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sábado, 30 de outubro de 2021

Hora de Inverno.


 

Perante a minha surpresa com a velocidade do pôr-do-sol em Salvador da Bahia, um verdadeiro ocaso em fast-forward, uma amiga nativa dizia-me que ali o sol não se punha. Suicidava-se.

Anda lá perto a sensação que dá o entardecer na passagem à hora de Inverno: o dia que se vai num repente, um tombo do astro a que falta, hélas, o mesmo astral.

Para consolar os espíritos, saia então Le Soir, de Mel Bonis.

Compositora formidável de fim de século, não só compôs a rodos como conseguiu que lhe publicassem as partituras -- feito propriamente extraordinário quando não eram assinadas por um homem. Quase tão extraordinário como o melodrama da história desta mulher, que bem podia ter inspirado Os Maias do Eça. Casada com um homem 50 anos mais velho, apaixona-se por alguém da sua idade, com quem terá um filho que manterá secreto durante 25 anos. É esse jovem que, convidado para uma soirée-concerto na casa da mãe, cuja identidade, porém, ele desconhecia, calha apaixonar-se pela filha “legítima” de Mel – sua meia-irmã. Outro amor recíproco, portentoso e agora catastrófico de impossível, que deixou toda a gente de rastos com o desgosto.

Mas ide em paz enquanto há castanhas, bom Inverno e boa sorte.



 

Manuela Ivone Cunha





domingo, 24 de outubro de 2021

MI, Missão Impossível.

 


Disse quem compôs o tema “tum, tum, ta, ta tum-tum”, em cima das iniciais “MI” batidas em código Morse, que era música para pessoas com 5 pernas. Coisa impossível, parece, mas a que não falta ação e ainda mais resolução. Não admira que haja um sem fim de versões para despertador, com contagem decrescente de amplitude variável consoante a envergadura e dificuldade da missão, e versões épicas para missões que pedem mais fôlego e alguma pompa.  E o impossível acontece.

Não é só nos filmes, note-se. O amigo violinista para quem J. Brahms compôs este concerto para violino decretou, sem apelo nem agravo, que a partitura era intocável, inexequível, missão propriamente impossível. 

Ora. Desde então houve um ror de gente a tocá-la, inclusive o próprio dedicatário. Mas lá que é difícil… Ai. Ui. A ponto de se dizer que não é um concerto para violino, antes contra o dito. Contra o violino, contra a orquestra, contra o maestro ou maestra ou maestrina.

Só que toda a arte deste concerto quase sem conserto, entre a ameaça e a deflagração, é o arco físico, metafísico, patafísico que dá coerência à batalha que é para tirar o coelho daquela cartola. É ver aqui ao vivo, a partir do minuto 35, uma demonstração por A+B do músculo Allegro giocoso, ma non troppo vivace com que se casam aquelas três partes, para se perceber perfeitamente do que estou a falar.


Manuela Ivone Cunha.

 





domingo, 17 de outubro de 2021

O tema de Lara, semente de melancolia.



 

O tema de Lara, semente de melancolia 

 

Sonolento, preguiçando,

No meu sofá recostado,

Estava eu procurando

Matar o tempo evocando

Lembranças do meu passado,

 

Quando musical momento

Fez a sua aparição.

De ouvido um pouco atento,

Quis descobrir o intento

Dessa mágica visão.

 

Por que a canção de Lara

Veio inopinadamente?

É que ela me é tão cara

Por sua beleza rara,

Que me invade inteiramente.

 

No serão anterior,

Após uma frugal ceia,

Em ambiente sonhador,

Vi o filme encantador

À luz ténue da candeia.

 

De tal modo se apossou

Do meu subconsciente,

Que a defesa lhe anulou

E no seio me plantou

A sua letal semente.

 

Como posso esconjurar

Este sestro malfadado?

Nisso tenho que apostar

E nos Fados confiar

Que serei exorcizado.

 

Manchester, 3 de Outubro de 2021

António Cirurgião

 



segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Verão de S. Martinho.

 



A que soa um fim de tarde no Verão indiano, o de S. Martinho, num jardim com amigos, folhas a mudar de cor e o brilho do sol mais perto dos pés nus? Para Mozart, em visita de Outono a um amigo botânico, soava assim a atmosfera em que compôs este Trio, também conhecido por Kegelstatt ou Trio das Quilhas.





Manuela Ivone Cunha

 





domingo, 10 de outubro de 2021

A Amália e os Ranchos Folclóricos Luso-Americanos.

 



A Amália e os Ranchos Folclóricos Luso-Americanos

 (Lembrando o 22.º aniversário da sua morte)



 

          Durante uma das várias estadias da Amália em casa do Dr. Veiga, em Waterbury, para convalescer de uma das três operações feitas nos Estados Unidos, num domingo à tarde, depois do portuguesíssimo e fartíssimo almoço do costume, realizou-se, no Clube Português de Waterbury, um concurso dos Ranchos Folclóricos de Connecticut: o de Hartford, filiado no Clube Português de Hartford; o de Bridgeport, filiado no Clube Português Vasco da Gama; e os dois de Danbury: Rancho Folclórico do Portuguese-American Club e Rancho Folclórico Filhos de Portugal.

          Quanto aos cinco membros do júri, os organizadores do concurso escolheram pessoas supostamente entendidas em voz, dança, coreografia e cultura.

          À distância do tempo – sei que deve ter sido por meados da década de noventa do século XX – só lembro o nome de dois desses membros do júri: o de Amália Rodrigues e o do abaixo-assinado.

Ciente da minha incompetência para jurado de um certame dessa natureza, sobretudo por nunca ter gostado desse tipo de música e de dança - da música por causa da desafinação e da gritaria; da dança por me obrigar a ver demasiadas socas a escapar-se dos pés das moças e rolar estouvadamente pelo soalho; por me obrigar, às vezes, a olhar para uma senhora entrada nos anos a contracenar com um garoto imberbe, que poderia ser seu neto; numa palavra, por me obrigar a violentar a minha formação estética, baseada essencialmente no axioma tomista que define o belo como aquilo que, visto, agrada (pulchrum est quod visum placet), - fiz saber aos responsáveis pela organização do concurso que deviam escolher uma pessoa mais competente, mas a insistência foi tal, que eu não tive outro remédio senão fazer o frete.

          Para, de certo modo, procurar suprir uma pequena parcela da minha inépcia, fiz questão de me sentar ao lado da Amália, na esperança de me poder orientar por ela na avaliação, supondo, naturalmente, que a diva era tão competente a avaliar a categoria de um rancho folclórico do Portugal da diáspora como a cantar o fado. Erro meu. A Amália, embora a convalescer de uma operação grave, mal o rancho começava a encaminhar-se para o palco, em passo de marcha estrepitosa e desafinada, de um modo geral, já ela estava a levantar-se da cadeira e a dançar e a cantarolar com as cantadeiras.

Chegado o rancho ao palco, faz-se um breve silêncio, para permitir que o director do rancho enuncie o nome da dança que vai ser executada, e, ocasionalmente, também a sua proveniência. De repente, ouve-se o som do acordeão ou dos acordeões, dos ferrinhos, do pandeiro e da pandeireta; ouve-se a voz ou as vozes esganiçadas, em gritaria desafinada, da cantadeira ou cantadeiras; ouve-se o ruido mal ritmado de sapatos e de socas no soalho escorregadiço do palco, e vê-se a Amália a levantar-se maquinalmente da cadeira e a cantarolar e a saracotear, toda entusiasmada.

Acaba o número e a Amália pega no formulário e no lápis e dá a nota. Eu olho de soslaio e reparo que ela dá sempre a nota máxima: um A + (as notas iam de F a A+). E eu, ciente da minha inépcia, mas atento aos mínimos pormenores, por amor à justiça, esforço-me por imitar a Amália às avessas, o mais fielmente possível, lamentando interiormente não ter as devidas credenciais para merecer a honra de ser um jurado digno num concurso em que tanta e tão boa gente está profundamente empenhada, num espírito de bairrismo de cortar à faca.

 Ao primeiro número segue-se o segundo; ao segundo segue-se o terceiro; ao terceiro segue-se o quarto; e a Amália faz no segundo número o que fizera no primeiro; no terceiro faz o que fizera no segundo; e no quarto faz o que fizera no terceiro, dizendo-me a determinado momento, a exalar euforia, que repare bem como aquela boa gente, embora com pouco talento, quase sem formação musical e artística, vibra de orgulho e de portuguesismo, e que ela, Amália, oriunda do povo, amiga do povo, gostaria mais de estar no palco a dançar e a cantar com os elementos do rancho folclórico do que a fazer o papel de jurada.

          Sai do palco o primeiro rancho, ao som ruidoso da marcha com que a ele tinha subido briosamente; e ao primeiro rancho segue-se o segundo e ao segundo segue-se o terceiro e ao terceiro segue-se o quarto, e no fim dá-se aos ilustres jurados o tempo necessário para que possam avaliar conscienciosamente a actuação dos quatro ranchos folclóricos, classificando-os profissionalmente. A nota final é dada e é anunciada pública e solenemente, do palco, pelo presidente do Clube Português de Waterbury e uma estrondosa salva de palmas celebra a proeza do rancho vencedor, que é o Rancho Folclórico do Clube Português de Hartford, por ter duas cantadeiras razoáveis, por ter dois jovens exímios na interpretação do fandango do Ribatejo, por ter o traje mais lindo e mais vistoso – o traje minhoto, creio que de Viana do Castelo, novinho em folha - e  por ser constituído por gente jovem, alegre e elegante.

Mas quando eu julgava – de consciência tranquila, pelas razões aduzidas acima – que todo o mundo estava feliz e contente, eis que vejo postar-se à minha frente, com cara de poucos amigos, um antigo aluno meu na Universidade de Connecticut, presidente do Rancho Folclórico Filhos de Portugal de Danbury, a contestar a decisão do júri, proclamando, alto e bom som, que se tinha praticado uma grande injustiça, ao atribuir o primeiro prémio ao Rancho Folclórico do Clube Português de Hartford. Argumentava ele que bastaria só o facto de o Rancho Folclórico Filhos de Portugal, constituído essencialmente por imigrantes portugueses da Beira-Alta, especificamente de Gouveia e de Ceia, se apresentar com um adestrado e valente cão Serra da Estrela, a comportar-se no palco como se estivesse nos montes a guardar um rebanho de ovelhas dos ataques dos lobos beirões, e se apresentar também com uma linda ovelha daquela região de Portugal, a qual era ordenhada, por mão competente, durante a actuação do rancho, permitindo que alguns elementos do rancho, no fim da actuação, pudessem presentear a assistência e os membros do júri com saboroso queijo da serra, feito do leite extraído das tetas da ovelha; bastaria apenas isso, continuava a argumentar, em voz grossa, o meu antigo aluno, para já não falar do carácter castiço da música e dos trajes, para que o seu Rancho Folclórico Filhos de Portugal de Danbury fosse galardoado com o primeiro prémio e não com o segundo. Que – rematava o meu antigo aluno muito irado, presumo que com mais coração que razão – os membros do júri deviam ter vergonha na cara por haverem praticado uma injustiça quase do tamanho da Serra da Estrela.

        E enquanto eu arcava sozinho com as queixas amargas do meu brioso e corajoso antigo aluno, rijo como o granito das serranias da sua Beira-Alta, a Amália, momentaneamente esquecida das dores que a apoquentavam, confraternizava, alegre e sorridente, com o seu povo: o bom e genuíno povo português da diáspora, com quem ela, franca, orgulhosa e magnanimamente, sempre se identificou.

 

 

António Cirurgião

 





quinta-feira, 30 de setembro de 2021

O estendal.

 




Já aqui foi caso da importância da mola da roupa.

Agora, mais precisamente no dia de hoje, é a vez do estendal.

Uma das principais cenas que Jean Cocteau quis filmar nesse filme de culto que é La Belle et La Bête foi a “cena dos lençóis no estendal”, cena essa que era, para ele, uma obsessão.

Antes de mais mobilizou tudo e todos e mandou a equipa em expedição em demanda dos lençóis mais-que-perfeitos para estender no mais-que-perfeito estendal. O diário de filmagem do realizador mostra-o constantemente inquieto e meticulosamente preocupado com a localização do conjunto, a disposição, a orientação do estendal. Mais: com cada fio do estendal, cada centímetro do fio do estendal, cada centímetro quadrado de cada lençol no estendal.

Um extrato do diário dá conta do feitiço que o tomou: “Tenho de tratar de tudo, pendurar a roupa, amarrar os mastros (…), construir as ruelas de lençóis e preencher os espaços a descoberto. É difícil imaginar o que é tentar alugar doze lençóis suplementares em 1945…  Eu só tinha seis. As ruelas e os bastidores foram sendo construídos à medida que se ia avançando, o que me impedia de ter à partida uma visão de conjunto. Mas na verdade até prefiro assim. Se tivesse de descrever esse labirinto de lençóis, havia de arranjar maneira de o leitor se perder nele”




Dedicado à Tânia Cunha.


Manuela Ivone Cunha





 

terça-feira, 28 de setembro de 2021

Outono e Automne.

 



 

Pode haver muito de diabolicamente absurdo na língua francesa. Na ortografia, então, nem se fala. Por acaso já falava Voltaire, que lhe ridicularizava as incongruências, e fala esta hilariante e inteligente Ted Talk em torno da obsessão ortográfica (vem com legendas, para quem ainda pesca algo de francês). O barrete pode ser enfiado em várias línguas e prometo comer o meu chapéu se almas obcecadas como a minha não se rirem. Chapeau!

Mas uma das qualidades dessa língua é ter imensas palavras para rimar com Outono -- ou Automne. Ouça-se aqui no Black Trombone cantado por Terez Montacalm, ou no original de Serge Gainsbourg.

Já em português é uma tristeza na presente saison. Tirando-me o sono, só me ocorreu "môno". Não conformada, fui procurar num dicionário de rimas na internet, contando que sairia dali uma resma delas, uma palete de palavras à altura da paleta de cores das folhas da estação. Qual quê. Uma pobreza pobrezinha de paupérrima.

Não dei o meu tempo por perdido, porém. No top 10 das palavras mais procuradas figurava esta, que compensa o esforço em apoteose, sendo em si mesma um fogo de artifício: "labaxúria".





Manuela Ivone Cunha

 


domingo, 26 de setembro de 2021

“A Alemã”.

 



Também conhecida por Allemande. Elemento fundamental num conjunto, no caso barroco – pois é – mas essencial em várias épocas e ocasiões.

Aqui em duas suítes, tocadas por um francês, um holandês e uma portuguesa. Tudo de toda a parte.


Manuela Ivone Cunha

 


terça-feira, 21 de setembro de 2021

A caminho da escola, le chemin des écoliers.

 

 

De cada vez que é usada a expressão francesa rentrée em época de regresso às aulas, devia arranjar-se maneira de saltar logo para uma outra, infinitamente mais útil e, sobretudo, encantadora: Le chemin des écoliers.

E que tem de especial “o caminho da escola”? É que não é bem-bem o caminho para a escola, mas o caminho, ou caminhos, que a pequenada toma até lá chegar sempre que pode. Não o caminho mais direto nem o pré-determinado, mas aquele que se faz caminhando, desdobrado em múltiplos atalhos e desvios, ora encurtando o troço mais feio e sensaborão, ora enveredando pelo percurso mais longo e aventuroso, explorando as belezas das redondezas nas voltas e contravoltas -- e na brincadeira com colegas, é claro.

Não é, pois, um arrastar de pés cabisbaixo a retardar a chegada, uma procrastinação triste e resignada do encontro com o destino. Tomar o caminho mais longo, le chemin des écoliers, é uma flânerie viva e tónica, cheia de propósito.

Não é de admirar que na canção O Testamento, George Brassens quisesse “partir para o outro mundo pelo chemin des écoliers".

Se me pedissem para escolher de repente, assim à queima-roupa, a encarnação de tudo isso em música (“de repente”, porque se me ponho a matutar a coisa complica-se) seria a de Carl Philipp Emanuel Bach -- filho do outro grande Bach. Carlos Filipe Emanuel, filho de João Sebastião.

E escolhia, agora a dedo e muito espiolhadas, interpretações audaciosas, imaginativas, arejadas, ardentes, dessa música cheia de vida. Que não se limitam a executá-la como esperado e a tocam como se fosse ao mesmo tempo a primeira e a última vez.

Ficam aqui 5 minutos da primeira, da orquestra Pulcinella, de Ophélie Gaillard. Creio ser sobre ela que ouvi a um crítico, já meio enfadado após ouvir de enfiada uma mão-cheia de outras interpretações mais quadradas ou cinzentas, a seguinte tirada, irresistível de rabugice bem-humorada:

“Não há direito! Faltar a este ponto ao respeito a um grande compositor, filho de outro grande compositor. Devia ser proibido. Sempre a fervilhar de ideias, de alacridade, de chama, de brilho, de cor… Mas quem lhes pediu tal coisa? É ultrajante. Ainda por cima têm o topete de tocar bem. Se tocassem mal, ainda vá, ficava tudo mais sossegado. Assim não dá. Em suma: genial. O respeito é para os cemitérios. Isto vive, vibra!”

O mesmo se poderia dizer desta (mon coeur balance) e desta. E para não se pensar que cheia de vida é sinónimo de contentete e alegrete, eis este largo.

Nota: este texto foi redigido de acordo com… novas preocupações, éticas e estéticas.  Na minha rentrée, vou propor a estudantes que descubram o preceito escondido, o discutam com calor e arejamento, e redijam um parágrafo segundo o mesmo preceito, sobre assunto à escolha.


Manuela Ivone Cunha.




segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Que o vento seja suave.

 

Que o vento seja suave.



Uma brisa basta. No último dia de máscaras na rua, uma toada de despedida. Sem saudades, só esperança numa aterragem tão auspiciosa como a que parece aguardar os bonequinhos parapentistas da foto em baixo. O que virá depois não há de ser um furacão.

Nunca ouvi o vento desta maneira em “Soave sia il vento”, em Così Fan Tutte, de Mozart. Nesta interpretação, datada de 2020, ano de pandemia e de sufoco alucinado, o que se ouve no primeiro ato já nem parece um trio de vozes. Antes um quarteto -- e a brisa, o sopro das cordas, o elemento central.

É comparar: quem ansiar menos por uma vibração do ar assim, tamanha, a insuflar-nos por dentro até nos criar asas próprias, e preferir algo mais estelar, pode ficar com proveito a cintilar com este trio de estrelas.




Manuela Ivone Cunha 

 

 




quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Sonatina Burocrática.

 

 


Ao contrário do que se imagina, há burocratas com sentido de humor. Talvez por ter sido alimentado com um sentido de auto-derrisão tão comum entre belgas como a batata frita e o mexilhão, certo membro de uma estrutura administrativa gestora da qualidade, interpelado ao telefone por uma académica bruxelense minha conhecida, indignada com a enésima massacrante exigência burocrática que emanava dali, reagiu com desarmante franqueza à sugestão desta para que lesse o já famoso Bullshit Jobs (trabalhos da treta), do antropólogo David Harvey: “Bem… Aqui já todos o lemos…”.

E citou, por seu turno, mais duas ou três obras na mesma linha, em que afinal ele e colegas admitiam reconhecer-se, tim-tim por tim-tim -- ou Tintin, sendo ele belga. Após um breve silêncio, desataram ambos a rir ao telefone, unidos no reconhecimento cúmplice de tanto absurdo burocrático, da tácita comédia de enganos que todos sabem desprovida de sentido, ou de real propósito útil.  

É certo que o sentido de humor pode ser involuntário, como o de uma estrutura congénere de uma respeitável instituição de ensino superior, desta feita portuguesa, que de tão embalada na volúpia burocrática, de tão alheada na sua bolha, nem percebeu o gáudio generalizado aí gerado pela circular que divulgou, intitulada: “Documento de Procedimentos para Obtenção de Feedback Sobre o Feedback nos Processos de Avaliação do Ensino”. Porventura melindrada pelo efeito cómico, que continuou sem compreender, acabaria por não chegar a produzir o documento que já toda a gente antevia seguir-se, destinado a obter o Feedback Sobre o Feedback Sobre o Feedback, em loop perpétuo.

Agora que a rentrée se aproxima em condições de alguma normalidade no rescaldo da pandemia, que o apetite burocrático desperta e, quiçá, as Mãos Doem já em tanto formigueiro, é de ficar com a Sonatine Bureaucratique, de Eric Satie, a quem voto um respeito terno. Mais ainda depois de saber que o seu apartamento continha um sem-número de guarda-chuvas e dois pianos de cauda, um sobre o outro, e que usava o de cima para guardar cartas e encomendas. Não é de admirar que deixasse partituras em sítios estranhos e variados, para além de extraviá-las em bolsos de fatos de veludo.

O absurdo de Satie é um deleite não vampírico, que não suga o tempo, a energia, a força anímica de ninguém. O que não significa que não soubesse moer quem merece ser moído, como no prefácio a Sports & Divertissements: o Coral Desagradável, que Satie disse ter escrito “para criaturas ressequidas e estupidificadas, uma espécie de preâmbulo azedo, uma introdução austera e não frívola. Pus nele – diz Satie -- tudo o que conheço sobre Aborrecimento. Dedico este Coral a quem não gosta de mim. Retiro-me”.

 



Manuela Ivone Cunha






quinta-feira, 17 de junho de 2021

A Dança dos Adolescentes.

 

 


Ver algures lembrado o dia de hoje, 17 de junho, como o dia do nascimento de Igor Stravinsky (1882-1971), acordou de imediato na memória remota uma Sagração da Primavera que me fizera há uns anos rumar a sul, ao Coliseu, para vê-la conduzida por Esa-Pekka Salonen.

Mas o que tornou esta Sagração memorável, além da batuta de Salonen, foi a performance primaveril das cabeças dos dois adolescentes que me acompanhavam. Metal, impecavelmente heavy. Um fenomenal head-banging que Nijinsky não teria hesitado roubar na hora para coreografar uma versão contemporânea do número da “Dança dos Adolescentes”.

A energia, a precisão, a amplitude do movimento desenhado por aquela trunfa e aquele cabelame, em perfeita sincronia e sem falhar um único tempo forte das percussões, deixou-me pasmada, verde de inveja. A mim e, suspeito, ao entorno da plateia.  Aquilo era contagiante, mas não estava ao nosso alcance. Seriam precisas umas dezenas de audições para acertar daquela maneira no tempo. A mística ficou, indelével.

Agora os Melodica Men, grandes mestres saídos da Juilliard School (juro), dão uma ajuda com os instrumentos de percussão que introduziram. E dá para ficar com uma vaga ideia do que se passou no Coliseu.

Olhando ao escândalo que foi a estreia de uma das obras mais revolucionárias do século 20, Stravinsky não se vai aborrecer com esta prenda de aniversário.


Manuela Ivone Cunha.

 



   

quinta-feira, 10 de junho de 2021

Greve.

 



Há greves que atrasam regressos, outras que os aceleram. One man’s trash is another man’s treasure – como é sempre bom ouvir em estrangeiro na Feira da Ladra.

A atrasada é esta cliente, assunto de greve de comboios, que, esses, não perdem pela demora. Hão de cá vir não tarda.

Agora é a vez de outra greve, que pôs fim a uma paralisação e desencadeou um regresso. Uma greve, um protesto sindical que é todo ele um tesouro: a graça, a inteligência, o acerto, o espírito, a finura  a classe. Além disso, tudo a expensas do patrão.

O patrão era o príncipe Esterhazy e os trabalhadores, os músicos ao seu serviço. Como todos os anos, acompanhavam-no no retiro estival para o palácio de Verão a fim de continuarem a entreter a aristocracia. Acontece que, dessa vez, o Verão do príncipe teimava em eternizar-se. Era novembro e não despencava dali. A estadia durava, durava, e os pobres músicos, impedidos de regressar a casa, agonizavam de saudades.

J. Haydn, ao contrário dos músicos, tinha sido autorizado a levar a família. Grande como era, percebeu a injustiça e o abuso, e, em vez de se armar em capataz, fez de delegado sindical. Vai daí, compõe essa estranha pérola que é a "Sinfonia do Adeus", partitura encomendada e paga pelo príncipe – lá está.

A apoteose em anti-clímax pode ser vista nesta interpretação do último andamento da Sinfonia pela orquestra filarmónica de Viena, dirigida por Daniel Barenboim perante uma plateia perplexa que só a partir de dada altura começa a perceber o que se está a passar. É ver tudo para saborear a exímia debandada orquestrada por Haydn, naipe após naipe, como não quer a coisa. Quem tem pressa – horror!  pode arrancar ao minuto 4 e picos.

Quanto ao príncipe, que não era burro nenhum, enfiou de imediato a carapuça e deixou partir os músicos na manhã seguinte.


 



Manuela Ivone Cunha





 

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Sexta-Feira Santa.

 

Antes de o sabermos de saber-ensinado, já o sabemos de saber-sentido, intuído na voz de Dietrich Fischer-Dieskau a cantar “Mache dich, mein Herze, rein", da Paixão Segundo S. Mateus, de J. S. Bach.  

Não é num sepulcro de pedra que Jesus vai dormir para sempre nesta ária do enterro. É no coração de um ser humano. É num coração humano que vai descansar e encontrar repouso. É cantada, por isso, como uma canção de embalar. Não sei se mais alguém a terá cantado assim, com tanta serenidade e doçura.

Aqui numa gravação de 1959 com a Munich Bach Orchestra, dirigida por Karl Richter






Manuela Ivone Cunha




 




Consolação #6


 

 


Allegretto sempre cantabile, com Sviatoslav Richter impávido, sem tosse de plateia que o perturbe.



Manuela Ivone Cunha