quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

A sátira a Salazar que Marcello Caetano não proibiu.

  



Em junho de 1972, era editado Dinossauro Excelentíssimo, por José Cardoso Pires, pela Arcádia, capa e ilustrações de João Abel Manta, em dezembro já íamos em terceira edição, 15.000 exemplares, um espanto, uma fábula satírica numa arquitetura literária completamente diferente de tudo quanto o autor de O Hóspede de Job até agora escrevera, que atrevimento fazer de Portugal o Reino do Mexilhão onde havia um imperador “que na ânsia de purificar as palavras acabou por ficar entrevado com a paralisia da mentira. Ainda lá está, dizem. E não é homem nem estátua porque a ele, sim, roubaram-lhe a morte. Não faz parte deste mundo nem daquele para onde costumam ir os cadáveres, embora cheire terrivelmente”. Livro dedicado às filhas, não que passasse por história com ingredientes inocentes como Os Desastres de Sofia, pela Condessa de Ségur, era a história encapuçada do ditador, obreiro de uma certa ordem e autoridade assumida como irrefragável, e para todo o sempre, seu nome Dinossauro, desde a infância “estava escrito que iria subir muiiiitíssimo na asa da compostura por cima dos casebres da aldeia e do palácio dos ricos, e que teria de tirar um curso que lhe desse para governar toda a gente. Leis, decidiu o padre local”. Foi tomado como um enviado de Deus, levado para ser doutor na cidade dos mesmos, os mestres receberam-no com dureza: “Vestiam paramentos negros e usavam estolas como as dos sumos sacerdotes, mais ou menos. Rostos rapados, cinzentos, olhos frios, raposões, olhos de muita vigília, ali estavam eles, bem alto, num friso de catedral como cardeais da sabedoria”, impôs-se como doutor, ganhou prestígio, houve quem dissesse que estava predestinado para voos desmesurados. 

Coube ao Dinossauro pôr ordem no reino, e ficamos a saber qualquer coisa sobre os mexilhões: “Logo que nos outros reinos se declaravam guerras ou preços lá vinha o vento alastrar e quem pagava eram os mexilhões, apesar de não terem culpa nenhuma; se os serranos se deixavam arrastar das suas tocas, sabiam que era contra eles que vinham chocar e viam-se obrigados a fazer parede para não irem parar ao mar. Oh, vida. Ao cabo de largos anos de experiência estes camponeses pendurados nas falécias, mexilhões no legítimo sentido, tinham criado pé, raízes de limo, obstinados em olhar as nuvens, o que quer que fosse”. Dinossauro fez-se acompanhar de muitos doutores, o reino foi embandeirado em decretos, requerimentos, assinaturas, rescreveu-se a história: onde se via pobreza devia ler-se modéstia, as fortunas chegavam de mão beijada, por decisão do destino superior aos homens, os pobrezinhos sempre honrados naquele reino onde havia até um Patriarca do Alto Comércio e um Guerreiro Mor. O imperador montou uma câmara de torturar palavras, sempre cercado pelos senhores doutores, em dado momento bárbaros das quatro direções ocuparam determinada ilha nos confins do mapa, a mais caprichada da Coroa, deu-se luta, as coisas não correram bem, houve que dar resposta: “A ilha não se perdeu, continua nossa”, era assim nesta teia das palavras que se amansavam os mexilhões. Com o passar dos anos, Dinossauro encerrou-se no casulo, dispensava as visitas, falava muito para o gravador. No meio daquela pasmaceira, talvez entendida como vida retrógrada, o Dinossauro tornara-se prisioneiro de si mesmo, o passado tornou-se rotina do presente, e Cardoso Pires engrena numa frase subtil: “Já ensinavam os mexilhões-avós e os mais para trás que fingir de cego é virtude de quem vê demais, e certamente tinham razão. Sua Alteza deixava andar os bacharéis discursadores à rédea solta pelas campinas da História. Desenterravam aniversários, palitavam jantares, pressentiam inaugurações e pretextos de tuta-e-meia para solfejarem a sua palavrinha de hora e tal”. Dinossauro sofria com a ingratidão daquela indiferença dos mexilhões, a ordem que ele concebera ainda era alvo de alguns rituais, vinham às centenas as camionetes de excursão bater-lhe palmas, mas Dinossauro já tinha poucas ilusões e preferia cumprir o seu reinado no gabinete, dedicou-se à manipulação das palavras, Cardoso Pires urde com subtileza o trabalho a que se fadara Dinossauro:

“Na sua qualidade de camponês de gramática asseada, o Imperador aprendera a dar valor a semelhantes ornatos de aspeto inofensivo. Tinha visto muito bacharel tropeçar na vírgula e estatelar-se a meio do período; ou passar sem dar por ela e perder o fôlego antes do ponto final, o que não era menos desastroso (…) De camaroeiro em punho meteu-se a pescar vírgulas nas prosas mais turvas; lançou-se atrás do til, essa borboleta, e do trema em lantejoulas; distribuiu hífens, colocou-os com cuidado com que se abrem cancelas no terreno selvagem das orações confusas. Ao sinal do parágrafo, minúsculo hipocampo entre folhas amortalhado, pô-lo a embelezar com abundância os decretos-leis da sua predileção; e à gota de mel, que era o ponto de exclamação, retirou-a aqui e ali para não tornar gulosa a frase”. Envelheceu o imperador, retirou-se para o Forte das Sete Chaves, recebia esparsamente os conselheiros, estes arranjaram uns espelhos especiais corrigiam a imagem do Doutor Dinossauro, representando-o em imperador novo e de acordo com o modelo oficial. Os jornais e a televisão ajudavam a compor a imagem. Ficou fora do mundo, ainda acreditou que era imperador, os conselheiros fiéis fingiam que vinham a despacho, inventavam-se imagens de inaugurações, julgava-se que ia morrer, mas ressuscitou, foi nessa atmosfera que se criou o Império Fantasma, tétrica encenação. “Reza a História que Dinosaurus Um faleceu a tantos de tal, hora da Comarca dos Doutores, fulminado por uma síncope de amnésia. A dado instante está vivo e ponto. Faleceu”. Acorreu-se ao velório, os mexilhões pasmaram. E cresceu o mito, os conselheiros fiéis afirmavam a pés juntos que a teia das palavras alastrava, e de dedo em riste lembrava-se às gerações que as estátuas do imperador vigiavam o reino. E porque de uma fábula satírica se diz tratar, o autor despede-se pedindo às filhas que fechem o livro, que mandem passear os fantasmas. “Fartámo-nos de falar de mortos, de velhos, de mistérios, quando afinal temos tanto para viver. Não é?”.

A edição era lindíssima, guardo-a como uma relíquia. Indubitavelmente, José Cardoso Pires, mesmo fazendo fábula sobre o óbvio aqui provou e comprovou que era um mestre renovador da língua portuguesa. 


Mário Beja Santos 





quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

A crónica estarrecedora da derrocada de uma comunidade agrária, na gândara.

 





Guardo para mim que Carlos de Oliveira foi o grande artífice da revolução literária em Portugal, na década de 1940, iniciou-se no movimento neorrealista, de que mais tarde se desvinculará, neste tempo produzirá um romance de alto calibre, Casa na Duna, na década seguinte outro prodígio, Uma Abelha na Chuva, outro tumulto literário acontecerá na década de 1970, com Finisterra: paisagem e povoamento. Distingue-se de qualquer outro escritor pelo permanente cuidado em rever as suas obras até as reduzir à quintessência do medular, uma prosa sem um pingo de enxúndia, uma economia na prosa sem igual, tenho agora nas mãos a 5ª edição, de 1977, afinou o estilo, faz-se inteiramente compreender com a eliminação de todo o pormenor vagante:

“Na gândara há aldeolas ermas, esquecidas entre pinhais, no fim do mundo. Nelas vivem homens semeando e colhendo, quando o estio poupa as espigas e o inverno não desaba em chuva e lama. Porque então são ramagens torcidas, barrancos, solidão, naquelas terras pobres.

Ao fundo dum desses sítios, há uma pequena lagoa que o calor de julho seca. A aldeia chama-se Corrocovo e a lagoa nem sequer tem nome. Quando a água se escoa, a concha gretada está coberta de bunho. As mulheres ceifam-no, estendem-no ao sol, e entrançam esteiras que vão vender às feiras da vila de Corgos.

Mariano Paulo e os amigos descem da quinta, caçam ali os patos bravos, quando o outono os leva de passagem para as terras quentes do sul. O charco espalha sezões nos casebres à borda de água e agasalha as aves para os senhores da aldeia derrubarem a tiro. Aves com frio, caçadas crepusculares”.

Entram em cena os personagens, logo Mariano Paulo, o Dr. Seabra e o Guimarães, mais adiante o Lobisomem (de corpanzil vergado e uma das pernas arrastar). A prosa é esquemática, totalmente elucidativa: “O povoado escreve sobre a duna que há perto de duzentos anos os pinhais começaram a fixar. No alto, a descer para o poente, fica a quinta dos Paulos. A casa tem dois pisos e é ampla e velha. Uma larga alpendrada resguarda-lhe as janelas da chuva, das nortadas. A telha é antiga, canelada, e o tempo enegreceu a caiação. A quinta desdobra em leiras de pinhal, vinha, milho, pela gândara dentro”. Nesta casa viveu o fundador, Silvério Coxo, o velho Paulo, agora Mariano e o seu cismático filho, Hilário, mas também Maria dos Anjos, que aquece a cama de Mariano, e há a criada, Palmira, que cuidou de Hilário, órfão logo que chegou a este mundo. E ficamos igualmente a ver como cresceu aquele domínio agrário: “Os Paulos, um após outro, tinham conseguido alargar a quinta, leira sobre leira, num tempo em que os camponeses trocavam a terra a canecas de vinho. Corrocovo via a fazenda acumular-se, a quinta alastrar sobre pequenos campos vizinhos. Os homens entregavam a terra vendida e começavam a cavá-la por conta alheia, ganhando a jorna certas dos patrões. A quinta cresceu, abocanhado tudo: pinhal, searas e poisios”. Os tempos são de mudança, chegaram as máquinas, Mariano recusa-as, deplora aquele filho sempre alheado de tudo, incapaz do entusiasmo. Palmira casa com Luciano Taipa, jornaleiro da quinta, todo o dinheiro que acumulara reverte para solo agrícola do casal, tudo redundará em fracasso, Luciano emigrará. Aquela estrutura agrária definha: “O trabalho da quinta era feito enxadas, a uva esmagada sem prensas, o milho escarolado à mão. A aguardente de Corrocovo corria ainda do tosco alambique, como nos tempos do velho Paulo. A compra da grande máquina destiladora fora sempre adiada. Os homens continuariam a calcar os cachos, o bagaço, a escarolar as espigas. Na quinta, tudo nascia da sua paciência”. E veio o mau ano agrícola. “Nevoeiro, míldio, lagartas e calor, doenças a grassar no chão macerado. O vento quente bafejava as culturas, matava por sua conta. A terra, que era verde, tornara-se amarela”. Estalou a miséria na aldeia, a quinta esbarrondava-se, o desprendimento de Hilário desalentava Mariano. Este ainda sonhou em adquirir os fornos de caldo do Guimarães, houve hipoteca, mas foi resgatada, nada se alterou. A quinta parecia viver fora do tempo. Hilário dá sinais de perturbação, é arrogante com o feitor, Firmino, este esteve para ir às vias de facto, tudo por causa de uma égua que Hilário retalhara o dorso a chicote. Há gente estranha pelos matos, talvez um fantasma portador de prenúncios maus. Mariano sente um alento quando monta uma fábrica de telhas. Hilário sempre indiferente, anda perdido de amores por Guilhermina, que quase sempre o escorraça, tem outros amantes a valer. Aquele pedaço de terra barrenta que parecia ir trazer novos tempos férteis aos Paulos, subitamente perdeu valor. Durante tempos, a telha vendia-se bem, as encomendas cresciam, Mariano, vendo aquele Hilário incapaz de tudo, pensa em casar-se com Maria dos Anjos, quer ter herdeiros a sério. Mas chega a derrocada:

“Foi então que a grande estrada que descia da vila começou a aproximar-se de Corrocovo, a abrir-se por entre o mato, a deitar pinhais inteiros ao chão. Apareceu em frente da aldeia o piso certo de saibro e pedra. E a multidão de britadores, homens de picaretas, pás, enxadas, com a ajuda dos cilindros enormes, enfiou a estrada ao meio do lugar. Negociantes, porqueiros, carros de milho, fruta, couve, gado e celeiros, passavam agora em Corrocovo, na estrada nova, para as feiras da vila”.  Assim se condenou a fábrica de telha, a concorrência das grandes indústrias vendia mais barato.

E como na tragédia grega, tudo se precipita, a maldição tem o seu auge. Na festa de Nossa Senhora da Lagoa, Hilário vê a sua Guilhermina a dançar com Basílio, o lodo do ciúme veio à tona, agride-o brutalmente. Basílio não se faz rogado, tira vingança, mata-o com uma enxada, enterrada de alto a baixo na cabeça. Mariano entende que chegou a hora de destruir a quinta, tem ali a lenha da cozinha, as latas de petróleo, a palha dos corrais, os fósforos, imagina as chamas a crescer dos dois lados do pátio, a devorar a casa, a adega, as tulhas, a nogueira plantada por Silvério Coxo, fundador da quinta. Assim o pensou e assim o fará, tem de alcançar a sua vitória sobre o destino, aquele mundo antigo irá desaparecer, não será desafiado por aquele que se anuncia, Mariano prefere que tudo se perca, aquela quinta é a metáfora de uma estrutura agrária que entrou em derrocada num Portugal que balbucia a industrialização.

Escassa centena e meia de páginas de uma densidade tal que deixa o leitor de antemão informado que temos aqui texto clássico, do melhor que produzimos no século XX.


Mário Beja Santos

 






terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

“A warrior’s rest” | O funeral do Rei e a capitulação belga.

 






“«There'll always be an England» to stand before the world as a symbol and a citadel of freedom."

Jorge VI, 23 Setembro 1940



Há 70 anos, o imbatível cerimonial britânico voltava a impressionar o mundo. A despedida do Rei que partira demasiado cedo, tolhido pela Guerra, pela doença e pelo indesejado peso da Coroa, foi um momento extraordinário de pompa fúnebre.

Às portas de Westminster Hall, ao som do incontornável Big Ben, das salvas de canhão e das marchas fúnebres, o grande cortejo arrancou com milhares de soldados com armas invertidas, em sinal de luto, a desfilar pelas ruas de Londres com o corpo do último Imperador da Índia que foi também um improvável herói e um rei amado e respeitado, genuinamente, pelos seus súbditos, que agora o choravam. 

Se o reinado de Jorge VI começara sob o peso da abdicação do irmão e com uma opinião pública favorável ao casamento de Eduardo VIII com Wallis Simpson, a sua postura corajosa e inspiradora durante a Guerra transformou-o num monarca respeitado, querido e próximo do povo. A fibra da sua mulher, a Rainha Isabel, foi uma parte fundamental dessa mudança de atitude da opinião pública. A célebre frase – The children will not leave unless I do. I shall not leave unless their father does, and the king will not leave the country in any circumstances, whatever.” - ficou para a História da resistência britânica. 

O esforço militar britânico para libertar uma Europa em que era o único farol de liberdade teve reflexo numa nutrida representação militar de aliados mas também de países de neutralidade dúbia. Portugal, que decretou luto nacional pela morte do Rei, teve também uma representação militar dos três ramos das Forças Armadas: o General Barros Rodrigues, Chefe do Estado Maior do Exército, o General Santos Cintra, então Comandante Geral da Aeronáutica Militar, e o Vice-Almirante Oliveira Pinto, Chefe do Estado Maior Naval.

Mas foi o então Ministro dos Negócios Estrangeiros do governo de Salazar, Paulo Cunha, que liderou a delegação. Foi um dos portugueses que desfilaram pelas ruas de Londres e depois de Windsor, no último adeus a Jorge VI. Os outros eram o futuro embaixador Gonçalo Caldeira Coelho e o Secretário do Ministro (e futuro professor universitário) Fernando Pessoa Jorge, falecido em 2020, e alguns militares listados na edição especial da London Gazette que detalha o cortejo.

Cinco reis, quatro rainhas e uma grã-duquesa, os presidentes de França, Turquia e Jugoslávia, uma vintena de príncipes, muitos ministros dos estrangeiros, incluindo o americano Dean Acheson e o alemão Konrad Adenauer. Dos muitos que atravessaram Londres a 15 de Março de 1952, faz agora 70 anos, são muito poucos os que ainda vivem para contar. E no que se pretendia a despedida de um herói da Segunda Grande Guerra, símbolo da resistência do mundo livre à tirania de Hitler, houve ainda reminiscências das feridas profundas abertas pelo conflito.

A Rainha Isabel II tinha então 25 anos; tem hoje 95.

O Duque de Kent tinha 16 e hoje tem 86 anos. Seguiu, imberbe, ao lado do tio, o ex-Rei Eduardo VIII, então Duque de Windsor. Este regressara a Londres para o funeral do irmão e sucessor, sozinho, sem a sua Wallis por quem deixara um Império inteiro. Pareceu inquieto e desconfortável, de uniforme, num papel que já não era o seu. Por várias vezes durante o cortejo se inclinou para o jovem Duque de Kent, parecendo dar-lhe conselhos, como para aliviar a tensão.

Alberto da Bélgica, então Príncipe de Liège, tinha 17 e tem hoje 87 anos. Haveria de reinar como Rei dos Belgas entre 1993 e 2013, mas a sua presença em Londres, em representação do seu irmão, o igualmente jovem e inseguro Rei Balduíno, suscitou uma crise política e constitucional em Bruxelas, a acrescentar às muitas que se sucediam desde o fim da Guerra. Leopoldo III, pai de ambos, rendera a Bélgica a Hitler em Maio de 1940 apesar dos avisos, por escrito, de Jorge VI, para que fosse menos herói e não se deixasse capturar.

Os ingleses viram a capitulação belga como uma traição insuportável. O governo belga fugira para o exílio. O  Rei decidira ficar para lutar, mas, inesperadamente, decidira capitular, arriscando a prisão e expondo o flanco britânico aos alemães. O antigo Primeiro-Ministro inglês Lloyd George escreveu que a rendição de Leopoldo fora o mais esquálido exemplo de perfídia e de pusilanimidade: “You can rummage in vain through the black annals of the most reprobate Kings of the earth to find a blacker and more squalid sample of perfidy and poltroonery than that perpetuated by the King of the Belgians.

Churchill foi mais cauteloso do que Lloyd George, mas não deixou de isolar o Rei Leopoldo, elogiando apenas a bravura do exército belga e o Governo no exílio. Mas tentou dizer que o Rei capitulara sem aviso prévio, o que era mentira, porque Leopoldo prevenira o Rei Jorge VI e esteve tentara demovê-lo. Este tema foi polémico para os resto da vida de Churchill, com alterações à versão francesa das suas memórias para tentar conter a ira belga.

Em qualquer circunstância a postura de Leopoldo foi tudo menos de lealdade para com os Aliados. Tentou, ao longo dos anos, retirar legitimidade ao governo no exílio e manteve-se firme nesse desiderato até ao fim – embora esse governo tenha mais tarde, ele próprio, chegado a defender a rendição... Mas Leopoldo nunca aceitou a qualificação como traidor. Sentiu-se injustiçado. Afinal, do seu ponto de vista sacrificara-se pelo seu povo, fora preso durante anos pelos nazis e impedido de regressar mesmo depois do fim da Guerra. Rejeitou repetidamente as injúrias de Churchill e dos franceses.

Jorge VI não retirou a Leopoldo a Ordem da Jarreteira, como fez com o Imperador do Japão, apesar de instado a fazê-lo. Tinha-lha concedido em 1937, quando Leopoldo fez uma Visita de Estado a Londres. Mas o Rei belga foi efectivamente marginalizado. Não foi convidado para o casamento da Princesa Isabel e do Príncipe Filipe em 1947 e ficou um clima de tensão que voltou a fervilhar em pleno em 1952.

Leopoldo III acabou por abdicar quando, ao regressar a Bruxelas em 1950, depois de um referendo que determinou o regresso do exílio (o seu irmão Carlos era o Regente), se viu rodeado de protestos violentos e mortes. Sucedeu-lhe, um ano depois, o seu jovem filho Balduíno, figura frágil que viria a relevar-se um rei absolutamente notável.

Quando a corte belga, aos poucos dias da morte de Jorge VI, invocou uma questão de protocolo e etiqueta para não enviar a Londres o Rei mas antes o seu irmão Alberto, instalou-se uma crise política. O Primeiro-Ministro tentou, em vão, que a imprensa não publicasse o comunicado da Casa Real. Tentou demover o Rei da sua decisão. Também em vão. Tudo foi visto como uma vingança de Leopoldo III e uma evidência da influência desmesurada deste e da sua segunda, belíssima e popularmente odiada mulher, Liliana, Princesa de Réthy, sobre o seu filho, o Rei.

Chamaram-lhe, na imprensa francófona, o drama da corte de Bruxelas. O argumento de que o Rei Balduíno não podia ir porque não tinha ainda visitado oficialmente o Reino Unido era facilmente desmontável e foi ridicularizado, trazendo novas sombras sobre o início do seu reinado e voltando a agitar as bandeiras do colaboracionismo belga durante a Segunda Guerra.

Foi uma lição aprendida em Bruxelas: em Março de 1953, mesmo sem visita oficial, o Rei Balduíno voou para Londres para participar no funeral da avó da Rainha Isabel II e mãe de Jorge VI, a Rainha Maria. Isabel II retribuiria o gesto. Em Agosto de 1993, participou em Bruxelas no funeral do Rei Balduíno, partindo, também ele, de forma súbita e inesperada. Uma gaffe protocolar, contudo, havia de marcar a presença britânica: o Príncipe Filipe, Duque de Edimburgo, compareceu com a banda de grã-cruz a Ordem do Leopardo, do Zaire, antigo Congo Belga, em vez da Ordem de Leopoldo, da Bélgica... Mas não se tratou de um insulto à antiga colónia, nem ao antigo colonizador. As ordens estariam, afinal, arrumadas por ordem alfabética.










* * *

A urna de Jorge VI, coberta com o Estandarte Real e com a Coroa Imperial, o Ceptro (com o maior diamante do mundo) e o Orbe tremeluzindo sobre ela, foi puxada por dezenas de marinheiros. A seu lado caminharam duas pessoas que viriam a ser relevantes no futuro da Família Real: à frente, o ajudante-de-campo do Rei, Peter Townsend, que viria a causar o primeiro escândalo do reinado de Isabel II, quando se conheceu a sua relação com a Princesa Margarida; logo atrás dele, o Visconde Althorp, futuro Conde Spencer e depois pai da Princesa Diana e avô do futuro Rei de Inglaterra, o actual Duque de Cambridge.











O esplendor da última viagem foi exemplar. Ao som dos passos dos soldados e das marchas militares, a urna, garrida de cores heráldicas e diamantes, passou por ruas sombrias, apinhadas de gente enlutada. A dor pela partida do Rei era genuína e, em primeiro lugar, na sua família. A Rainha Maria enterrava o seu terceiro filho e a urna deteve-se junto à janela de Marlborough House, de onde assistiu. A Rainha Isabel ficava viúva aos 51 anos e assim permaneceria por mais 50, num vazio súbito que teve dificuldades em preencher. O povo, ainda dilacerado pelas feridas da Guerra, perdia agora um dos símbolos da sua luta.

 

George VI

Now he has laid the burden down,

Even a King at last may rest:

Now he puts off the unwelcomed crown

That heavy on his temples pressed.

 

The frets of state, the bitter wars,

The cares that filled that anxious breast

These marked him like a soldier’s scars.

 

But even a King at last may rest.

Grant him Thy peace, O Lord, we pray.

Who of us all has earned it best,

Who wore for us his life away -

Give thou this King a warrior’s rest.

 

Edward Shanks (1892-1953), Sunday Times, Fevereiro 1952












 

Em Windsor, o som estridente das gaitas-de-foles escocesas acompanhou o cortejo desde a estação de comboios, com os mesmos dignitários, a mesma solenidade, a mesma dor popular. Na Capela de São Jorge, incrível panteão de tantas dinastias, depois de uma brevíssima cerimónia religiosa, o Rei-de-Armas da Jarreteira pronunciou os títulos do falecido Rei, enquanto a urna baixava dramaticamente, concluindo de forma solene um reinado curto e heróico, de resistência e muita dor, mas de firme defesa da liberdade que continua a ser timbre do Reino Unido.

 

Ademar Vala Marques

Fevereiro 2022

 

(Imagens da imprensa da época)








segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

No Norte, há alguém ou uma casa há muito abandonada.




 

          Tenho para mim que o mais recente texto de Manuel Alegre, Tentação do Norte, Publicações Dom Quixote, 2021, é a obra mais encriptada ou polissémica do último dos nossos camonianos. Na poesia, no romance, na novela, no ensaio, nos contos, no infanto-juvenil, sobressai e dilata-se, inconfundível, a rima do resistente, as convicções que não vergam na vida do exílio; o vate possui o dom de nos abraçar na dor da memória da Guerra Colonial, sabe fascinar a criança, enternece-nos com a companhia e a fidelidade de um cão, dom inestimável a daquele bicho que gostaríamos de ter tido em nossas casas.

          Mas nesta narrativa, a tal tentação do Norte, ele provoca o leitor num enredo tão labiríntico, que se anda atarantado em busca do fio da mensagem: tudo é urgente em partir para um Norte, a despeito de uma irremediável saudade de tudo o que fica no Sul, nesse ponto que pode ser encarado com azimute, há lá algo de insubstituível, por enquanto é uma reminiscência, impõe-se partir sem bagagem; e abruptamente fala-se de uma ameaça que houve no passado, seria tempo de clandestinidade, e aqui faz-se a confissão de quem discorre andou sempre com a geografia e os pontos cardiais do avesso, seja como for, há que partir para encontrar a outra metade; será devaneio, houve mesmo encontro amoroso, do que foge aquele refugiado em Arzila (será Argel?), é peregrinação insana para um ponto em que o Atlântico é mais azul, quem ousa matar aquele fugitivo, ou clandestino, ou perigoso ou oposicionista político?, mas será tudo mesmo sonho, há uma voz de mulher a chamar? Há polícias políticas, medonhas, sedentas de sangue, no seu encalço?

          E o leitor continua vergastado pelos túneis da viagem, muito provavelmente houve no passado um fugitivo político que foi parar a Berlim Leste, parecia que alguém lhe dedicava um amor profundo, terá havido uma paixão recíproca, mas quem seguia em viagem já não estava ali, havia que partir, uma missão a cumprir, uma certeza inabalável, um entranhado amor à liberdade, uma bandeira a agitar, talvez versos incendiários, que perduram nos tempos de hoje. E prontamente o leitor é desviado para um alegado quadro real, simula-se uma carta a um diretor de revista, há para ali uma grande confusão sobre a história de um conto, houve um amor não consumado, sim, a polícia política portuguesa montou-lhe cerco, houve que fugir, os amantes desencontraram-se, tudo se passou há muito tempo, o dado relevante é que ele telefona a pedir encontro, ela chama-se Ju, ele sabe da carta enviada ao diretor da revista, por portas e travessas, conta-lhe as peripécias que viveu, então ficamos a saber que há uma praia do Norte “onde sei que me esperas de cabelos ao vento”, temos aqui uma outra cifra, será aquele Norte um anseio de liberdade, é-se octogenário e mantém-se firmeza no fio de prumo de toda aquela convicção que meteu fugas, a iniquidade da prisão, o deixar tudo para trás em nome de uma causa que continua a latejar numa idade maior? 

          Nada se esclarece, até parece que se turva ainda mais, agora alguém admoesta Sacha, entramos numa atmosfera em que alguém pretende pôr os pontos nos ii, exige contenção a quem anda a inventar uma tentação no Norte, passado é passado, frágil é a lembrança, ainda por cima vivemos numa sociedade de hiperconsumo, com desafios energéticos, com o paradigma do digital, com a litania do empreendedorismo, para quê rememorar histórias de luta, descobrimos que a Ju quer pôr alguma ordem nesta invenção daquele passado com tiros e perseguições, ela ficou à espera e ele responde que houve o envio do esboço de um conto, o início de uma narrativa poética, o palerma do diretor da revista não tinha nada de se intrometer, houve tiros e houve caçadeira, alguém preparou a emboscada, o intrigante é que não se sabe se foi um atentado político ou ajuste de contas disfarçado.

          Ju responde a Sacha e sentimos um raio de luz: “Não sei quem procuras, se o que fui ou quem fomos ou se tu mesmo, o outro, ou talvez a outra, a quem não existe a não ser na tal praia batida pelo vento, no Norte do Norte”. Pois bem, para alívio de quem anda nesta montanha-russa de emoções, há um encontro entre talvez Sacha e um agente torcionário, um velho muito velho, curvado quase até à cintura, isto na Praça da Figueira, há recriminações, o torcionário tem as suas alegações finais: “O senhor era resistente, combatia contra o regime. Agora é tudo outra gente. E nós, meu caro senhor, estamos na margem, cada um na sua. Nem vencedores nem vencidos”. Se houve crimes, já prescreveram, se há memória desses crimes, também ela também começa a prescrever. Seguem-se cartas. Chegou a vez de Manuel Alegre dizer quem é e de nos assegurar que não desiste do encontro, fica exarado: “De vez em quando, há de irromper em mim o impulso inevitável e então partirei, porque sei que estás lá, entre mar e vento, numa praia, ao Norte”. É bem possível que tudo culmine numa clarificação: fiquem sabendo que o poeta, o resistente, o defensor das liberdades, sabe onde está a sua causa, haja para aí uma atoarda de monstros, de algozes, ele sentirá a pulsão, como sempre na vida comprovou, virá a tentação do Norte.

          Se não foi esta a mensagem do vate, eu que me sinta apoucado por não ter sabido enfrentar tão desmedida prosa poética, desencadear este aparato de cifras em torno da tentação do Norte. 


Mário Beja Santos 





 



 

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

São Cristóvão pela Europa (170).

 


 

Num dos pontos cimeiros da Serra de Montemuro, a 1141 metros de altitude, no território da paróquia de Felgueiras, concelho de Resende, é possível encontrar a capela de São Cristóvão.

Local de peregrinação, tem um enquadramento majestoso, caracterizado pelo silêncio e tranquilidade.

 


A capela tem a forma de uma mastaba oriental. O interior é austero. A imagem de São Cristóvão é de granito e o Menino que o Santo transportava no seu ombro já se perdeu no desgaste do tempo.





 

 Fotografias de 3 de Fevereiro de 2022.

 

José Liberato




sábado, 5 de fevereiro de 2022

Isabel II, a Eterna.

 

 



Desde a morte do principe consorte, essa viuva é viuva como é rainha – magnificamente. Tem a tranquillidade de um ser indifferente a tudo, excepto ao dever.”

Branco e Negro – Semanario Illustrado, 27 Junho 1897

Only the passage of time can filter out the ephemeral from the enduring.

Isabel II, Discurso ao Parlamento na ocasião do Jubileu de Ouro, Abril 2002

 



No meio do declínio moral que atinge, sem distinção alguma entre repúblicas e monarquias, todos os países e até a sua própria família, a Rainha Isabel II permanece como um farol de dignidade, um exemplo de entrega a uma causa, expoente máximo de serviço público e de dedicação.


Será porventura porque o carácter de Isabel de Inglaterra foi traçado numa forja irrepetível em que se juntaram dois acontecimentos de proporções históricas, a Abdicação de Eduardo VIII e a Segunda Guerra Mundial, cada um deles traumático à sua maneira: o primeiro pela singularidade absurda de um rei que abandona o seu dever para com o seu país, colocando em risco a instituição que estava obrigado a preservar; o segundo pela dimensão avassaladora da violência, da destruição e do horror, misturados com o inspirador sentido de coragem e resistência que os então Reis Jorge VI e Isabel, pais de Isabel II, representaram para o seu Reino e para todo o Mundo livre.


Estas duas experiências históricas, vividas na década em que a jovem princesa passou de criança a adulta, foram determinantes na formação do espírito de serviço e de resistência às adversidades de que Isabel II tem dado provas ao longo do seu longuíssimo reinado.


Se é verdade que, em cada tempo, haverá uma tendência para considerar que as mudanças foram radicais em relação às décadas anteriores, será seguro afirmar que diferença entre 1952 e 2022 é mais extraordinária, por exemplo, do que a diferença entre 1837 e 1901, os anos de início e fim de reinado da Rainha Vitória. As mudanças sociais, políticas, religiosas e tecnológicas nunca foram tão profundas como no actual reinado.







Quando, a 6 de Fevereiro de 1952, a vida de Jorge VI se extinguiu tranquila mas inesperadamente, o mundo ocidental era ainda profundamente reverencial. A barbárie bolchevique triunfara na Rússia apenas 35 anos antes ceifando a vida dos Romanov, mas até ali já se havia transformado o antigo respeito pelos czares numa nova devoção pelos mártires vermelhos. Estaline, que morreria no ano seguinte, era um dos vencedores da Guerra e não apenas o monstro carniceiro de tantos povos.


Aos 25 anos, Isabel II tornou-se rainha no topo de uma árvore no Quénia, então colónia britânica. Longe estaria de imaginar que em breve seria erguido um muro à volta de parte Berlim, que o Homem chegaria à Lua uns anos depois, que uma espécie de confederação económica europeia vingaria por longas décadas, que a vida da sua família seria cruelmente devassada pelos tablóides, que os e-mails suplantariam as cartas e que os telemóveis trariam uma impensável rapidez e devassa à vida, que veria um afro-americano chegar a Presidente dos Estados Unidos da América, que um Papa renunciaria ao pontificado, ou que tendências seriam ditadas por jovens influencers sem méritos conhecidos, para citar apenas alguns dos muito extraordinários acontecimentos destes 70 anos.


Churchill regressara ao poder apenas 4 meses antes, numas eleições em que, pela terceira vez, perdeu o voto popular, ficando com menos 230.000 votos do que os Trabalhistas (em 1945 e 1950 perdera por mais...), mas em que o sistema eleitoral deu aos Conservadores uma curta vantagem em número de deputados. O ancião herói da Guerra, sempre impecavelmente vestido e polido, terá sido uma ajuda providencial para Isabel II nos primeiros anos do reinado. E, também nesse aspecto, a Rainha estaria longe de imaginar que em 2022 teria como Primeiro-Ministro um louro desgrenhado chamado Boris ou que um dos seus putativos sucessores e Chanceler do Tesouro seria um jovem de 41 anos, de pais indianos, chamado Rishi Sunak.











Jorge VI fora, genuinamente, um herói. Vencedor da sua própria timidez e gaguez profunda, foi um dos grandes símbolos da resistência ao recusar-se a abandonar Londres e ao ter a sua casa – Buckingham – bombardeada como tantos milhares de londrinos, escapando por pouco à Luftwaffe. Isso fez dele um dos vencedores da Guerra e um rei amado pelo seu povo. Mas tal não impediu que, naquele dia 6 de Fevereiro de 1952, uma das extravagâncias das monarquias voltasse a acontecer. Ao choque pela perda de um rei amado, de um herói, sobrepôs-se rapidamente a excitação do início de um novo reinado, uma nova era isabelina, com uma rainha jovem e bonita, o dealbar do tempo novo que permitiria esquecer os horrores da Guerra.


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O último monarca a celebrar 70 anos no trono, dito agora Jubileu de Platina, foi o anterior Rei da Tailândia, Bhumibol Adulyadej. Chegou à admirável marca em 2016, hospitalizado há muito, morrendo no mesmo ano. Já neste mês de Janeiro de 2022, Margarida II, a especialíssima Rainha da Dinamarca, que herdou um país convictamente republicano e o transformou num reino cosmopolita onde ainda impera a tradição, assinalou de forma discreta – covid oblige – os seus modestos 50 anos no trono, o Jubileu de Ouro, adiando as comemorações para mais tarde.  


Um jubileu assinala uma data redonda e marcante. Com origem no Livro do Levítico, que manda santificar o quinquagésimo ano e institui uma série de regras (Lev 25, 8-28), o primeiro jubileu instituído para o futuro e com periodicidade fixa de 100 anos, terá sido o do Ano Santo de 1300. Como as Escrituras falavam em 50 e todos gostamos de alegria, os Papas logo se apressaram em reduzir a periodicidade –passando primeiro de 100 para 50 anos e encurtando depois para metade. Assim, a Igreja Católica celebra a cada 25 anos um aniversário especial do nascimento de Cristo, com anos e portas santas, indulgências e peregrinações. O último foi o Grande Jubileu do Ano 2000, proclamado pelo Papa São João Paulo II e que mobilizou a Igreja Universal para assinalar os dois milénios desse momento marcante da nossa civilização – até na forma como situamos, no tempo, a História. 


Outras instituições passaram a assinalar os seus jubileus e os monarcas viram nessas celebrações a ocasião para renovar a sua aliança com o povo. A Rainha Vitória de Inglaterra celebrou os seus 50 anos no trono em Junho de 1887, uns anos depois de ter assumido o título de Imperatriz da Índia – e as comemorações tiveram um marcado travo indiano, com a chegada de vários rajás e marajás, mas também de dois criados indianos, um dos quais haveria de acompanhar a Rainha-Imperatriz até ao fim dos seus dias, numa relação não isenta de polémica.






Ao lado dos representantes de muitos outros tronos que desapareceriam nas décadas seguintes, os Príncipes D. Carlos e D. Amélia representaram Portugal nas cerimónias descritas na imprensa internacional como magníficas empompa, circunstância e entusiasmo popular. N’O Occidente (n.º 307), Manuel Pinheiro Chagas exaltava então o imobilismo de Victoria, “uma estatua”, como a maior das suas virtudes:

Victoria representa a inamovibilidade das instituições britannicas, e representa-as bem porque parece tambem inamovível. O inglez tenaz, afferrado aos seus habitos, pouco propenso a mudal-os, tem uma grande sympathia pela rainha que foi tão amavel com o seu povo que resolveu conservar-se firme como uma estatua no seu posto. (…) No seu imperturbavel afferro á existencia representa por tal fórma a tenacidade ingleza, que os seus subditos adoram-n’a como um symbolo. (…)

“A perturbação que a morte da rainha Victoria produziria na Inglaterra é incalculavel. Nem nos atrevemos a suppôr sequer como é que a Inglaterra poderá atravessar essa crise. (…)

Ora imaginem o que resultará do funesto acontecimento que obrigue os inglezes a deixarem de cantar God save the queen para passarem a cantar God save the king! É caso para produzir um abalo medonho na solidez da monarchia britannica.




Dez anos depois, em 1897, o Jubileu de Diamante assinalou os 60 anos de um reinado que já não entusiasmava, mas até Vitória ficou impressionada com as comemorações: "No one ever, I believe, has met with such an ovation as was given to me, passing through those 6 miles of streets . . . The cheering was quite deafening & every face seemed to be filled with real joy. I was much moved and gratified." – escreveu no seu diário.


A imprensa portuguesa não poupou, novamente, nas loas à Rainha:

“O ser immaterial accentuou-se sob a experiencia da vida e as canceiras do governo. A aurora de 1837 é hoje um crepusculo sumptuoso.

“Decana das rainhas e das imperatrizes, se não tivesse muitas corôas, seria ainda a maior mulher das Ilhas-Britannicas.

“Robusta como um carvalho, apezar dos seus 78 annos, a Rainha tem esse rosto severo que as grandes funcções e as grandes dôres cinzelam. Desde a morte do principe consorte, essa viuva é viuva como é rainha – magnificamente. Tem a tranquillidade de um ser indifferente a tudo, excepto ao dever.”


Deste texto publicado no Branco e Negro – semanario ilustrado (n.º 65), perpassa uma certa antecipação de fim de ciclo, o crepúsculo robusto que antes foi aurora imaterial.


Isabel II ultrapassou há muito o recorde britânico da sua trisavó Vitória, que morreu em Janeiro de 1901, após 63 anos e meio de reinado. E se o recorde de Luís XIV de França – 72 anos e 110 dias de reinado – parecia há uns anos irrepetível, tendo em conta que reinou desde os 4 anos de idade, ninguém se surpreenderá se a Rainha de Inglaterra lá chegar, em finais de Maio de 2024... Tal como, durante o século XX, a sua trisavó, a Rainha Vitória, foi sinónimo de longevidade, Isabel II prepara-se para ser uma referência para muitas décadas, provavelmente para vários séculos, um caso de estudo genético e de ciência política.


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Desligado dos contextos familiar, político e social, o reinado de Isabel II pode parecer uma ladainha monótona: as Aberturas Solenes do Parlamento, os desfiles do Trooping the Colour e os cortejos da Ordem da Jarreteira, os Natais em Sandringham e os Verões em Balmoral, as visitas de Estado e as tours pela Commonwealth, tudo com uma cadência quase perfeita.




E é, contudo, na singular circunstância de esta ladainha não se ter alterado substancialmente que está um dos segredos do sucesso de Isabel II enquanto soberana. Não propriamente por se fingir uma estátua, na expressão de Pinheiro Chagas, mas por ter presidido a uma evolução serena e discreta, num país que foi um turbilhão de acontecimentos e emoções mas continuou a ser o Reino Unido. Como a própria referiu em 2002, “Change has become a constant; managing it has become an expanding discipline.


Do ponto de vista político, a intervenção política mais arriscada da rainha terá ocorrido precisamente a propósito do tema que, historicamente, mais divisão causa nas ilhas britânicas: o da união. Em 1977, quando celebrava o seu Jubileu de Prata, a Rainha dirigiu ao Parlamento palavras muito fortes contra a devolução de poderes e em defesa da união do reino, assumindo-se como herdeira dos reis de Inglaterra, dos reis da Escócia e dos príncipes de Gales, mas sublinhando que fora coroada rainha do Reino Unido:

I cannot forget that I was crowned Queen of the United Kingdom of Great Britain and Northern Ireland.


O tom firme usado pela Rainha surpreendeu o grande Westminster Hall, a parte medieval que resta do antigo Palácio de Westminster. O trabalhista James Callaghan era o Primeiro-Ministro e Margaret Thatcher a Líder da Oposição e travava-se um debate aceso sobre a criação de um parlamento próprio para a Escócia. A rainha entrava a pés juntos num assunto constitucional muito delicado. O referendo escocês que teve lugar em 1979 deu uma vitória estreita aos que queriam a devolução de poderes, mas a participação eleitoral invalidou-o, acabando por fazer cair o governo de Callaghan que dependia do apoio dos nacionalistas escoceses e por levar Thatcher a Downing Street em 1979.


O assunto regressou no consulado de Tony Blair, eleito com a promessa de regressar ao tema. O referendo escocês teve lugar apenas 12 dias depois do morte de Diana, Princesa de Gales, num dos momentos mais duros do reinado, em que Isabel II parecia ter perdido o apoio do seu povo. O resultado foi avassalador, com 74% dos escoceses a favor da devolução de poderes. Uns dias depois também o País de Gales aprovou, por margem mais estreita, a devolução. A criação de parlamentos e de governos nacionais aconteceu dois anos depois. A união não foi quebrada mas, pelo menos no caso escocês, ficou abalada.


A hegemonia do Partido Nacionalista Escocês parecia conduzir irremediavelmente a Escócia à independência. Não estava, no imediato, em causa a chefia do Estado, uma vez que a Rainha passaria a ser Rainha da Escócia, recuperando a união pessoal que existiu até 1707. A Rainha apelou, discretamente, a que todos “pensassem muito bem na decisão”, sublinhando o carácter potencialmente definitivo. E, para grande frustração dos nacionalistas, o “não” à independência venceu no referendo de 2014, permitindo muito provavelmente a Isabel II terminar o seu reinado sem desfazer o legado dos seus antepassados.


O Reino Unido reverencial de 1952 transformou-se, em 2022, num país cosmopolita, símbolo orgulhoso de uma diversidade cultural e religiosa que espelha aquilo que foi outrora a sua glória imperial e que hoje muitos pretendem transformar numa perpétua cruz. Ter conseguido transformar essa herança colonial numa celebração – ainda que inconsequente – da diversidade é, provavelmente, uma das vitórias pessoais de Isabel II. A Commonwealth of Nations é a sua marca pessoal nesse legado de várias gerações de conquistadores.





Isabel II é ainda rainha de 15 países independentes. É Rainha do Canadá, Rainha da Austrália e Rainha da Nova Zelândia. Há 70 anos era também Rainha da África do Sul, do Paquistão e de Ceilão, que depois optaram pela via republicana. A atitude de respeito pela opção de independência das antigas colónias foi um aspecto que favoreceu o espírito da Commonwealth. O efeito isabelino será, em parte, o responsável pela surpreendente derrota do republicanismo no referendo feito na Austrália em 1999, com participação de 95% dos eleitores e que ditou uma opção de cerca de 55% pela continuação da monarquia constitucional – contrariando as sondagens que, consistentemente, indicam a república como favorita dos australianos.


A capacidade extraordinária para, com absoluta dignidade, “gerir a mudança” e reinar em dois países afinais tão distintos, o de 1952 e o de 2022, é sem dúvida um dos aspectos centrais da análise das sete décadas, num reinado pródigo em dificuldades e insucessos familiares. A sucessão de escândalos ocupou demasiado espaço mediático e a obsessão frívola – que faz correr mais tinta sobre os vestidos do que sobre os fins – diminuiu e continua a diminuir a percepção da dedicação da Rainha e da sua Família às causas sociais, caritativas, assistenciais, ecológicas e militares.


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Em Abril de 1947, cinco anos antes de subir ao trono, a Princesa Isabel fez uma comunicação radiofónica aos povos da Commonwealth Britânica e do Império para assinalar os seus 21 anos, a maioridade. Fê-la a partir da Cidade do Cabo, na África do Sul, onde se encontrava a acompanhar os seus pais na primeira grande viagem real do pós-guerra. Foi o seu primeiro discurso e falou, com a sua jovem voz estridente, da experiência de crescer nos “anos terríveis e gloriosos da segunda guerra mundial” e das dificuldades vividas pelos jovens da sua geração.


Foi aos jovens que se dirigiu para se vincular expressamente à divisa dos Príncipes de Gales: “Ich dien.” ou “Eu sirvo.” A mensagem não podia ser mais clara: apesar de, por ser mulher, não ostentar o título dos herdeiros do trono (só em 2015 passou a haver direitos de sucessão iguais para homens e mulheres), a futura rainha fez ali, em directo para milhões de pessoas, um voto de serviço tão ou mais sagrado que o da sua própria coroação:

I declare before you all that my whole life whether it be long or short shall be devoted to your service and the service of our great imperial family to which we all belong.


A este voto de dedicação e de serviço, com valor de juramento ancestral, se voltou a referir em diversas vezes ao longo do seu reinado, para o renovar e reafirmar – aproveitando, em especial, os jubileus de Prata (1977), de Ouro (2002) e de Diamante (2012). É absolutamente notável que uma jovem de 21 anos se tenha comprometido de maneira tão dramática e definitiva há quase 75 anos e pareça não ter hesitado num só momento no cumprimento desse voto, mesmo quando o fez com sacrifício pessoal e familiar.


Num dos momentos difíceis do seu reinado, em 1992, perante o clamor intolerante de jornais e políticos, Isabel II reconheceu a necessidade de mudança e de adaptação de todas as instituições, incluindo a Monarquia, naquele que é certamente um dos mais relevantes discursos da sua vida porque feito num momento de especial fragilidade. A Rainha fez uma reflexão profunda sobre o tempo, sobre “a inestimável vantagem da perspectiva”, para pedir moderação, compaixão, tolerância e gentileza:

Distance is well-known to lend enchantment, even to the less attractive views. After all, it has the inestimable advantage of hindsight.

But it can also lend an extra dimension to judgement, giving it a leavening of moderation and compassion - even of wisdom - that is sometimes lacking in the reactions of those whose task it is in life to offer instant opinions on all things great and small.




Vinda de outro tempo, Isabel II traz até nós os valores dessa era já desvanecida, em que a palavra dada tinha um valor quase sagrado – e que contraste produz com o nosso tempo, em que pretendem imperar a moda e o efémero e em ninguém se preocupa sequer em exigir o valor facial da palavra.


A Magnífica, a Imortal, a Constante? Que cognome melhor definiria a Rainha que hoje celebra 70 longos anos de reinado? Porventura nenhum lhe faz suficiente justiça. Porque, sendo magnífica, se destaca sobretudo pela sua discreta e coerente constância; sendo mortal, se destaca pela intangível continuidade que representa. E se este é o crepúsculo do seu reinado, em nada é menos digno de admiração do que foi o seu dealbar.


A ditadura do efémero (“an era when the regular, worthy rhythm of life is less eye-catching than doing something extraordinary) impõe que a celebração do feito extraordinário de terem passado 70 anos de reinado seja mais relevante do que o serviço constante e regular – e como tal absolutamente extraordinário – ao longo desses 70 anos. Mas é essa dedicação sem falhas que, independentemente da duração que o reinado vier a ter, distingue Isabel II, vincando a utilidade da monarquia e o seu papel pessoal como modelo, possivelmente irrepetível e como tal eterno, de serviço público e de lealdade para com os seus povos.


Ademar Vala Marques

Fevereiro 2022