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sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Uma falsa perspectiva de Milão.



Milão é um excesso de cosmopolitismo, de consumismo e de riqueza urbana, justo reflexo do prodígio económico da Lombardia. A sua catedral dedicada à Natividade da Virgem é, ela própria, um excesso, a maior igreja de Itália – embora apenas porque a Basílica de São Pedro está no modesto Estado do Vaticano – e um dos monumentos mais visitados do país. Sede da diocese que deu dois papas à Igreja no século XX, Pio XI e Paulo VI, a catedral é coroada a 108 metros de altura pela Madonnina dourada, que dá nome ao derby sempre que o AC Milan e o Inter se defrontam.

O templo religioso compete em atenções com o templo do consumo, mesmo ali ao lado. A Galeria Vittorio Emanuele II foi o primeiro grande centro comercial da Europa e permanece o epicentro das grandes marcas, que anseiam pelas atenções de turistas abonados, garantida que têm as suas montras a atenção dos que apenas se podem contentar com as vistas do que, a cada momento, é decretado como luxo.

Luxo será, precisamente, uma das palavras identificáveis com Milão. O dicionário refere-o como um “modo de vida que inclui um conjunto de coisas ou actividades supérfluas e aparatosas” ("luxo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2024). Talvez se pudesse acrescentar como característica uma certa superficialidade que facilmente poderíamos atribuir, à primeira vista, a Milão. Num país em que, a cada canto, se respira a ancestralidade do Império Romano ou do Renascimento, em Milão tudo parece demasiado novo, quase superficial, sem história.


Exterior da Igreja de Santa Maria presso San Satiro, em Milão.


Interior da Igreja de Santa Maria presso San Satiro, em Milão.


A irracionalidade inerente ao luxo, que permite que dois produtos iguais sejam tratados de forma diferente apenas porque um tem uma marca que faz catapultar o seu valor, pode servir como metáfora para o comportamento dos turistas. A fama de certos sítios ou monumentos transforma-os num formigueiro, chegando em alguns casos a torná-los, pela escassez de oferta de entradas, em produto de luxo, ansiado e por vezes inalcançável. Disponíveis, não raro gratuitos – e por vezes literalmente ao lado desses sítios da moda turística –, subsistem lugares extraordinários e ignorados pelas turbas, verdadeiros oásis nestas urbes.

Todo este intróito para dizer que temos por vezes uma falsa perspectiva de algumas cidades, que à primeira vista pouco têm para oferecer e onde se pode, afinal, saciar de beleza e História a nossa ignorância. Milão foi uma descoberta e tudo começa numa perspectiva falsa ou ilusória. A de Bramante.

Donato Bramante foi um dos grandes nomes do Renascimento italiano, uma época em que os arquitectos se digladiavam para tentar impor a papas, príncipes e cardeais as suas opções de estilo, inspiradas em concepções próprias do belo e do sagrado. São de Bramante alguns dos desenhos usados por Michelangelo para a construção da nova Basílica de São Pedro de Roma, assim como a traça da ábside de Santa Maria delle Grazie, a igreja do convento que alberga a celebérrima Última Ceia vinciana em Milão.

É de Bramante também o desenho de uma pequena, mas notável obra-prima da arquitectura, o falso coro da discreta Igreja de Santa Maria presso San Satiro, a pouco mais de 300 metros da arqui-famosa Catedral de Milão. A fachada de igreja está encoberta por prédios – é preciso procurar uma ruela, que dá para um pátio onde se revela, sóbria, sem esplendor. Ao entrar, deparamo-nos com uma igreja bonita e elegante nas suas proporções, sem o que quer que seja de impressionante, podendo quase designar-se como banal. Muitos terminarão por ali a visita e sairão, desperdiçando uma oportunidade para se surpreenderem com a ilusão das aparências.

 

A Madonnina esfaqueada, com o golpe na garganta do Menino bem visível.


Por cima da pintura mural do século XIII, um fresco do século XIX representa o ataque de Massazio da Vigolzone.


A pequena igreja tem uma história curiosa que começa no Dia da Anunciação de 1242, um par de séculos antes de ser construída. O jovem Massazio da Vigolzone, perturbado pelas avultadas perdas que sofrera no jogo, vingou-se da desdita esfaqueando a goela da imagem do Menino Jesus ao colo de Nossa Senhora, numa pintura mural no exterior da pequena capela de São Sátiro – Sátiro, mais ortodoxo do que os sátiros gregos, tem ali a única capela a si dedicada e era irmão de Santo Ambrósio, o grande santo de Milão que dá nome a um rito litúrgico próprio da diocese.

Ao terceiro golpe de Massazio terá jorrado sangue da parede da igreja, levando-o a cair em si e a compreender, perante o clamor dos que assistiam, o milagre que acabara de ocorrer. No arco da parede do fundo, um fresco do século XIX recorda o episódio. O azarado ter-se-á convertido em frade e abandonado o jogo, recordando a História o seu vício como causa de um milagre e, mais tarde, da construção de uma nova igreja para albergar a imagem milagrosa. O mural da Madonnina esfaqueada preside o retábulo do altar de Santa Maria presso San Satiro, com o golpe na garganta do Menino bem visível.

A igreja seria construída passados mais de 200 anos após o acontecimento miraculoso, por ordem dos omnipresentes Sforza. Situada no centro da cidade de Milão, estava muito condicionada pelas vias já consolidadas. Desafiado a vencer a falta de espaço no interior da igreja, Bramante concebeu e executou um singular trompe-l'œil (que, literalmente, engana-o-olho) arquitectónico – ao invés de pintado – que condensa, em 97 centímetros, os elementos que corresponderiam a um coro de 9,70 metros – a mesma profundidade dos braços do transepto.




Pormenores da compressão arquitectónica, executada em molduras de terracota pintadas, para criar uma falsa perspectiva de profundidade.

 

Assim, o coro ou capela-mor banal que vemos ao entrar na igreja torna-se extraordinária precisamente por não existir, o que se descobre quando nos aproximamos do altar por uma das naves laterais. A obra de Bramante é assombrosa pela sua perfeição, quando vista de longe; mas é primorosa na sua execução, com recurso a molduras de terracota pintadas, à semelhança dos caixotões da cúpula. O achatamento ou compressão dos elementos do tecto e das paredes é notável: quase inexistem e, no entanto, ali estão, à vista de todos os que entram, perfeitos, quase banais.

Lembra um efeito animado das séries infantis, impossível porque ficcional, de uma sala que é comprimida contra uma parede, como o fole de um harmónio, pronto para voltar ao normal. O trompe-l'œil produz-se imediatamente quando nos começamos a afastar do altar, criando sensações de profundidade diferentes, mas sempre enganadoras à medida que recuamos na nave.


Planta da Igreja de Santa Maria presso San Satiro, que evidencia o trompe-l'œil.


Ilusão de descompressão à medida que nos afastamos do altar.


A Sacristia de Bramante.



Bramante construiu ainda a elegante sacristia oitavada, acoplada à nave direita. No lado oposto subsistem os restos da capela medieval de São Sátiro. A falsa perspectiva vale, por si, a visita. A entrada é gratuita e deveria fazer parte de todos os roteiros turísticos. Estava, no entanto, praticamente vazia. E não era a única.


Ademar Vala Marques

Janeiro 2025

Fotografias: Novembro 2024

 

 



 





sexta-feira, 26 de julho de 2024

As cinquenta tonalidades dos elefantes olímpicos

 

As cinquenta tonalidades dos elefantes olímpicos


A publicação em Portugal do livro Jogos de Poder, do investigador e ex-atleta olímpico Jules Boykoff, é apenas o mais recente capítulo de uma longa lista de denúncias sobre o problemático universo das Olimpíadas, nomeadamente ao nível dos muitos “elefantes brancos” deixados em herança às cidades organizadoras. Mas se agora tendemos – e bem! – a olhar com desconfiança o fenómeno dos Jogos, mais importante se torna sublinhar que nem só da cor da neve se fez este reino de paquidermes.

 



Se o caldeirão olímpico falasse ou, mais bem dito, cantasse, à semelhança dos seus primos saídos das histórias de bruxas, talvez se sentisse tentado a recorrer, no momento em que a tocha se aproxima, ao Dá-me Lume de Jorge Palma, marcando assim, com um toque de humor, o ponto alto da cerimónia de abertura, ela própria, por sua vez, muito provavelmente o ponto alto de qualquer edição dos Jogos Olímpicos. Sendo Paris a cidade anfitriã da próxima, seria certamente um bom momento para os largos milhares de portugueses que, misturados nas quinhentas mil pessoas previstas nos números da organização, irão assistir, ao vivo, à grande inovação desta XXXIII Olimpíada: a transferência, pela primeira vez, do interior de um estádio para um genuíno ambiente urbano, da sempre espectacular inauguração do evento.

Conjugar esta surpreendente decisão – tomada sob o signo da abertura popular e da facilidade de acesso, e considerada tão relevante que foi dada a conhecer ao mundo através do Presidente Macron lui-même – com a da não construção de um estádio olímpico de raiz – optando-se, ao invés, por utilizar o Stade de France, um equipamento em funcionamento regular desde o Campeonato do Mundo de Futebol de 1998 –, deu origem a um coro de elogios, proferidos dentro e fora do Hexágono, que revelou bem o cansaço de largas parcelas da sociedade (e das respectivas carteiras) com a multiplicação de “elefantes brancos”, uma espécie que nunca correu qualquer risco de extinção desde que se mostrou ao mundo (eventualmente na forma de Torre de Babel) e que costuma encontrar na ecologia dos grandes eventos condições óptimas de reprodução.

De facto, depois de décadas a ler notícias e a ver imagens de instalações olímpicas abandonadas, das piscinas extraordinárias e caríssimas cuja água nem ao Natal seguinte chega até aos pavilhões outrora resplandecentes engolidos pelo mato logo na primeira Primavera, não é de estranhar que os contribuintes – e mesmo quem não contribui – fiquem aliviados por saber que a organização de uns Jogos, preocupada com o futuro e consciente das experiências passadas, pretende evitar “gigantismos” e aposta na contenção dos egos e dos custos que os costumam suportar. Quando essa filosofia de sobriedade mostra a sua força em Paris, uma cidade normalmente obcecada com a grandeur, junta-se ao alívio a surpresa: se até a capital de Luís XIV, Napoleão, Charles de Gaulle e Mitterrand, sede de um vasto Clube das Inutilidades Magníficas com sócios do jaez do Grande Arche de La Défense (300 mil toneladas de vaidade em forma de betão, vidro e mármore), começa a perceber as vicissitudes financeiras e ambientais da pompa, então há esperança para a tão debatida sustentabilidade do mundo.

Posto isto, que não é pouco e muito menos irrelevante, talvez seja igualmente justo sublinhar, numa subjectiva e discutível tentativa de separar o trigo do joio, que nem todos os milhões, ou biliões, quiçá triliões gastos em 128 anos e 32 edições das Olimpíadas modernas tomaram a forma de escandaloso desperdício, um pouco como se os estádios, sem excepção, aproveitando-se do seu design, tivessem assumido o papel de gigantes retretes onde lunáticos e perdulários decisores despejaram sem tino nem proveito camiões e camiões de dinheiro. Sobre esses casos, quase incontáveis, não há falta de relatos e de falatório. Quanto aos outros, os que honraram a despesa com uma obra marcante, muitas vezes revolucionária e ainda em usufruto, têm sido mais raras as crónicas, pelo menos nos últimos anos, uma realidade algo injusta que merece reparação.

 

776 a.C.



A chama que irá “dar lume” ao caldeirão parisiense, e que se encontra neste momento na parte final de uma viagem de 101 dias e 10 000 “passagens de testemunho”, foi acesa no passado mês de Abril em Olympia, a cidade grega localizada no Peloponeso onde toda esta alegre confusão teve início. Cumprindo a lei de ferro dos eventos, chegámos, entretanto, às três dezenas de modalidades e dez milhares de atletas, mas nesse longínquo ano de 776 a.C., quando ocorreu a primeira edição, tudo se resumia a uma corrida a pé entre duas pedras, afastadas entre elas, ao que parece, 192 metros. A essa distância se deu o nome de stadion, palavra que foi em simultâneo utilizada – não sabemos se por falta de inspiração, preguiça ou simplificação comunicacional – para baptizar a prova em si e também a pista onde foi disputada, uma construção simples que ainda lá se encontra, ao lado de várias outras antiguidades em ruínas (nomeadamente o Templo de Zeus, casa da desaparecida estátua esculpida por Fídias, uma das sete maravilhas do mundo), todas obviamente inscritas na lista de Património Mundial da UNESCO.

Pai de todos os estádios, incluindo do Municipal de Braga, cujo custo total de 192 milhões de euros poderá ter sido uma homenagem à unidade de medida acima referida, o stadion de Olympia foi utilizado regularmente até 393 d.C., ano em que o Imperador Teodósio, entre outras medidas de combate ao paganismo, decretou o fim da versão 1.0 dos Jogos Olímpicos. Se estes onze séculos de perseverança dos materiais seriam já um excelente indicador ao nível da amortização do investimento na infra-estrutura desportiva, perdoe-se o jargão económico, melhor ficaram os rácios quando os responsáveis por Atenas 2004 decidiram lá fazer a prova de lançamento do peso, aumentando a vida útil do recinto para uns invejáveis 2780 anos, marca apenas superada pela vida útil do defesa central Képler Laveran Lima Ferreira, mais conhecido por Pepe. A responsabilidade pelo complicado legado desses J.O. na capital grega, que cumprem agora o 20.º aniversário, terá, pois, de ser procurada noutro lugar, a começar talvez na cobertura de 256 milhões de euros idealizada por Santiago Calatrava para o estádio principal, e que se encontra, neste momento, interdita por risco de colapso.

Não tendo sorte com as construções recentes, a Grécia, numa daquelas ironias que talvez lá tenham sido representadas teatralmente pela primeira vez, parece ter boa fortuna com as antigas. É que além do complexo de Olympia, algo deslocado neste texto por não estar directamente relacionado com as Olimpíadas da era moderna, alberga também nas suas fronteiras o Panatenaico, um estádio que nasceu em Atenas ainda na Antiguidade, sendo depois progressivamente abandonado até à ruína, com o mármore que o compunha a ser roubado e utilizado noutras obras por empreiteiros dinâmicos e com espírito de iniciativa, espécie rara mas que de vez em quando aparece, e vendo algumas das suas maravilhas a emigrarem, como por exemplo o Trono de Biel, exposto actualmente no Museu Britânico. Entretanto, após extensos trabalhos arqueológicos desenvolvidos durante o séc. XIX, o Panatenaico é totalmente reconstruído com o famoso e nobilíssimo mármore branco do Monte Pentélico, o mesmo que faz brilhar o Pártenon à luz do tórrido sol grego, numa operação milionária patrocinada por homens de negócios de bolsos fundos que tinha em vista os J.O. de 1896, ou seja, os primeiros da modernidade. Agora que caminhamos para os trigésimos terceiros, parece justo reconhecer, a título de balanço, que o Kallimarmaro (“beleza em mármore”), nome pelo qual também é conhecido, se portou bem, aguentando décadas de eventos variados, inspirando, com o seu misterioso túnel de acesso e com a sua simplicidade clássica em forma de ferradura, vários arquitectos, incluindo alguns pouco recomendáveis como o nazi Speer, e, aspecto importante, sem nunca ter tido qualquer problema com a cobertura, eventualmente pela prosaica razão de não ter nenhuma.

 

 


(Estádio Panatenaico)

 

 

Oito anos depois, em St. Louis, Missouri, continuaram bem tramados os carecas, sujeitos aos escaldões pela igual falta de um tecto. Por outro lado, desviando a atenção para o que estava debaixo deles, puderam desfrutar dos Jogos em grande segurança estrutural, uma vez que as bancadas foram construídas com a então inovadora tecnologia do betão armado, nessa época em fase de desenvolvimento. A aposta, imbuída de pioneirismo, foi ganha, e ainda hoje lá nos podemos sentar para assistir a jogos ou a provas de atletismo, o mesmo acontecendo com o vizinho Francis Gymnasium, um espaço que, além da prática desportiva, costuma ser escolhido para acolher os debates entre candidatos a Presidente dos Estados Unidos, sempre excelentes oportunidades para se trocarem juízos sobre bons e maus investimentos.

Os mais atentos terão reparado que Paris 1900 não foi referido, algo que acontecerá também com Londres 1908 e com mais uma ou outra edição, pois em não havendo obra marcante ou duradoura, ou, quem sabe, havendo ignorância do signatário sobre obra que afinal até tenha existido, delas se guardará de Conrado o prudente silêncio. Não é porém o caso dos Jogos de Estocolmo (1912), Paris (1924) e Amesterdão (1928), todos merecedores de alguma atenção, quer pela perenidade geral dos estádios que os acolheram, os três ainda no activo, quer por algumas particularidades dignas de nota: o recinto sueco, sendo dos mais pequenos de sempre, foi um dos que mais recordes do mundo viu serem batidos na história do atletismo, numa excelente demonstração da máxima “less is more”; o francês, construído sob uma apertadíssima restrição financeira, conseguiu proteger os carecas do sol com uma desafiante cobertura de ferro suportada por apoios mínimos, demonstrando dotes de engenharia (civil e financeira) que podem ainda ser apreciados, uma vez que o estádio, exactamente 100 anos depois, será um dos palcos de Paris 2024; o holandês (ou será paísbaixês?), esse, saído do estirador de Jan Wils, arquitecto fundador, na companhia de Mondrian, van Doesburg e Gerrit Rietveld, do grupo De Stijl, seria, só pelo génio do criador, um lugar a ter em conta – não por ser um exemplo desse movimento marcado pela ortogonalidade e forma cúbica revestida a cores primárias, mas por representar a “outra vida” de Wils, ligada ao expressionismo do tijolo vermelho característico da “Escola de Amesterdão”. Ademais, pormenor decisivo, foi dele a ideia de fazer renascer a chama olímpica da antiguidade grega, tendo construído uma elegante e grandiosa torre para servir de “castiçal”, embelezando ainda mais um estádio já de si lindíssimo – que o digam os benfiquistas, que de lá trouxeram, numa época pré-maldição, a sua segunda taça de campeões europeus.

 



(Estádio Olímpico de Amesterdão)

 

 

Mania das grandezas

E eis-nos assim chegados à década de 30 e aos dois colossos que a marcaram, um deles sob o signo do espanto e optimismo, por ter sido possível ao engenho humano de uma nação construir tal poderosa maravilha, o outro sob o signo do espanto e pessimismo, por ter sido possível ao engenho humano de uma nação construir tal poderosa maravilha. A diferença? O gigantismo de Los Angeles 1932 era patrocinado por uma democracia liberal consolidada, com as suas virtudes e defeitos bem conhecidos de todo o mundo; o outro, de Berlim 1936, era um projecto de poder de um sistema político misterioso instituído três anos antes, um regime que se apoiava numa ideologia nazista ainda pouco transparente quanto às suas verdadeiras intenções, mas da qual o que se ia sabendo não augurava nada de bom.

À parte isso, o assombro. Cem mil lugares – uma escala nunca vista – em ambos os casos; noventa portões de acesso no de L.A., permitindo uma evacuação total em pouco mais de 15 minutos; uma capacidade logística no de Berlim que garantia conseguir enchê-lo, compra dos bilhetes incluída, enquanto o Diabo – ou o próprio Hitler – esfregava um olho. Em relação à durabilidade, nada parece haver a apontar: o recinto californiano, que recebeu Carlos Lopes no final dos 42.195 metros do nosso contentamento, já acolheu as Olimpíadas de 1932, as de 1984, e prepara-se agora para uma nova aventura em 2028, colocando a fasquia das reutilizações num nível difícil de ultrapassar; o intimidante palco germânico, por seu lado, não durará certamente, à semelhança do III Reich, os mil anos previstos pelos megalómanos nazis, mas lá continua de pedra (muita) e cal (pouca), após várias renovações, muitas provas de atletismo, nomeadamente um campeonato do mundo, e centenas de jogos de futebol, incluindo dois mundiais da FIFA, um deles, em 2006, com direito a uma histórica cabeçada de Zidane.

 


(Parque Olímpico de Berlim)

 

Desviando-nos substancialmente da linha do tempo, num salto importante para perceber um contraste revelador, importa falar sem delongas de Munique 72, os segundos Jogos realizados na Alemanha, tristemente célebres pelo atentado terrorista contra a delegação de Israel, mas arquitectonicamente felizes pelo sublime trabalho de Günter Behnisch, Frei Otto (que era também engenheiro) e Günther Grzimek, paisagista responsável por implantar na capital da Baviera um parque exemplificativo do seu conceito de “verde democrático”. Construído especificamente para servir de antítese à experiência nacional-socialista de 1936 – projectar poder através de formas neoclássicas de rigorosa geometria e de pesadas placas de pedra aparelhada –, o Parque Olímpico de Munique é um prodígio de leveza e de abertura, e o estádio nele plantado (é a palavra certa, pois está significativamente enterrado no terreno), com a sua delicada cobertura ondulada, é uma obra tão bem feita que consegue até disfarçar a tremenda complexidade técnica e consequente inovação estrutural que permitiram a sua existência. Imitando uma teia de aranha, caso as aranhas fossem do tamanho de dinossauros, a “tenda”, que cobre uma larga parcela dos equipamentos desportivos, precisou de 436 km de cabos de aço para garantir a própria sobrevivência contra ventos e nevões, uma membrana protectora de milhares de metros quadrados de um arrojo poucas vezes visto, embora nada esmagador por estar sabiamente harmonizado com colinas, lagos e árvores. O que esmagou, claro, foi o custo da brincadeira, sacos carregados com o poderoso marco alemão a caminho do bolso dos empreiteiros que ergueram a canópia, movimentaram milhões de metros cúbicos de terra e executaram as fundações com quase 40 metros de profundidade, e dos muitos engenheiros, técnicos e cientistas que tudo isto possibilitaram a partir de laboratórios e centros de investigação. Em sua defesa, porém, diga-se que na História da Humanidade em geral, e na dos J.O. em particular, já se gastou bem mais em coisas bem menos fabulosas.

 



(Parque Olímpico de Munique)

 

 

O desastre

Sem nos afastarmos muito, cronologicamente falando, basta avançar uma edição, para Montreal 76, rumo a um dos maiores desastres financeiros – e não só – de sempre. Os admiradores do projecto, tentando equilibrar a balança, não deixarão de referir a monumental torre inclinada, responsável por gerir a abertura e fecho da cobertura do estádio, e, sem dúvida, um dos símbolos mais visíveis e reconhecíveis da cidade actualmente. Impressiona, de facto, mas não tanto como as fotografias da cerimónia de abertura, onde no lugar da torre se veem apenas gruas e pontas de varões de aço, símbolos inconfundíveis de obras não terminadas. A dita-cuja chegou mais tarde, mais concretamente em 1988, com um ligeiro atraso de três Olimpíadas, e continuou a ser paga até 2006, com um ligeiro desvio orçamental de 1300%. Valeu a pena, todavia, pois ainda se conseguiu abrir e fechar o tal tecto umas dezenas de vezes, antes de se tornarem tão evidentes os problemas que não restou outra opção senão trocá-lo por outro, solução que durou até o tal outro, por sua vez, começar também a dar problemas, e assim sucessivamente, numa novela que, 48 anos volvidos, continua em exibição, montada num argumento que incluiu corrupção, caos no estaleiro, greves infindáveis, atletas olímpicos misturados com trolhas que tentavam desesperadamente “segurar as pontas”, desmoronamentos de pedaços de betão com várias toneladas, feridos, processos em tribunal, incêndios, falhas estruturais, e a quase falência do município. Com a cidade ainda dividida entre aqueles, pessimistas, cujo derradeiro sonho é a demolição do paquiderme, e os restantes, optimistas, que acreditam que tudo acabará por correr bem se continuarem, ad aeternum, a regá-lo com dinheiro, é provável sermos ainda presenteados, durante muito tempo, com a única herança evidente e indiscutível destes Jogos, a saber: as anedotas.

 


(Estádio Olímpico de Montreal com uma cobertura)

 



(Estádio Olímpico de Montreal com outra cobertura, em direcção a mais uma, e assim sucessivamente)

 

 

Comparadas com Montreal, as restantes barracadas olímpicas, por maiores que tenham sido, parecem sempre diminutas e aceitáveis, no mínimo passíveis de contraditório. Por isso, e também pela promessa inicial de concentrarmos a atenção nas edições que equilibraram minimamente os custos com um legado decente, passemos ao de leve pelo património de Moscovo 80 (o estádio Lenine, que entretanto foi rebaptizado como Luzhniki, conta apenas com a fachada original, pois tudo o resto foi demolido e reconstruído para o FIFA 2018; e sendo essa fachada, em estilo neoclássico, um derivado fora de prazo do Olímpico de Berlim, não teria vindo mal nenhum ao mundo se tivessem deitado tudo abaixo); e de Seoul 88 (uma obra interessante, de um arquitecto interessante, onde nada de interessante se passou desde a cerimónia de encerramento); e de Atlanta 96 (um estádio sem interesse nenhum, substituído logo em 1997 por outro, também sem interesse nenhum, e entretanto por um terceiro – sim, adivinharam – igualmente desinteressante; como todas estas metamorfoses foram planeadas e orçamentadas por americanos, é provável que o legado financeiro não tenha sido mau, mas o patrimonial, esse, não existe); e de Londres 2012 (é verdade que o neofuturista Centro Aquático da arquitecta Zaha Hadid, estrela mundial da arte do estirador, primeira mulher a receber o Pritzker, “rainha da curva” e de muitas outras designações elogiosas, é, de facto, um magnífico exemplar da “WOW! architecture”, e talvez seja até, como referiu à época o Presidente do Comité Olímpico Internacional (COI), uma obra-prima, mas os orçamentistas conseguiram meter tanta água como as próprias piscinas, e a brincadeira derrapou até aos 300 milhões de euros, um valor que só se justificaria se os atletas tivessem exigido nadar em champanhe francês); e do Rio 2016 (“OLIM(PIADA)”, escreveu um brasileiro anónimo numa vedação do Parque Olímpico, dando à luz um resumo provavelmente mais certeiro do que injusto); e, por último, de Tóquio 2020, um caso que se compreende melhor a partir da anterior edição nipónica, quase seis décadas antes e na mesma cidade: os Jogos de 1964.

 


(Centro Aquático de Londres)

 


Não parecem existir grandes dúvidas de que a boa vontade de cidadãos e contribuintes em relação à organização de Olimpíadas tem vindo a diminuir, uma disposição mental que provoca a redução do número de cidades candidatas e a multiplicação de acções de protesto contra quem se chega à frente. O escrutínio cada vez mais intenso e profissional, responsável por boa parte deste estado de espírito, levanta, contudo, problemas de comparação entre iniciativas recentes e iniciativas antigas, quando o exame das relações de custo-benefício por parte de jornalistas, investigadores ou activistas não era tão desconfiado e minucioso.

Salta, porém, à vista, mesmo aceitando que os japoneses de 1964 gostavam tanto de desperdiçar dinheiro como os seus descendentes de 2020, que antigamente o desperdiçavam melhor. A Arena Budokan e, principalmente, o Pavilhão Yoyogi, da autoria de Kenzo Tange, ambos intensivamente utilizados durante os últimos 60 anos, são obras emblemáticas da arquitectura do Japão, não sendo exagero atribuir à segunda o estatuto de prodígio estético e estrutural. Tange era um conhecedor profundo da tradição japonesa e também um entusiasta do Modernismo, pelo que abordou o equipamento olímpico com as mais avançadas tecnologias construtivas disponíveis (que lhe permitiram erguer o maior espaço coberto sem pilares jamais visto), inspirando-se todavia nos templos xintoístas para desenhar as suas linhas onduladas e arrojadíssimas coberturas, quase uma “pele” suspensa numa rede de cabos de aço.

 

(Pavilhão Yoyogi, Tóquio)

 

 

Também em Roma, quatro anos antes, e na Cidade do México, quatro anos depois, foi o mundo presenteado com vasta perícia e refinado gosto. Nas Américas, sob a orientação de Augusto Pérez Palacios, um arquitecto atento à importância de valorizar os edifícios através da articulação entre as várias disciplinas das belas-artes, o Estádio Olímpico em forma de cratera, precursor da pista de atletismo em tartan, espantou tanto o povo como as elites, homenageando a cultura e a geologia locais com a utilização de rochas vulcânicas como material de construção, numa inspirada referência que transformou os atletas em personagens quase literais do romance Debaixo do Vulcão de Malcolm Lowry. A cereja em cima do bolo, colocada pelo volumoso Diego Rivera, um artista que sem dúvida gostava de doces, consistiu num extraordinário relevo cuja imponente dimensão só não é maior devido à interrupção dos trabalhos por morte do muralista. Integrado na principal cidade universitária mexicana, o estádio, em conjunto com muitas outras obras do campus, foi devidamente reconhecido pela UNESCO, no ano de 2007, como Património da Humanidade. Quanto aos jogos romanos de 1960, destacou-se Pier Luigi Nervi com o seu domínio absoluto da arte do betão armado. O Palazzetto dello Sport não é o único filho olímpico do inovador e patenteado “Sistema Nervi”, mas é possivelmente o mais elegante, com a sua cúpula em infinitos losangos, assinatura de autor admirada e reconhecida em qualquer faculdade de engenharia ou arquitectura do mundo. Um Panteão do séc. XX, construído em tempo recorde graças ao revolucionário método de pré-fabricação, e com um custo total de 263 milhões de liras, mais ou menos o preço actual de um gelado numa esplanada da Piazza Navona. A vizinhança, essa, é complicada, constituída pelos edifícios desportivos que Enrico Del Debbio, Luigi Moretti e Costantino Costantini, sob as ordens de Mussolini, projectaram no Foro Italico para servir a candidatura da capital italiana à organização dos J.O. de 1940 (que nunca chegaram a ocorrer por causa da II Guerra Mundial). Utilizados 20 anos depois, a complicação não deriva da falta de beleza, grandeza ou funcionalidade, mas sim, pelo contrário, do excesso dessas características num ambiente de manifesta estética fascista. Perante as estátuas do Stadio dei Marmi ou a piscina coberta do Palazzo delle Terme, entre toneladas de carrara e travertino, não há maneira de escapar ao fascinating fascism, título do ensaio que Susan Sontag, pensando em artistas como Leni Riefenstahl, escreveu em 1975.

 

 


(Estádio Olímpico Universitário, Cidade do México)

 


(Palazzetto dello Sport, Roma)

 


(Stadio dei Marmi, Roma)

 


(Palazzo delle Terme, Roma)

 

 

Os Jogos da Austeridade

Traumatizados que estamos com as derivas perdulárias, em alguns casos na ordem das dezenas de milhares de milhões de dólares, facilmente esquecemos que estas, embora caracterizem boa parte dos 128 anos de Olimpíadas modernas, não os representam na totalidade. Em Helsínquia 52, por exemplo, parecem ter tido lugar uns Jogos modestos e eficientes, com o Estado a assegurar o financiamento de infra-estruturas de longo prazo (vias rápidas, ferrovias, um novo aeroporto, tudo ainda em pleno funcionamento) e a receita dos bilhetes e da publicidade a ser encaminhada para as restantes despesas. E o legado patrimonial, bem amparado na solidez intemporal do melhor funcionalismo vanguardista nórdico, está ainda de óptima saúde, não obstante a esbelta torre do Estádio Olímpico, durante décadas um símbolo da Finlândia independente e moderna, poder agora ser vista, à luz dos irritantes novos códigos de conduta, como uma manifestação de “masculinidade tóxica”.

 



 

Já em 1956, pelo contrário, a “toxicidade” dos machos tinha amplo apoio e carinho popular, razão pela qual um jogo de pólo aquático entre a invasora URSS e a invadida Hungria ficou para sempre na memória colectiva, comentado com respeito e admiração apesar de ter consistido numa manifestação de orgulho ferido vingado ao soco e ao pontapé. O “ringue” onde tudo se passou, e que era afinal uma piscina radicalmente original ao nível estético e estrutural, ainda lá está, reconhecido pelos australianos como uma herança valiosa das Olimpíadas de Melbourne, um equipamento em forma de pirâmide invertida cuja firmeza ficou definitivamente provada no tumulto com que os milhares de adeptos nas bancadas responderam ao “banho de sangue” proporcionado por soviéticos e húngaros. Ademais, construído no espírito do minimalismo de materiais, não pesou muito no bolso dos contribuintes, tendo sido mais caro, contudo, do que o somatório financeiro de todas as instalações desportivas inauguradas em Londres no ano de 1948: exactamente zero libras.

 


(Centro Aquático de Melbourne)

 

A cidade inglesa, na ressaca da guerra, optou por não construir nada de raiz, limitando-se a adaptar o edificado já existente, às vezes com um espírito de desenrascanço bem português, como quando foi colocada uma plataforma de madeira na piscina, que tinha 60 metros de comprimento, conseguindo assim encurtá-la para os 50 metros regulamentares. Não satisfeitos, assim que as provas de natação terminaram, com nítido domínio americano, encaixaram mais uns estrados em cima da água e deram início à competição de boxe, não à maneira do que viria a ser informalmente praticado em 1956 no centro aquático de Melbourne, mas rigorosamente de acordo com o previsto nos códigos desportivos.

Para a história ficou o epíteto de “Jogos da Austeridade” e Wembley, inaugurado em 1923 como Estádio do Império, serviu como sede do evento, tendo ainda aguentado mais meio século antes de se ver substituído por um dos expoentes da megalomania contemporânea, o The New Wembley, um dos campos da bola mais caros de sempre, com um custo de construção que daria para levantar do chão 10 estádios da Luz, e que ainda assim parece barato quando comparado com o rei do esbanjamento, o americano SoFi Stadium, orçamentado no valor de 35 (trinta-e-cinco!) recintos iguais ao utilizado pelo Benfica. Em princípio vamos vê-lo em L.A. 2028, mas, como se trata de um investimento privado, talvez não dê origem a demasiada contestação. Semelhante sossego também se sentiu em Pequim 2008, não por falta de estrondoso dispêndio público, mas eventualmente por falta de paciência das autoridades para níveis de ruído acima dos 30 decibéis de um murmúrio. O Estádio “Ninho de Pássaro”, esse, custou menos de 500 milhões de dólares, o que até parece pouco para essa soberba floresta de aço saída da imaginação da prestigiada dupla Herzog & de Meuron com a consultoria do artista Ai Weiwei, entretanto caído em desgraça junto do governo chinês, arriscando virar Wei AiAi, e que lamenta agora ter participado no projecto, actualmente um “elefante branco” com pouca utilidade prática, embora tão bonito e espectacular que se transformou numa atracção turística capaz de mobilizar milhões de visitantes por ano.

Foi talvez por falta de amor a essa espécie animal da família dos esbanjadoris maximus que a organização de Barcelona 92, um projecto maturado durante mais de meio século, aplicou todos os seus neurónios no desenvolvimento de um modelo diferente, desde essa altura utilizado pelo COI para responder aos múltiplos ataques de que é alvo por parte dos inúmeros críticos dos megaeventos em geral e das operações olímpicas em particular. Há certamente algum exagero nos elogios dirigidos à capital catalã, que também recorreu ao habitual esquema da suborçamentação prévia seguida de derrapagens póstumas, bem como a uma distribuição não equitativa dos benefícios do acontecimento. Ainda assim, tudo pesado e medido, parece ter sido de facto uma oportunidade devidamente aproveitada para melhorar a cidade no seu conjunto, da “criação” de uma imensa frente de praia à demolição de instalações industriais abandonadas, da renovação do sistema de transportes à limpeza de rios e construção de modernos sistemas de esgotos. Legado patrimonial relevante inaugurado propositadamente para as competições, talvez apenas o Palau Sant Jordi, uma arena multiúso desenhada pelo japonês Arata Isozaki, discípulo de Kenzo Tange e vencedor, tal como o seu mestre, do prémio Pritzker. Quanto ao resto da herança, sobressai a subida galopante de Barcelona nos rankings internacionais de turismo, para alegria de muitos e tristeza de outros tantos.

Considerados por várias personalidades como “os melhores de sempre”, os J.O. de 1992 não conseguiram reter esse título por muito tempo, não por culpa própria, sublinhe-se, mas devido à volatilidade do elogio, sempre pronto a voar, na companhia dos figurões olímpicos, para as edições seguintes. Foi assim que em Sydney, oito anos volvidos, Juan Antonio Samaranch, Presidente do COI, presenteou os australianos com o mesmo estribilho, num discurso que só foi bem recebido pelos locais porque estes o ouviram antes da conta de vários milhares de milhões de dólares ter chegado às suas casas na forma de impostos.

 

Pentatlo das Musas

Nas edições olímpicas da primeira metade do século XX, além dos prémios desportivos, eram também atribuídas medalhas a quem se destacava no mundo das artes, fosse na literatura e na música, fosse na pintura, escultura ou arquitectura. A manter-se essa extraordinária competição, Jørn Utzon, que desenhou a Ópera de Sydney, teria certamente ganho uma medalha de ouro na década de 70, quando essa obra foi inaugurada, isto apesar do seu custo astronómico, do atraso de 10 anos na construção, e da derrapagem orçamental de 1400%. Em certo sentido, podemos especular que não foi o despesismo olímpico que irritou os contribuintes da Austrália no ano 2000, mas sim o facto de esse despesismo, ao contrário do que aconteceu com a Ópera de Utzon, não se ter traduzido em algo que suscitasse espanto e deslumbramento por muito tempo, eventualmente para sempre. Nos campos charmosos das Inutilidades Magníficas, há pouco adubo disponível para o crescimento da exaustão fiscal.

A publicação em Portugal do livro Jogos de Poder, do investigador e ex-atleta olímpico Jules Boykoff (edição Zigurate, 2024), é apenas o mais recente capítulo de uma longa lista de denúncias sobre o problemático universo das Olimpíadas, nomeadamente ao nível dos muitos “elefantes brancos” deixados em herança às cidades organizadoras. Mas se agora tendemos – e bem! – a olhar com desconfiança o fenómeno dos Jogos, mais importante se torna sublinhar duas coisas: nem só de albinos se fez este reino de paquidermes, e de quando em quando, estranhamente ou talvez não, até esses dispendiosos exemplares da cor da neve conseguem a proeza de nos encantar.

 

                                                                            Sérgio Barreto Costa

 

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

 

sexta-feira, 8 de julho de 2022

O pão nosso de cada dia nos deu ontem.

  




 

A sua irmã quase gémea, a Panificadora Panreal, jaz agora sob alcatrão, automóveis e carrinhos de compras, transformada que foi em parque de estacionamento de um grande supermercado. Uma em Chaves (presente do indicativo), a outra em Vila Real (tempo pretérito, como já foi referido; ainda por cima imperfeitíssimo, para nosso grande desgosto), partilharam durante décadas, além da genética transmontana, a condição de gigantes provedores do mais importante alimento da história da humanidade, umbilicalmente ligado à concórdia ou à revolução, à paz ou à guerra, à alegria ou à mais negra miséria, tema de contos, parábolas bíblicas, poemas e frases satíricas extraordinárias – como a sempre actual "panem et circenses" de Juvenal –, companheiro, em resumo, dos últimos dez, vinte, trinta mil anos, quem sabe ao certo?, da caminhada do homem na Terra. Falamos, é claro, do pão nosso de cada dia, neste caso complementado, segundo as vozes populares vila-realenses, com bolos, folares, e até assados de carne, provavelmente domingueiros, preparados nas modestas cozinhas familiares e finalizados por empréstimo naqueles fornos industriais gigantes, num casamento feliz entre grande e pequena escala, entre espírito capitalista e sentido comunitário.





A Panificadora de Chaves e a Panificadora de Vila Real, erguidas respectivamente em 1962 e 1965, são duas obras de um arquitecto especial, competente mas descontente, um homem em que a formação académica era de tal forma ultrapassada pela alma de pintor que chegava a colocar o estirador na vertical, simulando um cavalete que muito irritava os seus professores na Escola de Belas-Artes do Porto. Nadir Afonso, é dele que falamos, sonhava tirar o curso de pintura, e foi com este objectivo que aos 18 anos trocou Chaves, a sua terra natal, pela cidade do Porto. Um ataque súbito de pragmatismo, porém, numa época em que a arquitectura garantia mais prestígio e perspectivas de futuro do que as telas, tintas e pincéis, alterou-lhe a matrícula, dizem alguns que já no momento em que preenchia a candidatura na secretaria da faculdade, eventualmente por aconselhamento do próprio funcionário que o atendeu. O destino, como veremos adiante, acabou por impor o seu caminho, mas não antes de uma notável carreira no problemático estirador com tiques de cavalete.

  



A década de 40 estava a arrancar e fortes ventos de mudança passam pela escola portuense, originários muito provavelmente da Bauhaus de Walter Gropius, mas traduzidos em português pelo inovador e liberal Carlos Ramos, importantíssimo professor daquela instituição e um dos mestres que marcará o percurso do jovem transmontano. Mais longe da influência estatal e das obras públicas que estavam a transformar Lisboa, mais perto da encomenda privada que ia impulsionando a inovação na cidade, o Porto era por esta altura um local interessante para uma mente curiosa. A modernidade, ou o modernismo, termo mais acertado, instala-se no curso de arquitectura e também em outros estudantes de Belas-Artes, originando a criação de grupos artísticos e culturais como o imaginativo “Os Convencidos da Morte”, brincadeira óbvia com os oitocentistas “Vencidos da Vida” de Oliveira Martins e companhia, no qual se integram, além de Nadir Afonso, vários pintores, arquitectos e escultores. Júlio Pomar, Fernando Lanhas e Júlio Resende são alguns dos “convencidos” camaradas do flaviense, que contribuía para o colectivo, como certamente já se adivinha, com trabalhos de pintura e não com projectos de prédios ou de moradias.

Convencido de que encontraria um espaço para a sua arte de eleição numa das mecas do cavalete, parte para Paris ainda antes da prova final do curso de arquitectura, mas as galerias da Cidade Luz, eventualmente demasiado ocupadas com os consagrados, mostram-se pouco receptivas ao seu estilo e obrigam-no a procurar emprego na sua área de formação. No entanto, e comprovando empiricamente a velha máxima de que Deus abre uma janela logo após fechar uma porta, vai parar ao atelier daquele que, independentemente dos méritos ou defeitos, simpatias ou antipatias, é provavelmente o mais importante e influente arquitecto do século XX: Charles-Édouard Jeanneret, ou, como é conhecido pelo mundo inteiro, Le Corbusier. Assim, imitando um pouco a sina de Miguel Ângelo, o toscano que só queria ser escultor e que acaba por ver o seu nome amarrado à Capela Sistina, uma das grandes obras-primas da pintura universal, também Nadir Afonso, que só queria ser pintor, se vê ligado à inovadora Unidade de Habitação de Marselha, edifício essencial e emblemático da arquitectura moderna, uma quase Sistina para qualquer estudante ou teórico da disciplina, muito embora, cromaticamente, não se aventure em demasia para além da paleta das cores primárias.

  



Trabalhar com a vedeta franco-suíça permitiu-lhe, além do privilégio de aturar algumas das suas lendárias crises de mau feitio, conhecer figuras-chaves contemporâneas, como por exemplo Fernand Léger, Picasso ou de Chirico, sendo que o próprio Corbusier, homem sensível a todas as artes visuais, gostava igualmente de pintar, inclusive de rabo à mostra, tal qual veio ao mundo, como se poderá comprovar facilmente através de rápida pesquisa no Google.

  


Entretanto, como se uma janela não fosse suficiente, o todo-poderoso (falo agora, novamente, do Ser Supremo, não de Corbusier) resolve abrir uma segunda, desta vez com ampla e bonita vista sobre o Atlântico Sul. Estamos no ano de 1951 e Nadir Afonso, curioso para comparar o génio (e também o mau génio, ao que parece!) entre os dois hemisférios, inicia uma colaboração com o arquitecto brasileiro Oscar Niemeyer, já nessa altura uma estrela mundial em movimento ascendente. O amor pela pintura, no entanto, resiste a toda esta fartura de oportunidades, e leva-o de volta a Paris numa nova tentativa, novamente falhada, de subsistir economicamente apenas pelo pincel. Teria já perto de 50 anos quando finalmente consegue abandonar a arquitectura, não sem antes, agora a título individual, deixar obra feita em Portugal, nomeadamente as duas panificadoras transmontanas, uma em Chaves e a outra em Vila Real, com que se abriu este texto.

Bem afastados de Lisboa e do Porto, as duas cidades portuguesas com alguma escala e “massa crítica”, mais afastados ainda dos faróis do modernismo com quem Nadir Afonso tinha trabalhado, estes edifícios, arrojados e divergentes das tradições construtivas daquelas terras, devem ter inicialmente chocado as populações locais, ao mesmo tempo que, paradoxalmente, lhes ofereciam uma esperança de futuro e uma boa dose de optimismo económico e social. Os críticos da especialidade, que nos últimos anos, talvez com algum atraso, se têm vindo a interessar por estas irmanadas fábricas de pão, salientam a forma como a geometria rígida e racional de Corbusier se mistura com a sensualidade brasileira das curvas das coberturas, formadas em larga medida por uma sucessão de abóbadas.

Em defesa dos críticos, salienta-se não existir nesta análise nenhuma desconsideração pelas curvas originárias de Chaves e de Vila Real, certamente tão ou mais sensuais do que as suas congéneres do Rio de Janeiro ou de São Paulo, mas apenas uma referência à importância vital da linha ondulada no desenho de Niemeyer, como se pode ver facilmente, por exemplo, na Igreja de São Francisco de Assis, erguida na Pampulha em 1943. Nadir Afonso, nos seus anos de trabalho no Brasil, apreendeu, como é natural, as lições do arquitecto da curva, ainda para mais sendo este seu patrono e patrão.     

  



As palavras do mestre carioca, de tão conhecidas em todo o mundo, dispensavam reprodução, mas, ainda assim, reproduzam-se, pois são bonitas e úteis à análise:

 

"Não é o ângulo recto que me atrai. Nem a linha recta, dura e inflexível criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual. A curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso dos seus rios, nas nuvens do céu, no corpo da mulher amada, nas coberturas das panificadoras de Vila Real e de Chaves”.

 

Brincadeira, claro! A de Vila Real já nem chão e paredes tem, quanto mais cobertura. E a de Chaves, caso não se tenha cuidado, arrisca um destino semelhante, mera memória de tempos passados soterrada pelo progresso do alcatrão. Aparentemente bem conservada, mas com uma inquietante placa de “VENDE-SE” afixada na fachada, qual será o futuro desta obra de Nadir Afonso na sua própria terra? Curioso seria que numa cidade que investiu, há exactamente meia dúzia de anos, largos milhões de euros num novo museu dedicado ao seu filho dilecto, se assistisse à morte de um edifício interessantíssimo, ainda para mais revelador de um amplo leque de possibilidades de utilização. Talvez o tempo das grandes panificadoras, com produções diárias que atingiam os seis dígitos e que serviam quase em exclusivo vários concelhos, tenha acabado. Mas um imóvel como aquele que está em causa, bonito, amplo, luminoso e arejado, não tem obrigatoriamente de perecer em conjunto com o modelo de negócio que o inspirou.

Num mundo ideal, utópico certamente, em que os diversos interesses em causa, todos legítimos, dos proprietários aos agentes culturais passando pelos poderes públicos, estivessem mais sintonizados, poderíamos até ter, neste momento, o Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso instalado na antiga panificadora projectada pelo próprio Nadir Afonso. Não está em causa a qualidade do novo edifício de Siza Vieira, construído recentemente para esse fim, mas o arquitecto portuense, da mesma forma que acaba de recuperar e adaptar a Casa de Serralves como espaço expositivo da Colecção Miró, também conseguiria, se para isso fosse desafiado, aplicar a sua mestria a uma extraordinária fábrica de pão. Com 1500 m2 de área coberta edificada, a que se soma um terreno livre de sete ou oito ares, não teria sido tarefa impossível alcançar, com algum engenho e arte, os 2700 m2 do volume inaugurado em 2016 nas margens do rio Tâmega.



 


Mas adiante, pois águas passadas (incluindo as do Tâmega) não movem moinhos (incluindo o da Panificadora de Chaves, que ainda lá se encontra, orgulhoso das suas décadas de trabalho em prol dos estômagos flavienses). Haverá tempo para fazer toda esta história, tal como já foi feita – em livros, teses académicas, notícias de jornal, reportagens televisivas, documentários (um deles, o de José Paulo Santos, premiado em festivais de cinema) – a da sua congénere vila-realense. Ainda não sabemos se também lá ocorreram casamentos e baptizados, à semelhança da vertente comunitária identificada na Panreal, ou se os estudantes de Chaves, em fraterna comunhão espiritual com os da UTAD, também lá curaram as suas bebedeiras e ressacas à base de pães quentes e folares cozidos em fornos a lenha, mas tentemos antes, assunto mais urgente, contribuir uma pouco para a garantia do seu futuro.

 


Vestindo ligeiramente a farda de agente imobiliário, avancemos para a identificação dos méritos – ainda actuais e presentes, não apenas antigos e do passado – desta obra que pode ser integrada, utilizando a cronologia da arquitecta e historiadora Ana Tostões, na terceira (e última) fase do movimento moderno em Portugal. É certamente legítimo, e perfeitamente enquadrável na liberdade de apreciação estética, gostar muito ou não gostar nada de edifícios modernistas em geral e da Panificadora de Chaves em particular. Mais difícil, porém, pelo menos se estivermos de boa-fé, é negar que este projecto do início dos anos 60, alavancado por formas geométricas e jogos de cores, exigiu ao seu autor reflexão cuidada sobre a sua funcionalidade e, numa época pré-ASAE e pré-ACT, uma notável atenção à higiene futura dos pãezinhos e ao bem-estar dos operários que os fabricavam. Os mecanismos naturais de ventilação e de controlo da temperatura interior, a forma como a luz do sol, através de uma imensidão de janelas bem colocadas, ilumina cada canto das zonas de trabalho, o conforto transmitido pelas cores e pela generosidade das áreas e medidas, a existência de vestiários, de múltiplos sanitários, de um refeitório, etc., tudo sinaliza cuidado, estudo e humanidade.

 




Sabe-se que Nadir Afonso gostava de pensar e de teorizar, sobre arte, sobre matemática, sobre si próprio, sobre arquitectura – que não considerava uma arte, talvez por ter uma função e utilidade prática, e por ser uma experiência colectiva, com várias condicionantes limitadoras da criatividade, quer na fase de concepção quer na sua existência pública, por vezes inescapável. Não se estranha por isso a cautela e preocupação com os pormenores desta construção, ao contrário da negligência com que encarou, durante grande parte da vida, a promoção pública da sua actividade e carreira.

De feitio reservado, espartano, com tendência para o isolamento, Nadir Afonso concentrou-se mais na criação de uma obra do que na sua divulgação, o que nos deve obrigar agora, para evitar mais desgostos patrimoniais, a tentar equilibrar a balança, vestindo a tal farda de agente imobiliário, ainda que um pouco chato e repetitivo. Que apareça então um bom investidor, público ou privado, nacional ou estrangeiro, desde que iluminado por uma generosa dose de visão e de sensibilidade, para que um edifício com tamanho potencial de adaptabilidade respeitadora não acabe totalmente descaracterizado, ou, hipótese sempre possível, tenha como destino ir ter com a sua irmã de Vila Real ao sítio onde repousam as almas das fábricas mortas.     

 

Sérgio Barreto Costa