Escócia, Dezembro de 2022
Fotografias de António Araújo
“«There'll always be an England» to stand before the world as a symbol and a
citadel of freedom."
Jorge VI, 23 Setembro 1940
Há 70 anos, o imbatível cerimonial
britânico voltava a impressionar o mundo. A despedida do Rei que partira
demasiado cedo, tolhido pela Guerra, pela doença e pelo indesejado peso da
Coroa, foi um momento extraordinário de pompa fúnebre.
Às portas de Westminster Hall, ao
som do incontornável Big Ben, das salvas de canhão e das marchas fúnebres, o
grande cortejo arrancou com milhares de soldados com armas invertidas, em sinal
de luto, a desfilar pelas ruas de Londres com o corpo do último Imperador da
Índia que foi também um improvável herói e um rei amado e respeitado,
genuinamente, pelos seus súbditos, que agora o choravam.
Se o reinado de Jorge VI começara
sob o peso da abdicação do irmão e com uma opinião pública favorável ao
casamento de Eduardo VIII com Wallis Simpson, a sua postura corajosa e
inspiradora durante a Guerra transformou-o num monarca respeitado, querido e
próximo do povo. A fibra da sua mulher, a Rainha Isabel, foi uma parte
fundamental dessa mudança de atitude da opinião pública. A célebre
frase – “The children will not leave unless I do. I shall not leave unless their
father does, and the king will not leave the country in any circumstances,
whatever.” - ficou para a História da resistência britânica.
O esforço militar britânico para
libertar uma Europa em que era o único farol de liberdade teve reflexo numa
nutrida representação militar de aliados mas também de países de neutralidade
dúbia. Portugal, que decretou luto nacional pela morte do Rei, teve também
uma representação militar dos três ramos das Forças Armadas: o General Barros
Rodrigues, Chefe do Estado Maior do Exército, o General Santos Cintra, então Comandante
Geral da Aeronáutica Militar, e o Vice-Almirante Oliveira Pinto, Chefe do
Estado Maior Naval.
Mas foi o então Ministro dos
Negócios Estrangeiros do governo de Salazar, Paulo Cunha, que liderou a
delegação. Foi um dos portugueses que desfilaram pelas ruas de Londres e depois
de Windsor, no último adeus a Jorge VI. Os outros eram o futuro embaixador
Gonçalo Caldeira Coelho e o Secretário do Ministro (e futuro professor
universitário) Fernando Pessoa Jorge, falecido em 2020, e alguns militares listados na edição especial
da London Gazette que detalha o cortejo.
Cinco
reis, quatro rainhas e uma grã-duquesa, os presidentes de França, Turquia e
Jugoslávia, uma vintena de príncipes, muitos ministros dos estrangeiros,
incluindo o americano Dean Acheson e o alemão Konrad Adenauer. Dos muitos que atravessaram
Londres a 15 de Março de 1952, faz agora 70 anos, são muito poucos os que ainda
vivem para contar. E no que se pretendia a despedida de um herói da Segunda
Grande Guerra, símbolo da resistência do mundo livre à tirania de Hitler, houve
ainda reminiscências das feridas profundas abertas pelo conflito.
A
Rainha Isabel II tinha então 25 anos; tem hoje 95.
O
Duque de Kent tinha 16 e hoje tem 86 anos. Seguiu, imberbe, ao lado do tio, o
ex-Rei Eduardo VIII, então Duque de Windsor. Este regressara a Londres para o
funeral do irmão e sucessor, sozinho, sem a sua Wallis por quem deixara um
Império inteiro. Pareceu inquieto e desconfortável, de uniforme, num papel que
já não era o seu. Por várias vezes durante o cortejo se inclinou para o jovem
Duque de Kent, parecendo dar-lhe conselhos, como para aliviar a tensão.
Alberto
da Bélgica, então Príncipe de Liège, tinha 17 e tem hoje 87 anos. Haveria de
reinar como Rei dos Belgas entre 1993 e 2013, mas a sua presença em Londres, em
representação do seu irmão, o igualmente jovem e inseguro Rei Balduíno,
suscitou uma crise política e constitucional em Bruxelas, a acrescentar às
muitas que se sucediam desde o fim da Guerra. Leopoldo III, pai de ambos, rendera
a Bélgica a Hitler em Maio de 1940 apesar dos avisos, por escrito, de Jorge VI,
para que fosse menos herói e não se deixasse capturar.
Os
ingleses
viram a capitulação belga como uma traição insuportável. O governo belga
fugira para o exílio. O Rei decidira ficar para lutar, mas, inesperadamente, decidira
capitular, arriscando a prisão e expondo o flanco britânico aos alemães. O antigo Primeiro-Ministro inglês Lloyd George
escreveu que a rendição de Leopoldo fora o mais esquálido exemplo de perfídia e
de pusilanimidade: “You can rummage in
vain through the black annals of the most reprobate Kings of the earth to find
a blacker and more squalid sample of perfidy and poltroonery than that
perpetuated by the King of the Belgians.”
Churchill
foi mais cauteloso do que Lloyd George, mas não deixou de isolar o Rei
Leopoldo, elogiando apenas a bravura do exército belga e o Governo no exílio.
Mas tentou dizer que o Rei capitulara sem aviso prévio, o que era mentira,
porque Leopoldo prevenira o Rei Jorge VI e esteve tentara demovê-lo. Este tema foi
polémico para os resto da vida de Churchill, com alterações à versão francesa
das suas memórias para tentar conter a ira belga.
Em
qualquer circunstância a postura de Leopoldo foi tudo menos de lealdade para
com os Aliados. Tentou, ao longo dos anos, retirar legitimidade ao governo no
exílio e manteve-se firme nesse desiderato até ao fim – embora esse governo
tenha mais tarde, ele próprio, chegado a defender a rendição... Mas Leopoldo nunca
aceitou a qualificação como traidor. Sentiu-se injustiçado. Afinal, do seu
ponto de vista sacrificara-se pelo seu povo, fora preso durante anos pelos
nazis e impedido de regressar mesmo depois do fim da Guerra. Rejeitou
repetidamente as injúrias de Churchill e dos franceses.
Jorge
VI não retirou a Leopoldo a Ordem da Jarreteira, como fez com o Imperador do
Japão, apesar de instado a fazê-lo. Tinha-lha concedido em 1937, quando
Leopoldo fez uma Visita de Estado a Londres. Mas o Rei belga foi efectivamente
marginalizado. Não foi convidado para o casamento da Princesa Isabel e do
Príncipe Filipe em 1947 e ficou um clima de tensão que voltou a fervilhar em
pleno em 1952.
Leopoldo
III acabou por abdicar quando, ao regressar a Bruxelas em 1950, depois de um
referendo que determinou o regresso do exílio (o seu irmão Carlos era o
Regente), se viu rodeado de protestos violentos e mortes. Sucedeu-lhe, um ano
depois, o seu jovem filho Balduíno, figura frágil que viria a relevar-se um rei
absolutamente notável.
Quando
a corte belga, aos poucos dias da morte de Jorge VI, invocou uma questão de
protocolo e etiqueta para não enviar a Londres o Rei mas antes o seu irmão
Alberto, instalou-se uma crise política. O Primeiro-Ministro tentou, em vão,
que a imprensa não publicasse o comunicado da Casa Real. Tentou demover o Rei
da sua decisão. Também em vão. Tudo foi visto como uma vingança de Leopoldo III
e uma evidência da influência desmesurada deste e da sua segunda, belíssima e
popularmente odiada mulher, Liliana, Princesa de Réthy, sobre o seu filho, o
Rei.
Chamaram-lhe,
na imprensa francófona, o drama da corte de Bruxelas. O argumento de que o Rei
Balduíno não podia ir porque não tinha ainda visitado oficialmente o Reino
Unido era facilmente desmontável e foi ridicularizado, trazendo novas sombras
sobre o início do seu reinado e voltando a agitar as bandeiras do
colaboracionismo belga durante a Segunda Guerra.
Foi
uma lição aprendida em Bruxelas: em Março de 1953, mesmo sem visita oficial, o
Rei Balduíno voou para Londres para participar no funeral da avó da Rainha
Isabel II e mãe de Jorge VI, a Rainha Maria. Isabel II retribuiria o gesto. Em
Agosto de 1993, participou em Bruxelas no funeral do Rei Balduíno, partindo,
também ele, de forma súbita e inesperada. Uma gaffe protocolar, contudo, havia de marcar a presença britânica: o
Príncipe Filipe, Duque de Edimburgo, compareceu com a banda de grã-cruz a Ordem
do Leopardo, do Zaire, antigo Congo Belga, em vez da Ordem de Leopoldo, da
Bélgica... Mas não se tratou de um insulto à antiga colónia, nem ao antigo
colonizador. As ordens estariam, afinal, arrumadas por ordem alfabética.
*
* *
A
urna de Jorge VI, coberta com o Estandarte Real e com a Coroa Imperial, o
Ceptro (com o maior diamante do mundo) e o Orbe tremeluzindo sobre ela, foi
puxada por dezenas de marinheiros. A seu lado caminharam duas pessoas que
viriam a ser relevantes no futuro da Família Real: à frente, o
ajudante-de-campo do Rei, Peter Townsend, que viria a causar o primeiro
escândalo do reinado de Isabel II, quando se conheceu a sua relação com a
Princesa Margarida; logo atrás dele, o Visconde Althorp, futuro Conde Spencer e
depois pai da Princesa Diana e avô do futuro Rei de Inglaterra, o actual Duque
de Cambridge.
O
esplendor da última viagem foi exemplar. Ao som dos passos dos soldados e das
marchas militares, a urna, garrida de cores heráldicas e diamantes, passou por
ruas sombrias, apinhadas de gente enlutada. A dor pela partida do Rei era
genuína e, em primeiro lugar, na sua família. A Rainha Maria enterrava o seu
terceiro filho e a urna deteve-se junto à janela de Marlborough House, de onde
assistiu. A Rainha Isabel ficava viúva aos 51 anos e assim permaneceria por
mais 50, num vazio súbito que teve dificuldades em preencher. O povo, ainda
dilacerado pelas feridas da Guerra, perdia agora um dos símbolos da sua luta.
George VI
Now
he has laid the burden down,
Even
a King at last may rest:
Now
he puts off the unwelcomed crown
That
heavy on his temples pressed.
The
frets of state, the bitter wars,
The
cares that filled that anxious breast
These
marked him like a soldier’s scars.
But
even a King at last may rest.
Grant
him Thy peace, O Lord, we pray.
Who
of us all has earned it best,
Who
wore for us his life away -
Give
thou this King a warrior’s rest.
Edward Shanks (1892-1953), Sunday Times, Fevereiro 1952
Em Windsor, o som estridente das gaitas-de-foles
escocesas acompanhou o cortejo desde a estação de comboios, com os mesmos
dignitários, a mesma solenidade, a mesma dor popular. Na Capela de São Jorge,
incrível panteão de tantas dinastias, depois de uma brevíssima cerimónia
religiosa, o Rei-de-Armas da
Jarreteira pronunciou os títulos do falecido Rei, enquanto a urna baixava
dramaticamente, concluindo de forma solene um reinado curto e heróico, de
resistência e muita dor, mas de firme defesa da liberdade que continua a ser
timbre do Reino Unido.
Ademar Vala Marques
Fevereiro 2022
(Imagens da imprensa da época)
“Desde
a morte do principe consorte, essa viuva é viuva como é rainha –
magnificamente. Tem a tranquillidade de um ser indifferente a tudo, excepto ao
dever.”
Branco e Negro – Semanario Illustrado,
27 Junho 1897
“Only the passage of time can filter out the
ephemeral from the enduring.”
Isabel
II, Discurso ao Parlamento na ocasião do
Jubileu de Ouro, Abril 2002
No
meio do declínio moral que atinge, sem distinção alguma entre repúblicas e
monarquias, todos os países e até a sua própria família, a Rainha Isabel II
permanece como um farol de dignidade, um exemplo de entrega a uma causa, expoente
máximo de serviço público e de dedicação.
Será
porventura porque o carácter de Isabel de Inglaterra foi traçado numa forja irrepetível
em que se juntaram dois acontecimentos de proporções históricas, a Abdicação de
Eduardo VIII e a Segunda Guerra Mundial, cada um deles traumático à sua maneira:
o primeiro pela singularidade absurda de um rei que abandona o seu dever para
com o seu país, colocando em risco a instituição que estava obrigado a
preservar; o segundo pela dimensão avassaladora da violência, da destruição e
do horror, misturados com o inspirador sentido de coragem e resistência que os
então Reis Jorge VI e Isabel, pais de Isabel II, representaram para o seu Reino
e para todo o Mundo livre.
Estas
duas experiências históricas, vividas na década em que a jovem princesa passou
de criança a adulta, foram determinantes na formação do espírito de serviço e
de resistência às adversidades de que Isabel II tem dado provas ao longo do seu
longuíssimo reinado.
Se
é verdade que, em cada tempo, haverá uma tendência para considerar que as
mudanças foram radicais em relação às décadas anteriores, será seguro afirmar
que diferença entre 1952 e 2022 é mais extraordinária, por exemplo, do que a
diferença entre 1837 e 1901, os anos de início e fim de reinado da Rainha
Vitória. As mudanças sociais, políticas, religiosas e tecnológicas nunca foram
tão profundas como no actual reinado.
Quando,
a 6 de Fevereiro de 1952, a vida de Jorge VI se extinguiu tranquila mas
inesperadamente, o mundo ocidental era ainda profundamente reverencial. A
barbárie bolchevique triunfara na Rússia apenas 35 anos antes ceifando a vida
dos Romanov, mas até ali já se havia transformado o antigo respeito pelos
czares numa nova devoção pelos mártires vermelhos. Estaline, que morreria no
ano seguinte, era um dos vencedores da Guerra e não apenas o monstro carniceiro
de tantos povos.
Aos
25 anos, Isabel II tornou-se rainha no topo de uma árvore no Quénia, então
colónia britânica. Longe estaria de imaginar que em breve seria erguido um muro
à volta de parte Berlim, que o Homem chegaria à Lua uns anos depois, que uma
espécie de confederação económica europeia vingaria por longas décadas, que a
vida da sua família seria cruelmente devassada pelos tablóides, que os e-mails suplantariam as cartas e que os
telemóveis trariam uma impensável rapidez e devassa à vida, que veria um
afro-americano chegar a Presidente dos Estados Unidos da América, que um Papa
renunciaria ao pontificado, ou que tendências seriam ditadas por jovens influencers sem méritos conhecidos, para
citar apenas alguns dos muito extr
Churchill regressara ao poder apenas 4 meses antes, numas eleições em que, pela terceira vez, perdeu o voto popular, ficando com menos 230.000 votos do que os Trabalhistas (em 1945 e 1950 perdera por mais...), mas em que o sistema eleitoral deu aos Conservadores uma curta vantagem em número de deputados. O ancião herói da Guerra, sempre impecavelmente vestido e polido, terá sido uma ajuda providencial para Isabel II nos primeiros anos do reinado. E, também nesse aspecto, a Rainha estaria longe de imaginar que em 2022 teria como Primeiro-Ministro um louro desgrenhado chamado Boris ou que um dos seus putativos sucessores e Chanceler do Tesouro seria um jovem de 41 anos, de pais indianos, chamado Rishi Sunak.
Jorge
VI fora, genuinamente, um herói. Vencedor da sua própria timidez e gaguez
profunda, foi um dos grandes símbolos da resistência ao recusar-se a abandonar
Londres e ao ter a sua casa – Buckingham – bombardeada como tantos milhares de
londrinos, escapando por pouco à Luftwaffe. Isso fez dele um dos vencedores da
Guerra e um rei amado pelo seu povo. Mas tal não impediu que, naquele dia 6 de
Fevereiro de 1952, uma das extravagâncias das monarquias voltasse a acontecer.
Ao choque pela perda de um rei amado, de um herói, sobrepôs-se rapidamente a
excitação do início de um novo reinado, uma nova era isabelina, com uma rainha
jovem e bonita, o dealbar do tempo novo que permitiria esquecer os horrores da
Guerra.
*
* *
O
último monarca a celebrar 70 anos no trono, dito agora Jubileu de Platina, foi o anterior Rei da Tailândia, Bhumibol Adulyadej.
Chegou à admirável marca em 2016, hospitalizado há muito, morrendo no mesmo
ano. Já neste mês de Janeiro de 2022, Margarida II, a especialíssima Rainha da
Dinamarca, que herdou um país convictamente republicano e o transformou num
reino cosmopolita onde ainda impera a tradição, assinalou de forma discreta – covid oblige – os seus modestos 50 anos
no trono, o Jubileu de Ouro, adiando
as comemorações para mais tarde.
Um
jubileu assinala uma data redonda e
marcante. Com origem no Livro do Levítico, que manda santificar o quinquagésimo
ano e institui uma série de regras (Lev 25, 8-28), o primeiro jubileu
instituído para o futuro e com periodicidade fixa de 100 anos, terá sido o do
Ano Santo de 1300. Como as Escrituras falavam em 50 e todos gostamos de
alegria, os Papas logo se apressaram em reduzir a periodicidade –passando primeiro
de 100 para 50 anos e encurtando depois para metade. Assim, a Igreja Católica
celebra a cada 25 anos um aniversário especial do nascimento de Cristo, com
anos e portas santas, indulgências e peregrinações. O último foi o Grande Jubileu do Ano 2000, proclamado
pelo Papa São João Paulo II e que mobilizou a Igreja Universal para assinalar
os dois milénios desse momento marcante da nossa civilização – até na forma
como situamos, no tempo, a História.
Outras
instituições passaram a assinalar os seus jubileus e os monarcas viram nessas
celebrações a ocasião para renovar a sua aliança com o povo. A Rainha Vitória de
Inglaterra celebrou os seus 50 anos no trono em Junho de 1887, uns anos depois
de ter assumido o título de Imperatriz da Índia – e as comemorações tiveram um
marcado travo indiano, com a chegada de vários rajás e marajás, mas também de
dois criados indianos, um dos quais haveria de acompanhar a Rainha-Imperatriz
até ao fim dos seus dias, numa relação não isenta de polémica.
Ao lado dos representantes de muitos outros tronos que desapareceriam nas décadas seguintes, os Príncipes D. Carlos e D. Amélia representaram Portugal nas cerimónias descritas na imprensa internacional como magníficas empompa,
circunstância e entusiasmo popular. N’O Occidente
(n.º 307), Manuel Pinheiro Chagas exaltava então o imobilismo de Victoria,
“uma estatua”, como a maior das suas virtudes:
“Victoria representa a inamovibilidade das instituições britannicas, e representa-as bem porque parece tambem inamovível. O inglez tenaz, afferrado aos seus habitos, pouco propenso a mudal-os, tem uma grande sympathia pela rainha que foi tão amavel com o seu povo que resolveu conservar-se firme como uma estatua no seu posto. (…) No seu imperturbavel afferro á existencia representa por tal fórma a tenacidade ingleza, que os seus subditos adoram-n’a como um symbolo. (…)
“A perturbação que a morte da rainha
Victoria produziria na Inglaterra é incalculavel. Nem nos atrevemos a suppôr
sequer como é que a Inglaterra poderá atravessar essa crise. (…)
“Ora imaginem o que resultará do funesto acontecimento
que obrigue os inglezes a deixarem de cantar God save the queen para passarem a cantar God save the
king! É caso para produzir um abalo
medonho na solidez da monarchia britannica.”
Dez
anos depois, em 1897, o Jubileu de
Diamante assinalou os 60 anos de um reinado que já não entusiasmava, mas até
Vitória ficou impressionada com as comemorações: "No one ever, I believe, has met with such an ovation as was given to
me, passing through those 6 miles of streets . . . The
cheering was quite deafening & every face seemed to be filled with real
joy. I was much moved
and gratified." – escreveu no seu diário.
A
imprensa portuguesa não poupou, novamente, nas loas à Rainha:
“O ser immaterial accentuou-se sob a
experiencia da vida e as canceiras do governo. A aurora de 1837 é hoje um
crepusculo sumptuoso.
“Decana das rainhas e das
imperatrizes, se não tivesse muitas corôas, seria ainda a maior mulher das
Ilhas-Britannicas.
“Robusta como um carvalho, apezar dos
seus 78 annos, a Rainha tem esse rosto severo que as grandes funcções e as
grandes dôres cinzelam. Desde a morte do principe consorte, essa viuva é viuva
como é rainha – magnificamente. Tem a tranquillidade de um ser indifferente a
tudo, excepto ao dever.”
Deste
texto publicado no Branco e Negro –
semanario ilustrado (n.º 65), perpassa uma certa antecipação de fim de
ciclo, o crepúsculo robusto que antes
foi aurora imaterial.
Isabel
II ultrapassou há muito o recorde britânico da sua trisavó Vitória, que morreu
em Janeiro de 1901, após 63 anos e meio de reinado. E se o recorde de Luís XIV
de França – 72 anos e 110 dias de reinado – parecia há uns anos irrepetível,
tendo em conta que reinou desde os 4 anos de idade, ninguém se surpreenderá se a
Rainha de Inglaterra lá chegar, em finais de Maio de 2024... Tal como, durante
o século XX, a sua trisavó, a Rainha Vitória, foi sinónimo de longevidade,
Isabel II prepara-se para ser uma referência para muitas décadas, provavelmente
para vários séculos, um caso de estudo genético e de ciência política.
*
* *
Desligado
dos contextos familiar, político e social, o reinado de Isabel II pode parecer
uma ladainha monótona: as Aberturas Solenes do Parlamento, os desfiles do Trooping the Colour e os cortejos da Ordem
da Jarreteira, os Natais em Sandringham e os Verões em Balmoral, as visitas de
Estado e as tours pela Commonwealth,
tudo com uma cadência quase perfeita.
E
é, contudo, na singular circunstância de esta ladainha não se ter alterado
substancialmente que está um dos segredos do sucesso de Isabel II enquanto
soberana. Não propriamente por se fingir uma estátua, na expressão de Pinheiro Chagas, mas por ter presidido a
uma evolução serena e discreta, num país que foi um turbilhão de acontecimentos
e emoções mas continuou a ser o Reino Unido. Como a própria referiu em 2002, “Change has
become a constant; managing it has become an expanding discipline.”
Do
ponto de vista político, a intervenção política mais arriscada da rainha terá
ocorrido precisamente a propósito do tema que, historicamente, mais divisão
causa nas ilhas britânicas: o da união. Em 1977, quando celebrava o seu Jubileu de Prata, a
Rainha dirigiu ao Parlamento palavras muito fortes contra a devolução de
poderes e em defesa da união do reino, assumindo-se como herdeira dos reis de
Inglaterra, dos reis da Escócia e dos príncipes de Gales, mas sublinhando que
fora coroada rainha do Reino Unido:
“I cannot forget
that I was crowned Queen of the United Kingdom of Great Britain and Northern
Ireland.”
O
tom firme usado pela Rainha surpreendeu o grande Westminster Hall, a parte
medieval que resta do antigo Palácio de Westminster. O trabalhista James Callaghan
era o Primeiro-Ministro e Margaret Thatcher a Líder da Oposição e travava-se um
debate aceso sobre a criação de um parlamento próprio para a Escócia. A rainha
entrava a pés juntos num assunto constitucional muito delicado. O referendo escocês
que teve lugar em 1979 deu uma vitória estreita aos que queriam a devolução de
poderes, mas a participação eleitoral invalidou-o, acabando por fazer cair o
governo de Callaghan que dependia do apoio dos nacionalistas escoceses e por
levar Thatcher a Downing Street em 1979.
O
assunto regressou no consulado de Tony Blair, eleito com a promessa de
regressar ao tema. O referendo escocês teve lugar apenas 12 dias depois do morte
de Diana, Princesa de Gales, num dos momentos mais duros do reinado, em que Isabel
II parecia ter perdido o apoio do seu povo. O resultado foi avassalador, com
74% dos escoceses a favor da devolução de poderes. Uns dias depois também o
País de Gales aprovou, por margem mais estreita, a devolução. A criação de
parlamentos e de governos nacionais aconteceu dois anos depois. A união não foi
quebrada mas, pelo menos no caso escocês, ficou abalada.
A
hegemonia do Partido Nacionalista Escocês parecia conduzir irremediavelmente a
Escócia à independência. Não estava, no imediato, em causa a chefia do Estado,
uma vez que a Rainha passaria a ser Rainha da Escócia, recuperando a união
pessoal que existiu até 1707. A Rainha apelou, discretamente, a que todos “pensassem muito bem na decisão”,
sublinhando o carácter potencialmente definitivo. E, para grande frustração dos
nacionalistas, o “não” à independência venceu no referendo de 2014, permitindo
muito provavelmente a Isabel II terminar o seu reinado sem desfazer o legado
dos seus antepassados.
O
Reino Unido reverencial de 1952 transformou-se, em 2022, num país cosmopolita,
símbolo orgulhoso de uma diversidade cultural e religiosa que espelha aquilo
que foi outrora a sua glória imperial e que hoje muitos pretendem transformar
numa perpétua cruz. Ter conseguido transformar essa herança colonial numa
celebração – ainda que inconsequente – da diversidade é, provavelmente, uma das
vitórias pessoais de Isabel II. A Commonwealth
of Nations é a sua marca pessoal nesse legado de várias gerações de
conquistadores.
Isabel
II é ainda rainha de 15 países independentes. É Rainha do Canadá, Rainha da
Austrália e Rainha da Nova Zelândia. Há 70 anos era também Rainha da África do
Sul, do Paquistão e de Ceilão, que depois optaram pela via republicana. A
atitude de respeito pela opção de independência das antigas colónias foi um
aspecto que favoreceu o espírito da Commonwealth.
O efeito isabelino será, em parte, o responsável pela surpreendente derrota do
republicanismo no referendo feito na Austrália em 1999, com participação de 95%
dos eleitores e que ditou uma opção de cerca de 55% pela continuação da
monarquia constitucional – contrariando as sondagens que, consistentemente,
indicam a república como favorita dos australianos.
A
capacidade extraordinária para, com absoluta dignidade, “gerir a mudança” e reinar
em dois países afinais tão distintos, o de 1952 e o de 2022, é sem dúvida um
dos aspectos centrais da análise das sete décadas, num reinado pródigo em
dificuldades e insucessos familiares. A sucessão de escândalos ocupou demasiado
espaço mediático e a obsessão frívola – que faz correr mais tinta sobre os
vestidos do que sobre os fins – diminuiu e continua a diminuir a percepção da
dedicação da Rainha e da sua Família às causas sociais, caritativas,
assistenciais, ecológicas e militares.
*
* *
Em
Abril de 1947, cinco anos antes de subir ao trono, a Princesa Isabel fez uma
comunicação radiofónica aos povos da Commonwealth
Britânica e do Império para assinalar os seus 21 anos, a maioridade. Fê-la a
partir da Cidade do Cabo, na África do Sul, onde se encontrava a acompanhar os
seus pais na primeira grande viagem real do pós-guerra. Foi o seu primeiro
discurso e falou, com a sua jovem voz estridente, da experiência de crescer nos
“anos terríveis e gloriosos da segunda
guerra mundial” e das dificuldades vividas pelos jovens da sua geração.
Foi
aos jovens que se dirigiu para se vincular expressamente à divisa dos Príncipes
de Gales: “Ich dien.” ou “Eu sirvo.” A mensagem não podia ser mais
clara: apesar de, por ser mulher, não ostentar o título dos herdeiros do trono
(só em 2015 passou a haver direitos de sucessão iguais para homens e mulheres),
a futura rainha fez ali, em directo para milhões de pessoas, um voto de serviço
tão ou mais sagrado que o da sua própria coroação:
“I declare
before you all that my whole life whether it be long or short shall be devoted
to your service and the service of our great imperial family to which we all
belong.”
A
este voto de dedicação e de serviço, com valor de juramento ancestral, se
voltou a referir em diversas vezes ao longo do seu reinado, para o renovar e
reafirmar – aproveitando, em especial, os jubileus de Prata (1977), de Ouro
(2002) e de Diamante (2012). É absolutamente notável que uma jovem de 21 anos
se tenha comprometido de maneira tão dramática e definitiva há quase 75 anos e
pareça não ter hesitado num só momento no cumprimento desse voto, mesmo quando
o fez com sacrifício pessoal e familiar.
Num
dos momentos difíceis do seu reinado, em 1992, perante o clamor intolerante de
jornais e políticos, Isabel II reconheceu a necessidade de mudança e de
adaptação de todas as instituições, incluindo a Monarquia, naquele que é
certamente um dos mais
relevantes discursos da sua vida porque feito num momento de especial
fragilidade. A Rainha fez uma reflexão profunda sobre o tempo, sobre “a
inestimável vantagem da perspectiva”, para pedir moderação, compaixão,
tolerância e gentileza:
“Distance is
well-known to lend enchantment, even to the less attractive views. After all,
it has the inestimable advantage of hindsight.
“But it can also
lend an extra dimension to judgement, giving it a leavening of moderation and
compassion - even of wisdom - that is sometimes lacking in the reactions of
those whose task it is in life to offer instant opinions on all things great
and small.”
Vinda
de outro tempo, Isabel II traz até nós os valores dessa era já desvanecida, em
que a palavra dada tinha um valor quase sagrado – e que contraste produz com o
nosso tempo, em que pretendem imperar a moda e o efémero e em ninguém se
preocupa sequer em exigir o valor facial
da palavra.
A Magnífica, a Imortal, a Constante? Que cognome melhor definiria a Rainha que hoje celebra
70 longos anos de reinado? Porventura nenhum lhe faz suficiente justiça. Porque,
sendo magnífica, se destaca sobretudo pela sua discreta e coerente constância;
sendo mortal, se destaca pela intangível continuidade que representa. E se este
é o crepúsculo do seu reinado, em nada é menos digno de admiração do que foi o
seu dealbar.
A
ditadura do efémero (“an era when the regular, worthy rhythm of
life is less eye-catching than doing something extraordinary”) impõe que a celebração do feito
extraordinário de terem passado 70 anos de reinado seja mais relevante do que o
serviço constante e regular – e como tal absolutamente extraordinário – ao longo
desses 70 anos. Mas é essa dedicação sem falhas que, independentemente da
duração que o reinado vier a ter, distingue Isabel II, vincando a utilidade da monarquia
e o seu papel pessoal como modelo, possivelmente irrepetível e como tal eterno, de serviço público e de lealdade
para com os seus povos.
Ademar Vala Marques
Fevereiro
2022