terça-feira, 29 de junho de 2021

O preço das missas.

 






A obrigação dos ofícios que se fazem pelos defuntos é a seguinte:

 

Missa de presente - ofertada com cinco pães, cinco palmos de candeia, cinco quartilhos de vinho, uma galinha, quatro vinténs de esmola

Um ofício de sete padres – três alqueires de trigo, dois almudes de vinho, um carneiro, ou um cruzado ou o que valer uma vela de meio arrátel, três vinténs de faixas e o bradar de trinta dias com um pão, um quartilho de vinho e uma candeia.

Um ofício de cinco padres – alqueire e meio de trigo, um almude de trigo, um borrego, trinta reis de faixas, uma vela de meio arrátel e o bradam trinta dias (palavras ilegíveis) e este nocturno fazem os que não têm para mais.

Este é o costume que aqui achei, e assim o afirmo, e que afirma hoje 30 de Novembro de 1642,

 

Manuel Vaz

Abadesso

 

 

Notas:

Trata-se da folha 197vº do livro misto de assentos da freguesia do Souto da Casa.

Um quartilho era meio litro

O alqueire era uma medida de volume. Tinha valores diferentes mas à volta de 15 litros.

O almude também variava. Era cerca de 17 litros.

O arrátel correspondia a 459 gramas.

As faixas deviam ser tecido.

O bradar devia ser um anúncio do óbito feito nos ofícios religiosos.

 

José Liberato

 





A simplicidade luminosa das narrativas de Françoise Sagan.




 

Françoise Sagan (1935-2004) foi indiscutivelmente uma grande escritora, amada e execrada, muitos dos seus próprios colegas não lhe perdoavam a notoriedade ganha logo pelos seus primeiros livros, autênticos sucessos literários que percorreram continentes desde o fim da década de 1950 e que se mantiveram por mais meio século, o futuro dirá a consagração ou o esquecimento que está reservado.

Apreciei muito o seu romance Gosta de Brahms?, numa tradução revista por Augusto Abelaira, Bertrand Editora, dos primeiros anos da década de 1960. Aprecio o vigor, a simplicidade da redação, os riscos da trama: um casal quarentão, cosmopolita, ele insiste numa relação solta, ela anseia por estabilidade, sente os anos a pesar e inopinadamente entra em cena o elemento do triângulo amoroso, o que sairá mais danificado da História. É uma obra que prima pela economia do diálogo, pela limpidez do estilo, por tratar uma relação amorosa que é verdadeiramente pungente nesses anos em que já se consolidara a sociedade de consumo que ia urdindo relações líquidas e descontinuadas, Françoise Sagan abordou destemidamente a misteriosa fragilidade dos vínculos humanos e faz convergir para a figura feminina, Paule, o sentimento de insegurança, os desejos contraditórios, será incumbida, na trama da obra, tomar decisões terríveis de afastamento, deixando um jovem no desespero, ciente, lúcida, pelo amor da sua vida, é um pretenso galã sem emenda. Veja-se como arranca a obra:

“Paule contemplava o rosto no espelho e analisava, uma por uma, as derrotas acumuladas em trinta e nove anos, não com o pavor e a acrimónia habituais em tais casos, mas com uma tranquilidade simplesmente atenta. Como se a pele morna que os seus dois dedos esticavam por vezes, a fim de acentuar uma ruga ou ressaltar uma sombra, pertencesse a outra pessoa, a uma outra Paule, apaixonadamente preocupada com a sua beleza e passando com dificuldade da categoria de jovem mulher à de mulher jovem: uma mulher que ela mal reconhecia”.

Há uma constante nesta atmosfera de tédio e solidão, Paule espera o seu amor de alguns anos atrás, Roger, ele gosta muito dela mas é um galã compulsivo, sempre a mentir para as suas escapadelas, jantam muitas vezes fora. Ele procura falar neutralmente de amores antigos, ela fala dos seus clientes, a sua profissão é de decoradora. Vai trabalhar para uma americana rica, Van den Besh, Roger deixa Paule em casa, ela irá remoer docemente, amargamente, a solidão sempre a acompanha. Em casa da americana conhece o filho da dita, Simon, que é vagamente estagiário no escritório de um conhecido advogado. Simon fascina-se com a figura de Paule, procede a um assédio matreiro:

“Contemplando Paule ajoelhada na montra, gostaria de nunca a ter encontrado nem visto assim através do vidro”. Convida-a para almoçar, falam das respetivas profissões, estão divertidos, veja-se como a tal simplicidade permite o entendimento que os envolve:

“Saíram juntos, ele tomou-lhe o braço e andaram um pouco sem falar. O outono invadia o coração de Paule com muita doçura. As folhas molhadas, avermelhadas, pisadas, grudadas umas às outras, misturavam-se lentamente na terra. Ela sentiu uma espécie de ternura por aquele vulto silencioso que a segurava pelo braço. Aquele desconhecido tornava-se por alguns minutos um companheiro, uma pessoa com quem se passeia numa alameda deserta, num fim de ano”. Simon declara a sua admiração, Paule está apressada, tem que voltar para os seus trabalhos de decoração. Entrara uma nova amiguinha na vida de Roger, Maisy, trocam-se primorosos diálogos de vacuidade, Roger irá protestar trabalho para se ausentar. Paul volta a casa de Madame Van den Besh, reencontro com Simon, pousou-lhe a cabeça sobre o ombro, Paule ouvia o coração dele bater violentamente e sentiu-se perturbada. E chega o convite para irem à Sala Pleyel ouvir Brahms. Era o género de perguntas que os rapazes faziam aos 17 anos. Irão os dois ouvir Brahms, depois tomam aperitivo e ele passa à ofensiva: “Você gosta de Roger, mas está só. Você está só no domingo; você janta só e provavelmente dorme só muitas vezes. Eu dormiria consigo, eu tê-la-ia nos meus braços durante a noite e beijá-la-ia durante o sono. Eu ainda a posso amar, ele não. Você sabe isso muito bem”. Ela levanta-se indignada e Sagan direciona-nos para o encontro de Maisy com Roger, depois Roger aparece em casa de Paule, inventa a sua viagem de trabalho a Lille, fala-lhe no concerto de Brahms, em companhia de Simon. Temos a primeira centelha de ciúme de Roger, e para acentuar a sua posição lembra-lhe a idade de Simon.

A arquitetura do romance ganha aceleração, Simon escreve uma carta que é uma autêntica declaração de amor, reencontram-se. A mãe de Simon organiza um encontro onde estarão presentes as três figuras do triângulo amoroso, Roger já não tem ilusões da paixão do jovem, afasta-se temporariamente de Paule, Simon aproxima-se e cuidadosamente Françoise Sagan potencia o estudo psicológico desta mulher de 39 anos, ela sente a oportunidade de encontrar ao lado de Simon o tempo perdido, os sonhos não realizados. Mas também não é ingénua, Paule não é livre, enfrenta um dilema, este passa pelo preconceito social de se entregar a um jovem de 25 anos ou abandonar o verdadeiro sentimento por Roger, sabendo que não encontra nele o anseio de ternura que ambiciona. É o pragmatismo que vai vingar, Paule decide reatar com Roger e Simon parte. Temos aqui um final pungente, digno de uma construção romanesca de páginas emocionantes que se podem ler com a frescura de quem pretende entender aqueles tempos de crescimento de um novo estilo de vida para tal fragilidade dos laços humanos:

“Paule sustinha-o nos braços, uma vez mais; sustinha a tristeza dele como havia sustido a felicidade. Não podia deixar de invejar-lhe a mágoa violenta, uma bela mágoa, uma bela dor, como ela jamais viria a sofrer”. Ele parte, ela grita por ele e lembra-lhe que caminha para velha. Paule fecha a porta docemente. Final mais terrível não podia deixar de acontecer:

“Às oito horas o telefone tocou. Antes mesmo de atender já sabia o que ia ouvir:

- Peço perdão – diria Roger –, tenho um jantar de negócio, virei mais tarde. Será que…. Enfim.”

Quando lemos obras inexcedíveis é porque elas nos implicam numa moralidade e ética de um dado tempo, estamos num pós-guerra que introduziu novas profanidades, libertou a mulher, gerou novos paradigmas no relacionamento humano, novas visões do relacionamento. É desse mundo que nos fala Françoise Sagan, de gente que procura estabilidade numa civilização que nos dotou de um estilo em que vivemos valores e crenças como se estivéssemos num supermercado, ao pegar e largar, um quadro de solidão onde já não há verdades sólidas. E é inegável que Françoise Sagan escreveu esse novo mundo com vigor e deslumbrante simplicidade, como atesta este romance que se pode ler como um clássico da modernidade líquida.


Mário Beja Santos








 

 


 


 

 

Em tempos de crise e de pandemias aparecem sempre os negocionistas.  



Ricardo Álvaro






sexta-feira, 25 de junho de 2021

Integrado Marginal.

 

 



          Acabei de ler a biografia de José Cardoso Pires escrita pelo Bruno Vieira Amaral (BVA) e depois li esta recensão de Luís Miguel Rosa (LMR). Sou amigo e admirador do Bruno há muitos anos e não conheço Luís Miguel Rosa (que, diga-se, me parece culto, lido e informado), mas parece-me que eu e ele não lemos o mesmo livro. Eu li Integrado Marginal, ele leu Marginal Integrado e o facto de se enganar no título do livro (e de repetir o erro vezes sem conta, ao longo da sua extensa recensão) talvez diga alguma coisa sobre o rigor com que a obra foi analisada ou, melhor dito, sobre o preconceito persecutório que anima o escrito de Luís Miguel Rosa da primeira à última linha.

Numa obra desta dimensão, com quase 600 páginas, haverá sempre lapsos e omissões e, se nos pusermos a esquadrinhar à lupa, falta sempre, mas sempre, alguma coisa (dois exemplos: ao falar do Congresso para a Liberdade da Cultura, de Pierre Emmanuel, BVA poderia falar das ligações à CIA daquela organização, objecto de um fascinante livro de Frances Stonor Saunders, com tradução espanhola – La CÍA y la guerra fría cultural – ou, ao aludir ao general Matthew Ridgway, poderia mencionar que a sua visita a França motivou um enorme protesto em Paris em 1952, «Ridgway, la peste!», com a prisão do dirigente comunista Jacques Duclos, o que era importante para situar o movimento pela paz onde andaram muitos intelectuais portugueses: mas coisas destas fariam sentido numa biografia de Cardoso Pires? Não, é óbvio). Em todo o caso, e não sendo eu especialista, parece-me que os lapsos apontados ao livro de BVA, admitindo que têm razão de ser, não são suficientes – de modo algum! – para descartamos uma obra desta envergadura, fruto de trabalho sério, na qual até o próprio LMR confessa ter ficado surpreendido com muito do que nela é revelado. E isso não vale para lhe dar nota mais do que positiva? (é significativo que, na hora de fazer um balanço global e final, LMR se abstenha de dizer o que pensa).   

O levantamento dos erros, porém, não só não é grave como é saudável e permitirá a BVA, estou certo disso, corrigi-los em futuras edições da obra. Grave é o seguinte: o que implícita e até explicitamente perpassa no texto de LMR é a crítica clássica, habitual e expectável, de que o biógrafo não soube afastar-se do biografado. Não é verdade, não é manifestamente verdade. Desde logo, BVA não perde oportunidade, em várias ocasiões, para alfinetar Cardoso Pires como marido e como pai, daí resultando um retrato nada favorável, para dizer o mínimo, o retrato de um misógino egoísta, excessivamente centrado na sua obra e na sua pessoa, alimentada a whiskies, cigarros e postas de pargo grelhado. Do ponto de vista humano, não é José, mas Edite, a mulher, quem avulta como personalidade e quem tem a tirada mais luminosa de todas, num extraordinário depoimento sobre o marido, constante da página 543. Depois de tudo quanto lemos sobre ele nas páginas anteriores, das suas frequentes ausências, do machismo reinante, das noitadas de copos, das viagens a solo, da incapacidade de manifestar afecto pelas filhas, da tirania de silêncio que impunha em casa quando estava a criar a sua «obra», as declarações compassivas de Edite ainda se tornam mais notáveis e, elas sim, reveladoras de uma grandeza que parece ter escapado ao esposo.   

Mais importante do que isso, BVA louva quando acha que tem de louvar, mas não deixa de criticar os muitos fracassos literários do seu biografado, de lhe apontar os bloqueios de escrita e os impasses de carreira, as eternas angústias de quem se sentia ultrapassado por outros na corrida a um estrelato literário que, à nossa escala, era caricato e risível (como, aliás, BVA bem mostra). Mas, sobretudo, BVA não deixa de apontar a falta de qualidade de várias coisas que Cardoso Pires produziu. Neste particular, aliás, um dos pontos que se pode criticar é até o seguinte: por vezes, aqui e acolá, BVA cede à tentação de fazer crítica literária dos livros de Cardoso Pires, não se limitando a situá-los no contexto da biografia do autor; em certos momentos, procede a uma análise interna das obras, o que talvez não seja muito canónico num texto biográfico, mas é perfeitamente adequado e compreensível.

Mas, acima de tudo, isto: o retrato de grupo que, no final do livro, avulta dos escritores daquela geração não é, digamos, famoso. A Censura e o Estado Novo explicarão alguma coisa, mas não redimem os nossos prosadores de uma tremenda pequenez, pessoal e intelectual, nem os resgatam de viverem afundados num meio periférico e paroquial, acotovelando-se uns aos outros na busca de efémera fama e escassa fortuna, na ânsia mesquinha dos prémios e das medalhas, sem horizontes culturais para além dos que recebiam de uma pátria remediada e triste (goste-se ou não, basta ler as entrevistas de Michel Houellebecq, acabadas de publicar entre nós com o título Intervenções, para percebermos que, mesmo hoje, poucos ou nenhuns escritores portugueses têm densidade e formação para dar as respostas  que ele dá). Curiosamente, no panteão dos desgraçados escritores do nosso século XX, talvez sejam os menos obcecados em criar uma «obra» e em ter uma «carreira», como Branquinho da Fonseca, Alexandre O’Neill ou Luiz Pacheco, os que melhor irão resistir à usura do tempo. E é essa a questão que fica, a de saber se, salvo uma ou outra excepção (De Profundis, Valsa Lenta; Lisboa, Livro de Bordo), os livros de Pires conseguirão sobreviver por muito tempo. É possível, até provável, que esta excelente biografia de Bruno Vieira Amaral dure mais do que as novelas do seu biografado. O futuro (e talvez já o presente) tenderá a ver José Cardoso Pires mais como figura-tipo de escritor uma dada época do que como um ficcionista merecedor de leitura e admiração.

 

António Araújo




domingo, 20 de junho de 2021

quinta-feira, 17 de junho de 2021

A Dança dos Adolescentes.

 

 


Ver algures lembrado o dia de hoje, 17 de junho, como o dia do nascimento de Igor Stravinsky (1882-1971), acordou de imediato na memória remota uma Sagração da Primavera que me fizera há uns anos rumar a sul, ao Coliseu, para vê-la conduzida por Esa-Pekka Salonen.

Mas o que tornou esta Sagração memorável, além da batuta de Salonen, foi a performance primaveril das cabeças dos dois adolescentes que me acompanhavam. Metal, impecavelmente heavy. Um fenomenal head-banging que Nijinsky não teria hesitado roubar na hora para coreografar uma versão contemporânea do número da “Dança dos Adolescentes”.

A energia, a precisão, a amplitude do movimento desenhado por aquela trunfa e aquele cabelame, em perfeita sincronia e sem falhar um único tempo forte das percussões, deixou-me pasmada, verde de inveja. A mim e, suspeito, ao entorno da plateia.  Aquilo era contagiante, mas não estava ao nosso alcance. Seriam precisas umas dezenas de audições para acertar daquela maneira no tempo. A mística ficou, indelével.

Agora os Melodica Men, grandes mestres saídos da Juilliard School (juro), dão uma ajuda com os instrumentos de percussão que introduziram. E dá para ficar com uma vaga ideia do que se passou no Coliseu.

Olhando ao escândalo que foi a estreia de uma das obras mais revolucionárias do século 20, Stravinsky não se vai aborrecer com esta prenda de aniversário.


Manuela Ivone Cunha.

 



   

O indesculpável esquecimento da presença feminina na guerra colonial.



 

Palavras e Silêncios, Memórias femininas da presença militar no Ultramar, coordenação de Ana Maria Taveira, Maria Armanda Taveira e Maria de Fátima Pina, Âncora Editora, 2020, é uma coletânea a todos os títulos original, juntam-se 32 testemunhos cronologicamente diferenciados, percorrem a longa duração da presença de mulheres de militares em pontos salpicados do Império, desde a paz ao conflito armado. A guerra e a presença dos militares nas parcelas do Império aparecem na historiografia e na literatura em que a dominante é o masculino: como se preparou e encarou a missão; como observou o território e qual foi a natureza da defesa e resposta que lhe coube pela roda do destino; as memórias que ficaram, as cartas que escreveram, as saudades inexauríveis da mulher, da noiva, dos filhos, dos pais, dos amigos; e, por vezes, a descrição crua da emboscada, da flagelação, da operação; e os encontros, as saudades, muitas décadas depois. Do testemunho no feminino pouco se fala, ora, pelas mais variadas razões, foram omnipresentes na educação dos filhos, na companhia que por vezes deram aos seus maridos, nas lembranças que retiveram seja na retaguarda seja em lugares próximos ou exatamente no conflito.

Quem organizou Palavras e Silêncios teve o esmero de entender que estas memórias se tornam ainda mais vigorosas por serem testemunhos pela ordem cronológica do nascimento das participantes, abrem pistas para as circunstâncias políticas e a condição da mulher na sociedade ao longo da vastidão de muitas décadas, facilitam o entendimento do quadro ideológico em que se moviam e como apresentam as suas narrativas. As coordenadoras passaram a escrito as conversas gravadas e não tiveram dificuldade alguma em aquilatar o valor patrimonial destes testemunhos. E o leitor rapidamente se aperceberá da singularidade de tão valioso contributo que se vai juntar ao que mais recentemente se tem publicado sobre a mulher e a guerra por onde os portugueses andaram até ao fim do Império.

Chegar a Goa perto do fim da II Guerra Mundial, entrar num mundo completamente desconhecido, o deslumbramento dos casamentos hindus, o acaso brutal que tudo mudou: “Quando o meu marido adoeceu eu tinha 29 anos, fui sua cuidadora durante 37 anos, até à sua morte. A minha filha faleceu antes da morte do pai. A vida tratou-me mal, deve-me muito, mas agora já é tarde para me pagar”. Alguém acompanha um marido que cumpriu cinco comissões no Ultramar. A primeira foi em Angola, em 1963, no Ambrizete. “Fui ter com ele e levei comigo a nossa filha mais nova, que ali frequentou a escola primária e concluiu a quarta classe”. Fim do Império trabalhou no apoio aos chamados retornados, confessa a sua satisfação em se ter mantido solidária. Maria Matilde nasceu em Campo Maior em 1930 e viveu doze anos em África, foi professora em Angola e Moçambique. “Sinto falta de estar com alguém que tenha vivido comigo esta realidade em África. Foi um período da minha vida emocionalmente muito intenso, mas tinha saúde e era nova. Temos de novo Goa, quem testemunha fala do seu marido prisioneiro. “Os meus filhos têm idades muito próximas, a mais velha tem, agora, 65 anos, o segundo 64, o terceiro 63 e a mais nova 58. Quando viemos para Portugal, na véspera da invasão de Goa, a mais pequenina tinha pouco mais de um ano. Assim que o meu marido chegou, como o seu vencimento de militar era curto para uma família tão numerosa como a nossa, achei que devia ir trabalhar e tive a oportunidade de o fazer numa escola na Buraca. A minha vida fora muito agradável na Índia, pois estava na minha terra, junto da minha família. Sofri e chorei muito, tive horas difíceis, mas adaptei-me depressa à nova terra. Quando casei, não pensei que algum dia viria viver para Portugal. Imaginava que ficaríamos para sempre em Goa. Mas a vida correu de outra forma”.

Há quem tenha partido para o Império casada de fresco, e depois regressa e é surpreendida pelas notícias dos massacres em Nambuangongo, deu aulas, permaneceu em Luanda depois da independência. Conta-se uma história tocante, tem a ver com a partida precipitada de centenas de milhares de pessoas. Foi a Porto do Saco, onde estavam pequenos montes de objetos calcinados, era o local de embarque das famílias portuguesas que ali deixaram os seus pertences. Guardo em casa alguns objetos que ali recuperei, inclusive fotografias, que trouxe com a ideia de devolver às pessoas a quem pertenciam. Não consegui localizar ninguém”.

Há quem casou por procuração e depois religiosamente numa parcela do Império, foi o caso de Luísa Natália. Depois veio a guerra de Angola. Quando o marido foi para uma zona considerada muito perigosa, regressou a Luanda com o filho. Em fevereiro de 1973, o marido parte para nova comissão, em Montepuez, em Moçambique, instala-se em Porto Amélia com os dois filhos mais novos. “As dificuldades cimentam o amor, ajudam à união da família. Sempre fui uma mulher positiva, nunca perdi a esperança de que tudo iria correr bem, principalmente para os nossos filhos. Quero expressar o respeito enorme que tenho pelas crianças destes países e pela vida sofrida da maioria da população. Lídia Madalena acompanhou o marido em Santo António do Zaire, mais uma professora, fala comovidamente de todo o apoio que as unidades militares davam à população civil. Há quem tenha muitos militares na família, é o caso de Maria Theolinda: “O meu avô paterno, o meu pai, o meu irmão, o meu marido, um dos meus filhos, o meu genro, dois dos meus cunhados, o avô do meu marido e vários primos todos foram ou são militares”. Viveu em Mafra, na Tapada, frequentou o Instituto de Odivelas e sempre que possível acompanhou o marido em missões na Europa, em Angola, na Guiné e em Timor. “Atualmente, já há muitas mulheres militares, mas, no passado recente, apenas algumas enfermeiras paraquedistas participaram ativamente no esforço da guerra. Desde a época dos Descobrimentos, que a mulher portuguesa teve um papel bem ativo no acompanhamento militar dos seus maridos, quer rumando para longínquas terras, quer educando, quer gerindo filhos e património”. Há quem nos faça refletir sobre o casamento e a partida apressada, iniciara-se a guerra, foi o caso de Maria Isabel que acompanhou o marido, tenente-médico da Força Aérea, e foi para o Negage. Hoje ri-se na sua ingenuidade, tinha apenas 21 anos, o marido chegou a casa com duas enormes lagostas. “Não soube o que fazer com aqueles bichos, ainda vivos, e meti-os na banheira, em água. Quando o meu marido chegou para o almoço, contente por vir comer as lagostas, tinham morrido, porque estavam mergulhadas em água doce. Não as tinha dado à cozinha para as cozerem, para poderem ser um petisco para o almoço. Eu nunca tinha visto uma lagosta!”.

Há testemunhos por vezes pungentes, quando estas mulheres apanham em cheio diferentes comissões, com a casa sempre às costas, os filhos a crescer aqui e ali, nunca escondendo a solidariedade que viveram e edificaram, ficamos com um caleidoscópio de impressões de tantas mulheres que não guardam azedume mesmo quando o destino lhes foi cruel e começamos a perceber que toda a literatura que temos lido no masculino é manifestamente carente deste escondido lado do espelho da vida, para que a História tenha contornos mais definidos.

     De leitura obrigatória.


                                                                                                             Mário Beja Santos

 





domingo, 13 de junho de 2021

Em louvor das rosas do meu jardim



 


Em louvor das rosas do meu jardim            

 

A rosa que floriu numa aurora de Maio

No meu jardim amado, com zelo cultivado,

Não é a rosa mortal que Malherbe cantou

Nem é a rosa imortal que Dante celebrou;

Não é a rosa-cruz de doutrinas secretas

Nem é a rosa enferma de místicos poetas:

É a rosa real plantada em meu jardim,

Ao lado da açucena, à beira do jasmim

E doutras flores nobres, esbeltas e formosas,

À vista esplendorosas, ao cheiro olorosas.

 

A rosa que floriu numa aurora de Maio

No meu jardim amado, com zelo cultivado,

Tem viço matutino, tem viço vespertino;

É bela à luz do sol, é bela à luz da lua;

Inebria minha alma, afaga meus sentidos;

Sussurra-me aos ouvidos um cântico divino;

Eleva-me às Alturas, meu berço e meu destino.

 

António Cirurgião

Manchester, Connecticut, 17 de Maio de 2021





quinta-feira, 10 de junho de 2021

Greve.

 



Há greves que atrasam regressos, outras que os aceleram. One man’s trash is another man’s treasure – como é sempre bom ouvir em estrangeiro na Feira da Ladra.

A atrasada é esta cliente, assunto de greve de comboios, que, esses, não perdem pela demora. Hão de cá vir não tarda.

Agora é a vez de outra greve, que pôs fim a uma paralisação e desencadeou um regresso. Uma greve, um protesto sindical que é todo ele um tesouro: a graça, a inteligência, o acerto, o espírito, a finura  a classe. Além disso, tudo a expensas do patrão.

O patrão era o príncipe Esterhazy e os trabalhadores, os músicos ao seu serviço. Como todos os anos, acompanhavam-no no retiro estival para o palácio de Verão a fim de continuarem a entreter a aristocracia. Acontece que, dessa vez, o Verão do príncipe teimava em eternizar-se. Era novembro e não despencava dali. A estadia durava, durava, e os pobres músicos, impedidos de regressar a casa, agonizavam de saudades.

J. Haydn, ao contrário dos músicos, tinha sido autorizado a levar a família. Grande como era, percebeu a injustiça e o abuso, e, em vez de se armar em capataz, fez de delegado sindical. Vai daí, compõe essa estranha pérola que é a "Sinfonia do Adeus", partitura encomendada e paga pelo príncipe – lá está.

A apoteose em anti-clímax pode ser vista nesta interpretação do último andamento da Sinfonia pela orquestra filarmónica de Viena, dirigida por Daniel Barenboim perante uma plateia perplexa que só a partir de dada altura começa a perceber o que se está a passar. É ver tudo para saborear a exímia debandada orquestrada por Haydn, naipe após naipe, como não quer a coisa. Quem tem pressa – horror!  pode arrancar ao minuto 4 e picos.

Quanto ao príncipe, que não era burro nenhum, enfiou de imediato a carapuça e deixou partir os músicos na manhã seguinte.


 



Manuela Ivone Cunha





 

Um polímato brilhante à conversa sobre os filhos de Prometeu.

 


 


Cientista dotado de uma cultura invejável, Jorge Calado embrenha-se na reflexão sobre os Limites da Ciência, 2ª edição revista e atualizada, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2021, narrativa de um sábio cujo currículo extravasa a química-física, dirigiu os primeiros cursos em Portugal de Administração das Artes, comissaria exposições de fotografia e é crítico cultural do jornal Expresso, daí a luminosidade com que confronta o leitor sob os quatro CC da Ciência: o caráter, as crises causadas pelo mau comportamento científico, o papel do capital e as catástrofes naturais ou causadas por falha humana. É uma escrita pedagógica, com ancestrais como Bento de Jesus Caraça, João de Barros ou Hernâni Cidade, é um gosto ver o conhecimento explicado com tanta acessibilidade. E os exemplos multiplicam-se na vastidão desta viagem:

“Acredito piamente que o escopo da Ciência é ilimitado. Obviamente, isto não é uma afirmação científica (não é demonstrável), antes uma crença filosófico-religiosa. Para um/a jovem que comece agora a sua carreira de cientista, há muito por onde escolher. Mas será a escolha ilimitada? Serão equivalentes ou neutros todos os temas e problemas científicos? Obviamente que não, por razões culturais e do foro íntimo de cada um (religioso, moral, político, económico ou social). Nunca diria que há uma ciência de direita ou de esquerda, mas para um/a investigador/a cristão ou islamita, por exemplo, certos temas estarão vedados. A controvérsia sobre a colheita e uso de células estaminais aí está para o provar”.

Não se furta a chamar o boi pelos nomes quando trata a fraude em Ciência, recorda que a investigação farmacêutica é particularmente vulnerável à fraude: “Um caso que deu brado foi o do Vioxx, um medicamento anti-inflamatório para o tratamento da artrite crónica, produzido pela Merck e aprovado pela FDA (Food and Drug Administration) em 1999. A droga foi retirada do mercado em 2004. Dado que, no ano anterior, a Merck faturara 2,5 biliões de dólares em vendas de Vioxx, só nos EUA, algo de grave se passara. Provou-se que a companhia tinha criminosamente optado por não revelar os perigosos efeitos secundários da droga, nomeadamente os de natureza coronária. Também fez batota com a validação do Vioxx, apresentando como investigadores independentes, académicos a soldo da Merck. O resultado foi mais de 100 mil ataques cardíacos em doentes a quem tinha sido receitado o Vioxx e cerca de 60 mil mortes. A Merck já dispendeu biliões de dólares em indemnizações aos pacientes e às famílias das vítimas”.

Escreveu alguém que vivemos num mundo cada vez mais seguro, mas cada vez mais perigoso. E Jorge Calado observa no capítulo que dedica aos bioperigos: “Em Ciência, deve-se estar preparado não apenas para o choque mas também para os perigos do novo. (Nem é preciso lembrar o que aconteceu em 2020.) Estão na moda, há mais de três décadas, as nanotécnicas. As nanopartículas têm hoje uma variedade de aplicações em cosmética, eletrónica, medicina, embalagem de alimentos, etc. e adivinham muitas mais. O problema é que ainda não se sabe como é que os nanomateriais interatuam com o ambiente, nomeadamente com os animais e plantas, em geral, e com o corpo humano, em particular. Quanto mais pequenas as partículas, maior a sua bioatividade e toxicidade. Muitas nanopartículas atravessam as membranas das células, alterando-lhes a estrutura e, até, destruindo-as. Fica em aberto saber se será possível utilizá-las para atingir preferencialmente células cancerosas”.

Falando das ameaças que vêm do espaço, não deixa de alertar: “É preciso ter em conta que nos últimos 500 milhões de anos de vida na Terra houve cinco extinções maciças de espécies que eliminaram cerca de dois terços delas. A atividade humana fez o resto. Hoje estamos reduzidos a pouco mais de 1% das espécies que alguma vez existiram. A última extinção maciça ocorreu há cerca de 75 milhões de anos, quando a Terra foi atingida por um meteoro de cerca de 10 km de diâmetro que, no impacto, libertou uma quantidade de energia equivalente a um milhão de bombas de hidrogénio”.

Havendo limites, habitando nós um mundo demasiado perigoso onde pairam os espetros do terrorismo, a ameaça de um mero acidente ou erro humano, sendo inquestionável o aquecimento global e a probabilidade crescente de zoonoses como a responsável pela Covid-19, “Impõe-se também uma vigilância aturada aos desenvolvimentos da biologia sintética, nanotécnicas, cibernética e superinteligência artificial, sem esquecer a devastação ambiental criada pelos homens e mulheres, e sem desviar a atenção da fraude e da corrupção, na política como na ciência. Atualmente as fronteiras naturais da ciência estão na moral. A ciência é um caudilho que tanto pode funcionar como agente libertador como nos impõe escravizar e destruir”.

Polímato, um comunicador de rasgo, deixa-nos a finalizar um parágrafo soberbo, compatível com a fé nos homens e o gosto pela vida que o anima:

“Os cientistas e os engenheiros são filhos de Prometeu – o Titã que roubou o fogo aos deuses para o dar à humanidade e começar a civilização. São também Filhos do Sol. Sabe-se que o sol converte hidrogénio em hélio através da fusão nuclear (a quente). Quando, daqui a uns cinco biliões de anos, o miolo do Sol tiver esgotado o seu combustível (hidrogénio), a contração gravítica predominará sobre a expansão energética da fusão, e o cerne tornar-se-á mais pequeno e compacto, e aquecerá. Este calor expandirá as camadas exteriores da nossa estrela, que se transformará numa gigante vermelha com um raio cem vezes maior do que tem hoje; como tal, absorverá Mercúrio, Vénus e, muito provavelmente, a Terra. O Sol será milhares de vezes mais luminoso e brilhante do que atualmente, mas muito mais frio. A atmosfera solar gerará uma nebulosa planetária e o cerne solar arrefecerá e transformar-se-á numa anã branca (e, um trilião de anos depois, numa anã preta). A ciência – a mais extraordinária criação da humanidade – terá desaparecido há biliões de anos, mas continuará a funcionar…”.

Atenda-se igualmente ao que Jorge Calado escreve no posfácio, lança-nos um alerta da maior oportunidade: “A desinformação e o alastramento insidioso das redes sociais só podem ser combatidos com uma literacia científica generalizada da população. Acredito plenamente que o maior valor da ciência é levar as pessoas a pensar e a atuar de modo diferente. A propósito da Covid-19, chocam-me as comparações diárias de números de casos e óbitos entre países ou regiões com números de habitantes ou densidades populacionais muito diferentes. Os EUA têm 33 vezes a nossa população; a França e o Reino Unido têm cerca de sete vezes mais habitantes do que Portugal; a Espanha é 4,7 vezes maior; a Roménia, o dobro de nós; a Suécia e a Grécia são iguais a Portugal; a Irlanda e a Noruega, metade. Lisboa e Vale do Tejo têm uma densidade populacional 14 vezes superior à do Alentejo”.

Pelas razões aduzidas e pelo elogio implícito, é inevitável recomendar este livro. 


Mário Beja Santos 




domingo, 6 de junho de 2021

Ouro Preto – o mistério do seu casario.



 


Já caíram mais de vinte anos sobre a minha descoberta atrasada do Brasil colonial mineiro que culminou em Ouro Preto. Todavia ainda recordo como se hoje fosse. Saímos, a Leonor e eu, de Arraial do Cabo, para onde escapáramos do bulício do Rio de Janeiro, já que achávamos Búzios, mesmo ali nas imediações, demasiado chic para o nosso terra-a-terra.  E acertámos. Após uma bucólica semana aldeã, mais exatamente piscatória, lançámo-nos estrada fora (Juiz de Fora ficou quase só no mapa e na estação de abastecimento de gasolina), deliciando-nos em paragens prolongadas a fim de usufruirmos em pleno enlevo todo o percurso, sobretudo São João D’El-Rei, Tiradentes e Congonhas. Foi, porém, em Ouro Preto que diante de nós se escancarou o deslumbramento.  Disparei fotos por tudo quanto era sítio, acumulei notas (hoje sorvidas por um buraco negro algures) planeando descrever tão inesperada e fascinante experiência.

Apossou-se de mim uma sensação de déjà vu. Década e meia antes, tinha eu chegado desprevenido, como quem salta de paraquedas, em Cartagena de Índias, na Colômbia caribeña, e, ao deparar com o imponente castelo da cidade, fui tomado de assalto por esse tipo de sensação. Em Angra do Heroísmo, nos meus Açores, onde tinha vivido nove anos, existe um outro castelo com idêntico traçado, no Monte Brasil (este nome é resquício da suposição que em Quatrocentos os portugueses fizeram  de ser aquela ilha, Terceira de seu nome, a ilha Brasil, durante séculos intensamente procurada, primeiro a oeste da Irlanda e depois Atlântico abaixo). Só décadas mais tarde vim a descobrir que afinal aquele Castelo de S. João Baptista sobre a baía de Angra, havia sido mandado erigir por Filipe II de Espanha (Filipe I de Portugal) – daí o seu nome inicial de Castelo de S. Filipe - e encomendado ao mesmo arquiteto que desenhou o de Cartagena. Ao chegar a Ouro Preto, aconteceu-me algo comparável. Mas agora era toda a cidade que se me assemelhava a Angra. O casario em fotocópia nítida, só as colinas eram mais acidentadas – muito, muito mais, digamos que medonhamente íngremes, a ponto de numa subida de carro (não me recordo o nome, mas era supostamente um lugar ideal para uma vista do alto sobre a cidade) eu ter sido assaltado pelo receio de podermos capotar. Foram os locais que nos desaconselharam a subida no nosso carro e nos recomendaram um táxi pois os condutores estão acostumados. O nosso explicou ser devido a encostas daquelas que a embraiagem de um veículo ali na cidade é sol de pouca dura. E, nas mãos de um estrangeiro, ela ainda se esboroa mais célere.

Como era possível? Eu deambulava o meu pasmo por aquelas ruas e só deparava com déjá vus da Rua da Sé, da Rua de Lisboa, de S. João, dos Minhas Terras, da Rua do Galo e outras mais fileiras de prédios da minha Angra do Heroísmo em peso ali transplantada com todo o seu ar de senhora medianamente aristocrata, maquilhada de cores alegres e jovens, airosa e transbordante de galhardia e savoir faire, ou melhor savoir vivre.

Nunca percebi esse mistério. Os açorianos que rumaram em magotes para o Brasil na primeira metade do século dezoito, embora acabando espalhados por todo o país até Manaus, concentraram-se em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul (fundaram mesmo Porto Alegre). Levaram consigo os nomes Vargas, Rosa, Brasil, Dutra e Lacerda, bem como outros que, sendo de mulheres, foram apagados pelos dos maridos, como aconteceu às mães de Machado de Assis e de Cecília Meireles. Não tenho, porém, nenhuma particular notícia de terem esses ilhéus encalhado em Ouro Preto. O barroco das igrejas e de alguns edifícios públicos são assinaturas de uma origem no Portugal nortenho. Mas as fiadas de casas de varandas, janelas e portas pintadas de cores vivas em tons misturados, com desenhos até na própria vidraça, em puro decalque do que eu conhecia de Angra, isso para mim nunca teve explicação. O casario angrense não tem qualquer semelhança com nenhum outro na metrópole lusitana. A história não fala de algum regresso em massa de torna-viagens endinheirados como os que azulejaram as fachadas das casas do Porto e arredores. Quer dizer: não há notícia nem de terem ido nem de terem regressado, muito embora via Cabo Verde a literatura da identidade brasileira tenha chegado aos Açores e deixado marcas. De qualquer modo haveria que explicar a Angra desenhada pelo holandês Linschoten na última década do século dezasseis, que já retrata a cidade com a cara chapadinha que tem hoje. Assim sendo, a exportação só poderia ter ocorrido a partir de Angra.



Enigma. Mistério mesmo.

Quantas vezes nas aulas, com alunos brasileiros ou americanos perdidos de amor pelo Brasil, fiz um teste mostrando-lhes fotos de ruas de Angra dizendo-lhes serem de Ouro Preto. E todos sempre acreditaram piamente.

Muitos anos depois, apercebi-me de que o terceirense Vitorino Nemésio, natural da dita ilha Terceira, seu exímio conhecedor e cantador das suas maravilhas, mas também um apaixonado do Brasil, escrevera um livro, O Segredo de Ouro Preto e Outros Caminhos (1954). Fui em cata dele e devorei-lhe as páginas convencido de que, na sua arguta prosa, o visitante terceirense me desvendaria o segredo, pois teria certamente identificado as afinidades que me assaltaram a vista. Como já calculava, deparei com deliciosas tiradas nemesianas sobre Ouro Preto: “a mais viva entre todas as cidades mortas do mundo”, “cidade encantada”; “o tempo aqui parou”, “é puro século XVIII no material da pedra e das pessoas”. […] “[U]ma cidade íntegra morta”, “o patetismo icónico  do barroco luso-brasileiro no seu frenesim colonial”, “céus de pérola ornados de água-marinha”, […] “aquela maneira de construir com janelas esquadriadas e oblongas, de florões rococó, vidros multicolores nas marquises e ferro fundido nas varandas”.

Mas nada sobre as semelhanças com as fachadas da sua Angra do Heroísmo. Só em Sabará, ao descrever uma igreja da Senhora do Ó, Nemésio estabelece uma ligação com a arquitetura da sua amada ilha: ”Se não fosse a presença dos colegas e amigos mineiros que me trouxeram aqui, supunha-me diante de qualquer capela-mor portuguesa: na capela do Santíssimo da minha Matriz, por exemplo. Na Praia da Vitória; nem mais… Espantoso prodígio da unidade de crença e de arte à distância”.

Ficarei para sempre a cozer tal mistério que cobre estas cidades gémeas, acrescidas desse outro adicional de Nemésio não ter registado tal afinidade genética, ele a quem nenhum pormenor escapava.

Quedo-me por aqui nesta digressão sem rumo e sem fecho assente, mas não sem tergiversar ainda para uma curiosidade inteiramente colateral. A dada altura do seu relato, Nemésio conta: “Enquanto António Joaquim de Almeida gentilmente me conduz através dos seus domínios, surpreendendo o riso saudável, desvanecido, de alguém que, apoiado a um bufete, religiosamente o escuta. Dentes angolares, riso límpido … Claro! É o porteiro do Museu, Onésimo dos Santos – músico, alfaiate e pintor – que todo vibra aos prodígios de um ouro que foi suor dos seus maiores”.

O parágrafo não explica nada, pois claro, todavia isso de um meu homónimo também estranhamente habitar Ouro Preto não deixa de ser curioso. Se calhar um dia, tal como aconteceu com o castelo de Cartagena de Índias, um acaso me brindará com uma resposta para esta misteriosa incógnita da arquitetura de Vila Rica, de onde tão ricas memórias trouxe comigo.

 Até lá, continuarei a conformar-me com as imagens fotográficas que partilho aqui, esperando que o leitor não suspeite ter eu entrado em fase de delírio mental.

 

Aqui vão algumas imagens das duas cidades:

 

Angra do Heroísmo:










Ouro Preto:

 



Fotografias de Onésimo Teotónio de Almeida 




Onésimo Teotónio Almeida