabeça o ancestral respeito. 
Com a mãe entrevada, passa o João a ser o criado da casa, de manhã à noite.
Numa vila pequena há sempre relações sociais, escondendo-se quase sempre as dissensões mais fortes sob o manto grosso da hipocrisia dos campos. Quando há dissensões, o furúnculo rebenta e chega-se amiúde a vias de facto. O João, considerado pateta, assiste e sorri.
Há a Joana, que é uma empregadita duma fábrica à saída da vila. Também faz limpezas. Como estão ambos na base da sociedade, a que apanha com o pó dos carros que passam, dá-se bem com o João.
Pela tasca do Manel passam outras figuras. A maioria goza o João, com simpatia, uns, com superioridade displicente, outros. São figuras para desenvolver se esta estória passar da sinopse.
O João vive a vida possível. Não acabou o Secundário porque tinha de ajudar os pais. O seu único escape é, no computador, ver outras vidas e outras realidades nas notícias, muitas notícias, seguir um curso de inglês no Youtube e, principalmente, jogar xadrez. Começou por gostar das peças, que parecem formar uma estória, reinos simples, não como os da Guerra dos Tronos, mas simples até ter começado a jogar. E joga de noite, muito de noite, no seu quarto. 
O João deveria ter muitos furúnculos sociais à flor da pele, mas encolhe os ombros e deixa-os para trás. Se não pode mudar o seu pequeno mundo, não vale a pena estragá-lo mais.
 
II 
 
Mas… há sempre um mas, mas um dia por dá cá aquela palha, ou por dá cá aquela garrafa, o pai dá-lhe porrada e o João viu ali uma grande injustiça. Não era maior que as outras. O furúnculo é que estava pronto para rebentar. Era uma terça-feira à tarde, no Verão, no dia das festa local, dedicada ao santo padroeiro. Ouve-se a música pimba e do rancho por todo o lado. O João tinha passado na festa, tirou uma rifa, viu a Joana, e outras personagens que hão-de brotar, ganhou uma ginjinha nos tirinhos. O pai andava por lá, a beberricar; a mãe, em casa, entravada.
E foi depois do almoço que o pai, já bebido e chateado com a vida (pudera), se atirou ao João e o João não se aguentou e só não bateu no pai porque, já com a mão no ar, a recolheu sob o efeito do ancestral respeito. Mas as coisas não ficaram como antes. O João saiu de casa, bateu com a porta, andou a pé pelos campos, a ruminar ah!, se eu pudesse sair daqui. Ao som da música pimba da festa a entrar-lhe pelo cérebro, amaciou, deu-se por vencido pelas circunstâncias, e voltou à vila, não a casa, mas à vila, não foi à tasca, que estava fechada, por luto do Manel, mas andou por ali, e, olha! na montra da loja-que-vende-tudo viu uma caixa dum jogo de xadrez. Entrou, pediu para ver, abriu a caixa e abriu os olhos. As peças de plástico, ora preto, ora branco, estavam em saquinhos de plástico transparente e o tabuleiro, de cartão, dobrado em quatro, forrava o fundo da caixa. O João olhou para o autocolante por baixo da caixa: muitos euros para a carteira dele. “Carteira dele” é maneira de dizer, porque ele não tinha carteira, tinha moedas no bolso. Não podia. Encolheu os ombros: pensou, continuo a jogar na Internet. E, com as moedas na mão, somando mentalmente os 50 cêntimos duma moeda, com quatro moedas de 20 cêntimos, cinco de dez cêntimos e doze de dois e um cêntimo, encolheu outra vez os ombros e jogou no Euromilhões. Ainda lhe sobraram dezassete cêntimos.
Só percebeu que ganhou 112 milhões de euros limpinhos de impostos quando, nos dias seguintes, deram notícia nos telejornais de que se procurava na vila o vencedor do jackpot de terça-feira.
 
III
 
O que faz um vencedor do jackpot de Euromilhões? Falou-se muito disso na vila. A festa anual ficou esquecida perante a realidade do prémio e o sonho que cada um constrói. O João ficou calado, se bem que com a cabeça a andar à volta, mas, como o acham pateta, ninguém notou. Na loja- que-vende-tudo não desconfiam do João, não se lembram de quem jogou, até porque um pateta não entrava no esquema mental dos que se deitava a adivinhar o possível vencedor. Ainda por cima, naquela terça-feira tinha havido muitos forasteiros na vila que apostaram na loja-que-vende-tudo.
O João sabe que tem tempo para levantar o prémio. Esconde o boletim vitorioso nalgum sítio improvável, e pode ser que os argumentistas utilizem essa circunstância para algum suspense. Mas não o perde, porque esse é o suco da barbatana deste argumento. Vai arquitectando coisas na sua cabeça. Continua a trabalhar na tasca do Manel, mas invoca ter de ajudar a mãe para sair mais cedo. Lê estupidamente notícias. Casos anteriores. Não confia a ninguém o seu segredo. Ninguém desconfia: ele continua a lavar o chão da tasca.
E, uma manhã, depois de receber os 200 euros mensais do Manel, o João vai a casa almoçar , dá um beijo à mãe, diz ao pai, que lhe pede o dinheiro, que ainda não recebeu, e, quando sai, já não volta à tasca. Segue por outros trilhos, com medo que o vejam, porque na vila sempre alguém vê os nadas do quotidiano, e apanha a carreira para Lisboa. Pela janela da camioneta vê muitas coisas, as luzes da capital ao princípio da noite, um avião que levanta voo em direcção ao Ocidente.
 
IV
 
Chega de noite ao centro da cidade. Anda por ali à procura dum lugar onde ficar e entra numa pensão, a Pensão Estrelinha, onde lhe perguntam se é para ficar uma hora ou passar a noite. O João acha que uma hora não dá para dormir e fica a noite, pagando adiantado e recebendo a toalha na recepção. 
De manhã entra num banco e pergunta o que é preciso para abrir conta. Diz que volta mais tarde. E faz o mesmo noutro banco. E depois noutro. E depois noutro. Segundo as contas que fez, terá tempo para abrir quatro contas bancárias no mesmo dia. Vai depois à Santa Casa e o que lá se passa terá de ser investigado pelos argumentistas, porque este narrador não conhece os detalhes.
Ao fim do dia o João tem contas em quatro bancos, assim distribuídas: já depois do imposto pago, que o João espera que seja, em pequena parte, usado pelo Serviço Nacional de Saúde para acudir de imediato à mãe, 30 milhões, mais 30 milhões, mais 30 milhões, mais 22 milhões. Esta última conta é o fundo de maneio do João. O João tinha tido umas cenas caricatas nos bancos, porque indagou das condições para abertura de contas com mil euros e com muitos milhões. Os bancários, com medo de maltratarem o cliente, que podia queixar-se, explicaram-lhe. Não o enganaram, porque o João já tinha andado a farejar na Internet. E pensava que em boa hora tinha posto a Internet em casa, à custa do seu dinheiro e dumas chapadas do pai.
Agora, ao fim do dia, o João subiu a pé, porque não se acomodara à ideia de que uma pessoa como ele não anda a pé, ao Jardim de S. Pedro de Alcântara, dominou Lisboa com o olhar, abriu os braços, respirou fundo, e gritou para a cidade: “Lisboa, agora nós!”
 
V
 
Na vila as coisas tiveram o desenvolvimento narrativo que se espera de um desenvolvimento narrativo numa vila: logo no dia da fuga, ao pai faltou-lhe o João, para tratar da mãe e do comer, e à mãe mais ainda, porque o João tratava dela. O João calculou este sacrifício da mãe como uma jogada de xadrez em que se dá um peão ao adversário. O pai calou-se, como o rendeiro de Raul Brandão, que era um muro de silêncio. Só no dia seguinte, ao fim do dia, o Manel foi ter com o pai do João quando ele andava a cavar batatas. Precisava dele para fazer tudo no tasco. O Manel e o pai do João não jogavam xadrez, mas sabiam quanto eram dois mais dois: perceberam que o João era, provavelmente, o vencedor do jackpot. Em vez de um, dois: ficaram ali especados, olhando-se nos olhos, dois como que rendeiros de Raul Brandão. 
O Manel pôs a novidade a correr e, se uma notícia qualquer, como o da combinação da D. Arminda a ver-se por baixo da bainha do vestido, já corre depressa numa vila como esta, a suspeita de o João, o pateta, ter ganhado o jackpot — a maior notícia na terra desde a inauguração do monumento aos dois soldados locais mortos na batalha de La Lys — girou pela vila à velocidade da luz. O pai do João não disse à mulher, foi a Jaquina, que foi lá ajudá-la na limpeza e na lida da casa. A mãe sentiu falta do filho, bondoso para ela, mas sorriu, respirou fundo como se nunca o tivesse feito, e viveu feliz no silêncio das fraldas e da cama abandalhada. Coisa estranha, confiava na sagacidade e no bom senso do filho. E este, à distância, sabia que a mãe reagiria assim. O rosário tem muitas contas. 
Sem notícias do João, a vila não teve outro remédio se não esquecer o assunto. Se voltava, o falatório era para maldizer o ingrato, o malandro, esqueceu-se da gente, e essas coisas ditas por gente que nunca se lembrava do João quando ele lá vivia. A vila nem mesmo soube dos envelopes com dinheiro vivo que o João mandava para a mãe, sem nenhum bilhete e como remetente um apartado. Era muito dinheiro, mas ela não sabia o que fazer com ele, nem como. Nem sabia o que dizer ao marido, e por isso não lhe disse. Quando fosse à consulta da caixa na sede de distrito, aí, sim, já teria de ter algum plano. Coisa para argumentistas.
 
VI
 
E o João, cadê o João? Já não é João. Agora é Francisco, porque também se chama Francisco, só que o nome não ia tão bem com pateta e acabou por ser apenas João lá na vila. Francisco era o nome do padrinho, que emigrou para os States e nunca mais disse nada. Francisco — Francisco Oliveira, o apelido do avô materno, esquecido até então no cartão de cidadão. O João, agora Francisco, continuou a jogar xadrez, mas num tabuleiro de mármore e peças de marfim, na sua casa nova. Já lá vamos, mas primeiro o xadrez: que grande tabuleiro!, quase um metro por um metro! E dois cadeirões, um de cada lado, onde o Francisco se senta à vez para jogar contra si mesmo. Os argumentistas terão de estudar xadrez, porque isto não vai lá sem umas jogadas de vida inspiradas no jogo.
E o tabuleiro estava numa mesa à frente dos grande janelões da casa do Francisco, com vista panorâmica sobre Lisboa. Não, não comprou a casa. Haveria de comprar depois. Alugou. Pagou logo seis meses adiantados, para os arrendatários, uma empresa com nome estrangeiro, não o chatearem. Era gente à portuguesa, que desconfia de um Francisco ainda com ar de João pateta, mas que se cala quando vê o dinheiro. 
Ora, e aqui é que está a novidade, os leitores desta sinopse podem antecipar que o agora Francisco vai espatifar a fortuna em dois anos, como outros. Mas não é assim. O João agora Francisco é jogador de xadrez. Paciente. Pensador. Sabe que a táctica está ao serviço da estratégia. O dinheiro que espatifou foi um investimento: ele já não pode ser João, já não pode ser pateta. Ele pressentiu que o dinheiro não dá vida se a vida não der dinheiro e que um homem muito rico ou é diferente de si mesmo quando muito pobre ou será apenas um muito pobre com uma fortuna momentânea.
Portanto: o João não muda apenas para Francisco. O João muda, apenas. A psicologia social e a sociologia haveriam de explicar esta mudança. Depois dos gastos necessários para passar de João a Francisco e adquirir naturalmente um outro lugar, ele, que ainda é novo, muda rapidamente, mais por dentro do que por fora. O Zuckerberg também anda sempre de T-shirt. É claro que os argumentistas serão tentados a escrever humor fácil com as situações do João pateta a ver coisas que nunca viu, mulheres como nunca viu, e outros etc. que nunca viu, mas não devem ir por aí, essas situações certamente existem, mas terão de ser mais subtis e sem fazer humor de revista. 
E, ui!, tanta coisa que o João agora Francisco nunca tinha visto. Há episódios com mulheres, há. E tanto podem ser soviet girls do Elefante Branco como tias das discotecas in. Ele há cada uma! É que nem na Internet! O João aprende muito com elas, dentro da especialidade de cada uma. 
Este contacto com o mundo dos “de cima” dá muitas cenas interessantes e divertidas, coisas do mundo das tácticas, mas não esqueçamos a estratégia: o João agora Francisco aplica o dinheiro. Investe. Compra e vende. Encontra-se com empresários, banqueiros e até políticos, valha-lhe Deus. Os 112 milhões passaram a 97 em alguns meses, mas depois a fortuna começa a crescer. O agora Francisco é avesso à vida social. Entrega-se aos negócios e, está bem, tem umas gajas. Lá na vila não sabem dele. A mãe, sim, que se mudou para onde a tratam bem, depois de ter ido à consulta da caixa. O pai anda a plantar batatas e a beber na tasca do Manel. Diz que os mata a tiros de caçadeira se os vir pela frente. Ninguém o leva a sério, mas, sabe-se lá!, os argumentos precisam de momentos fortes. O agora Francisco comprou a fábrica da vila, aquela onde trabalha a Joana, e terrenos por lá, sem nunca lá voltar. Fala com a mãe pelo telefone e visita-a. A mãe tem um iPhone e um iPad.
E não há contrariedades? Há. O Francisco ainda João é enganado, quase ou mesmo, por gente dos negócios; pelas namoradas números quatro e sete; a mãe morre, depois de mais uma visita-surpresa do filho, o marido é informado e quase que mata o filho; perde milhões no descalabro de um banco nacional; compra uma herdade que não existe; investe numa telcom que vai à falência: é o que se quiser, como na vida. Mas isso faz crescer o João agora Francisco. Depois morre o pai, para compensar João agora Francisco do desgosto da morte da mãe. O homem não resistiu a uma tarde na torreira do campo depois de uma manhã bem bebida.
 
VII
 
O João agora Francisco parece um estrangeiro, mas não. É também um coração mole, mais João do que Francisco. Dá-lhe saudades da terra e da Joana, a única que não gozava com ele. Arranja maneira de se encontrar com ela. Lá vem a Joana, com um vestido da modista da vila, desengonçada. Há um muro entre os dois, que cresce quando ela lhe diz que o Moinas lá da vila, o carteiro, anda de olho nela. Ele oferece-se para padrinho e que lhes paga tudo.
Se quiserem um final feliz, com o João a encontrar a cara-metade certa, não há-de ser a Joana. Poderá ser a Cristina, filha do farmacêutico, uma força viva da terra, senhor de fato e gravata, quer na missa, quer as reuniões da sociedade civil. A Cristina era uma que nos tempos da vila não lhe ligada pevide, que o gozava nas costas com os amiguinhos, mas o João não via, tinha então esse sonho, e aos pobres é permitido sonhar. Agora, ao Francisco pôs-se-lhe na cabeça que havia de a conquistar, era uma espécie de Francisco a vingar-se do João. Mas nem Joana, nem Francisca. Esta agora queria o bem bom do Francisco, mas, vejam lá, foi o João que a mandou dar uma volta, num restaurante de Lisboa com duas estrelas Michelin. Mas pode ser que a estória acabe com o João agora Francisco dono da vila, a regressar em triunfo, com a banda local e depois um concerto da Orquestra Gulbenkian no novo Centro Cultural e Desportivo João Francisco Oliveira, que ele ofereceu à vila. E, depois, o João Francisco, agora com 28 anos que já parecem 38, parte num jacto privado de Lisboa para Nova Iorque. 
 
Fim
 
 
Eduardo Cintra Torres