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quinta-feira, 12 de março de 2020

Caminhos da memória.





 

          Num dos nossos almoços livrescos, porque a tradição ainda era o que é, o Manuel S. Fonseca trouxe-me estas Memórias Escolhidas de Domingos Lopes. Um livro importante, merecedor de ser lido, sem dúvida, como tudo quanto são memórias políticas, ainda que, como sucede tantas vezes com ex-comunistas ou ex- qualquer coisa, sejam memórias mesmo escolhidas. Em casos como este, a biografia confunde-se de tal forma com a pertença ao Partido que a autobiografia acaba sempre por ser assim, com a política omnipresente, como se aquilo que Domingos Lopes recordasse – ou achasse digno de recordar aos outros – passasse muito, imenso, pela sua militância no PCP. Memórias escolhidas porque nem tudo se conta. Fala-se do saneamento de Cavaleiro Ferreira da Faculdade de Direito de Lisboa, narra-se o seu «julgamento» pelos estudantes em fúria, mas não se refere que ele foi agredido, as roupas rasgada, humilhado e ofendido. No caso de Domingos Lopes, a saída do PCP só ocorreu há pouco, em 2009, vinte anos depois da queda do Muro – e o autor não explica o que o levou a manter-se tanto tempo no PCP. Talvez a luz ofuscante do sol enganador, a luz ofuscante que levou os comunistas do Couço, reunidos em sessão plenária a 4 de Dezembro de 1980, a clamarem «Assim se vê a força do PCP» mal souberam da morte trágica de Sá Carneiro. São pormenores como este, histórias fugazes (ex. da ida à Coreia do Norte), que tornam este livro muito merecedor de ser lido, por mais que gostássemos de ter um pouco mais de Cunhal, temos pena (e Jerónimo de Sousa, evaporou-se?). Balanço final: a ler, sem qualquer dúvida
 




 

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Peixoto, turista-humanista.

O turista-humanista, compenetrado no seu papel de palhaço pobre



 
         Um conjunto de artistas, apresentados na imprensa como «artistas internacionais», decidiu apelar a um boicote à edição 2019 da Eurovisão. Bem ou mal, argumentam que Israel continua «as suas graves violações dos direitos humanos palestinianos que duram há várias décadas». Tudo certo. Diz-se até que «a injustiça divide, enquanto a busca por dignidade e direitos humanos une». Espanta apenas que entre os signatários do apelo esteja o escritor e artista internacional José Luís Peixoto. Não está em causa ter escrito um livro pavoroso sobre a Coreia do Norte, só lê quem quer. Está em causa o facto de Peixoto ser um belo artista internacional que acompanha grupos excursionistas a Pyongyang e outros lugares da Coreia do Norte onde, ao que parece, as graves violações dos direitos humanos também duram há várias décadas. Onde está a «busca pela dignidade e por direitos humanos»? Na organização dessas passeatas não vão parar uns dólares a um regime opressor do seu próprio povo, ao governo tirânico de um país onde morrem milhões à fome? Peixoto não sabe disso? Finge que não sabe? Ou, perdoai-me, está a fazer de nós parvos?

 






terça-feira, 21 de agosto de 2018

Passeio ao Inferno.

 
 






















Estou a ler um livro fascinante sobre os viajantes estrangeiros no Terceiro Reich. Interessantíssimo. Percebe-se ali, de uma forma muito precisa e exacta, a ascensão de Hitler ao poder – e o modo como alguma complacência das elites anglo-saxónicas ajudou à tragédia. Nem todas eram favoráveis ao nazismo, longe disso. Mas muitas partilhavam o seu anti-semitismo; outras, apesar de críticas, não deixavam de enaltecer a «ordem» que o Führer trouxera a uma Alemanha dilacerada pelo Tratado de Versalhes e pela hiperinflação. Só poucos, muito poucos, se aperceberam do que estava em causa e em curso.
Receio que, com as devidas e grandes distâncias, estas «viagens» pela Coreia do Norte tornem o regime de Pyongyang mais palatável aos olhos do Ocidente. Não vemos mortos nem fome, apenas cidadãos bem nutridos em figuras patéticas, quando muito, mas nada de ofensivo ou cruel. Não é por acaso que a Coreia do Norte permite estas viagens, como aquela que são feitas, imagine-se, pela empresa Pinto Lopes, com José Luís Peixoto por cicerone (ver aqui). Parece a Thomas Cook na Alemanha hitleriana. Uma coisa destas devia ser motivo de escândalo: imagine-se que havia uma agência de viagens que organizava excursões à Alemanha nazi, pagando ao Reich em dólares, ou agora euros, ou noutra moeda forte. Contribuindo, no fundo, para a perpetuação de um sistema que, além de um perigo nuclear para a Humanidade inteira, deixa morrer à fome milhões de norte-coreanos. Milhões, leram bem. Pois é aí que se faz turismo, enchendo os cofres da dinastia Kim.
No caso em apreço, o fotógrafo Carl De Keyzer fez quatro viagens à Coreia do Norte entre 2015 e 2017. Passou lá 60 dias. A fotografar à vontade, livremente? Duvida-se. Duvida-se mesmo. Em resultado dessas viagens, surgiu um livro, claro. (ver aqui)
O leitor que aprecie e veja; pense e medite, conclua se isto é bem feito ou não. Por mim, tenho as maiores dúvidas, mas não certezas absolutas a favor ou contra.
 
 
 
 

 

sábado, 10 de fevereiro de 2018

Pergunta, Samora.

 
 

 
O Expresso de hoje tem um artigo sobre as estátuas norte-coreanas de Moçambique, com destaque para o monumento a Samora Machel. O tema não é novo, já o abordámos aqui . Mas o que causa espanto é ninguém se incomodar com o seguinte: frente à sede do Banco Central Europeu, na civilizadíssima Alemanha e na não menos civilizadíssima União Europeia, há estátuas made in North Korea, de que falámos ali. E agora?, pergunta Samora.
 
    

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Gente feliz com lágrimas.

 
 
 
O sul-coreano Chae Hee-yang, de 65 anos, reencontra o seu pai,
o norte-coreano Chae Hoon-sik, de 88 anos
Coreia do Norte, 20 de Outubro de 2015
 
 
 
         Graças à Cruz Vermelha, desde há alguns anos que, de vez em quando, famílias separadas da Coreia podem reunir-se durante um par de horas. Há 65.000 pessoas na Coreia do Sul em lista de espera para reencontrarem os seus familiares do Norte. São seleccionadas por sorteio. A semana passada houve mais um reencontro. O primeiro que se realiza em cinco anos. 398 sul-coreanos, pertencentes a 96 famílias, viajaram até ao Norte. Aí, aguardavam-nos 141 norte-coreanos. Gente que não se falava há 60 anos, ou mais. Chae Hee-yang, de 65 anos, viu pela primeira vez na vida o seu pai, Chae Hoon-sik, um norte-coreano de 88 anos. Um homem, um ser humano, com quase 90 anos, conhece um filho que nunca viu – ou, melhor, que só viu quando era um bebé, criança de meses. Pai e filho sabem que, muito provavelmente, nunca mais voltarão a encontrar-se. Com quase 90 anos, as hipóteses de um reencontro são ínfimas, inexistentes. Nunca mais voltarão a encontrar-se, um pai e um filho. Verdadeiramente, aquilo que vemos são imagens de uma despedida num leito de morte. Durante 12 horas, em sessões de duas horas, famílias separadas trocam fotografias para recordação, falam do que não sabemos. Depois, entram num autocarro e vão embora, entre lágrimas e suspiros. Será que tiveram palavras para trocar uns com os outros? É difícil saber. Mas uma coisa é certa: perante estas imagens, quem fica sem palavras somos nós.
 
 

 
 
 

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O País Malomil.

 
 
 

 
 
Aqui no Ocidente há a ideia maldosa que a Coreia do Norte é um país muito fechado e até trombudo. Pura propaganda. Culpa de gente como José Luís Peixoto, essa inteligência radiosa, que fez uma visita a Pyongyang e escreveu logo um livro (e agora, para a Agência Pinto Lopes Viagens, dirige passeios turísticos a um regime que qualificou como «fascista», tirânico e totalitário).

         Tudo falsidades. A Coreia do Norte possui do melhor rock que se faz no mundo. A banda roqueira mais popular da Coreia são as Moranbong Band. Gozam de uma popularidade imensa, sem rivais. De facto, as moças Moranbong não têm rivais: são a única banda de rock da Coreia do Norte. Dezoito rapariguitas escolhidas a dedo, uma a uma, por Kim Jong-un.

         O grupo estreou-se em Junho de 2012 e podem ver em palco, no telão ao fundo, grandes imagens patrióticas do Líder e seus foguetões. Em matéria de dança, nada como ir directamente ao minuto 5:43 deste vídeo. Um mimo.

 

 
 
         Se quiserem mais, está tudo aqui. Têm ainda aqui uma colecção de fotografias soberbas da Coreia do Norte e aqui uma história incrível, a de Charles Jenkins, um sargento do exército americano que uma noite, com os copos, acabou do outro lado da fronteira norte-coreana. Foi incorporado à força como… actor de cinema. Era necessário alguém que fizesse o papel de vilão ocidental nos filmes de propaganda, recrutaram Jenkins para trabalhos forçados. O galã vive hoje no Japão,  onde trabalha numa loja de souvenirs em Sado, como vendedor. Uma grande história.

 
Charles Jenkins, coitado
 
 
          A terminar, só mais uma intervenção das Moranbong Band, bastante belicista e uniformizada:
 
 
 




 

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Daqui ninguém sai vivo.

 
 
 
Kim Song Sil, Cesta de Flores Kim Jong Il.
Bordado, 64 x 80 cm, 2003.
Oficinas Mansudae
 
 
 
 
 
 
Esta história entala muita gente.
Em Frankfurt, no nº 29 da Kaiserstrabe, situa-se o imponente edifício-sede do Banco Central Europeu. Quem quiser ir de metro, deve apear-se na estação Willy-Brandt Platz. É aí o coração do poder financeiro do Velho Continente, de uma Europa que se compraz na afirmação de «valores» e «princípios»: a liberdade, a democracia, o respeito pelos direitos humanos.
 
 
O edifício-sede do Banco Central Europeu, Frankfurt
 
 
A poucos metros da Kaiserstrabe, mesmo ao virar da esquina, existe uma zona arborizada, um pequeno jardim entre as torres frias de vidro e aço. Depois, numa praceta despida, uma fonte com uma estátua. Märchenbrunnen ou, se quisermos, «Fonte dos Contos de Fadas». Em Berlim existe outra «Fonte dos Contos de Fadas», da autoria de Ludwig Hoffmann (1852-1932), um dos mais famosos arquitectos da cidade (entre centenas de outras obras, desenhou, em co-autoria com Alfred Messel, o edifício destinado a albergar o esmagador Museu Pérgamo). Nas suas Memórias, Hoffmann conta a atribulada história da construção da Fonte dos Contos de Fadas, concebida para adornar o primeiro jardim público de Berlim, o Volkspark Friedrichshain. Muitas das obras de Hoffmann não chegaram a ser construídas devido ao eclodir da Guerra de 1914-18, outras foram devastadas durante a guerra de 1939-45. Os dois lados da Europa: um, majestoso e apolíneo, marcando o traço historicista de Ludwig Hoffmann; outro, furioso e dionisíaco, arrasando as obras criadas no seu ateliê.
         A Fonte dos Contos de Fadas de Frankfurt foi desenhada por um autor menos famoso, Friedrich Christoph Hausman (1860-1936). A estátua art-nouveau é encimada pela figura de uma jovem graciosa e frágil, que, segundo dizem alguns guias turísticos, representa a bela filha de um padeiro de Frankfurt. O modelo terá sido uma rapariga de 19 anos, lavadeira de profissão, de seu nome Margaret Endres, que mais tarde casou com o músico Edward Gelbart. A estátua foi construída graças ao generoso e vultuoso financiamento de um fundo instituído pelo mecenas Leo Gans (1843-1935), e destinado a apoiar as artes e a cultura. Nesse gesto ecoa a presença da Europa civilizada e culta. O mundo de ontem. A Fonte das Fadas foi inaugurada em Agosto de 1910, mas teve vida curta. As figuras de bronze que se encontravam na sua base foram derretidas durante a 2ª Guerra, para apoiar o esforço belicista germânico. Salvou-se a ninfa, esculpida em mármore branco do Tirol, mas, ao que sei, também ela se perdeu nos escombros do pós-guerra.    
 
 
Frankfurt, Märchenbrunnen, imagens dos anos 1910-20
 
 
 
         Em Maio de 2006, a estátua foi reinaugurada, na sua versão au complet, com uma nova figura feminina no topo e a base contendo representações de lagartos, crocodilos e crianças, entre outras feras. Agora, daqui para a frente só há dragões. Em Novembro de 2005, dois alemães viajaram até Pyongyang. A sua missão não era tratar dos direitos humanos ou do programa nuclear da Coreia do Norte. Voaram até à Coreia para contactar os responsáveis da Oficina Artística Mansudae (tradução algo bárbara de Mansudae Arts Studio). A Fonte das Fadas fora totalmente destruída e os seus planos originais não constavam dos arquivos municipais de Frankfurt. Havia que reconstruir o monumento apenas com base em fotografias dos anos 20. A cidade de Frankfurt queria a sua estátua reedificada – e exibida com esplendor «antigo» nas imediações do Banco Central Europeu. A Europa tinha liberalizado os movimentos de capitais em 1990, introduzido o euro em 1999. Nesse mesmo ano de 1999, entrara em vigor o Pacto de Estabilidade e Crescimento. Decidiu-se que o Banco Central Europeu teria a sua sede em Frankfurt. E assim se fez. Já agora: está a ser finalizado, ou já foi mesmo inaugurado, o novo edifício-sede do Banco Central Europeu, da traça do arquitecto austríaco Wolf Dieter Prix (visita virtual aqui). Duas torres, com 165 e 185 metros de altura, respectivamente, equivalendo a 48 pisos cada uma. As torres da nova sede do BCE estão ligadas por um jardim suspenso e serão decoradas por esculturas de artistas dos vários Estados-membros da União (os resultados do concurso internacional irão ser anunciados já neste Outono). Custo da obra: mil milhões de euros, mais coisa menos coisa. Num momento em que a Europa atravessa uma crise como a que vivemos, é estranho construir algo que custa mil milhões de euros. Mas, como bem sabeis, são insondáveis os desígnios desta União.
 
Wolf Dieter Prix, Nova sede do Banco Central Europeu, Frankfurt
 
 
 
 
         Insondáveis foram também os motivos que levaram os alemães a recorrer à Coreia do Norte para reconstruir uma estátua. E logo ali, no coração da cidade, a poucos metros da sede Banco Central Europeu, perto da estação de metro com o nome de Willy Brandt. A Östpolitik de Brandt, concorde-se ou não com ela, visava uma abertura ao Leste, buscando a paz e a segurança europeias, em nome da democracia e dos direitos humanos. A Östpolitik das autoridades de Frankfurt, ao contratarem os escultores norte-coreanos, não visa nada de nada. Apenas visou obter uma estátua ao melhor preço e por quem se especializou em intervenções artísticas monumentais, ao serviço de uma das mais cruéis ditaduras do planeta. Por esses anos, em 2005-2006, a Coreia do Norte esteve presente na Feira do Livro de Frankfurt. Falava-se então na necessidade de chamar a Coreia do Norte, que tem um feitio terrível, ao convívio ameno dos povos democráticos. Daí o álibi para lhes encomendar a estátua. Passaram quase dez anos, não se viu nada. Mudanças, só para pior. E a estátua permanece lá, no centro de Frankfurt, feita pelos artistas da Mansudae.
 
 
Märchenbrunnen, na versão actual, nas imediações do BCE
 
 
Oficinas Mansudae, o modelo de crocodilo para a estátua de Frankfurt...
 
 
 
 
         Sendo, muito provavelmente, a maior fábrica de objectos artísticos do mundo, com um belo site em inglês e tudo (http://www.myinweb.com/mansudae/), a Mansudae emprega cerca de 4.000 pessoas. É a única instituição autorizada a fazer retratos da dinastia Kim, que depois são reproduzidos ad nauseam. Tem trabalhado e feito monos horríveis para glória dos regimes mais corruptos e autocráticos desta Terra, actuando especialmente em África, como já veremos. O director do Museu de Artes Aplicadas de Frankfurt, Klaus Klemp, descobriu a Mansudae em 2004. Ficou maravilhado. Justifica a decisão de contratar a empresa norte-coreana com o argumento inacreditável de que na Europa já ninguém consegue produzir arte realista. Afirma que a atracção pela arte conceptual e abstracta tirou aos escultores europeus – e de todos os países do mundo, que não os norte-coreanos… – a capacidade de reconstruir a estatuária fin-de-siècle. «Os artistas mais proeminentes da Alemanha pura e simplesmente já não fazem trabalhos realistas. Pelo contrário, os norte-coreanos têm apurado a sua experiência neste estilo, exactamente aquele que queríamos para refazer uma escultura de 1900», teve o desplante de afirmar o director do Museu de Artes Aplicadas de Frankfurt (aqui). No fundo, como se a opção fosse apenas escolher entre a Alemanha e a Coreia do Norte. Ou como se a «experiência» adquirida pelos norte-coreanos na arte realista não o tenha sido à conta de fazerem centenas de estátuas representando Kim Il Sung, Kim Jong Il, Kim Jong Un. «Tratou-se de uma decisão puramente técnica», disse Klaus Klemp. Não, não foi. Contratar uma fábrica como a Mansudae é uma decisão política. Porquê? Porque a Mansudae é uma fábrica política. Falta falar do essencial, o preço. A Mansudae fez o trabalhinho todo por 200 mil euros, incluindo shipping and handling de Pyongyang até Francoforte-sobre-o-Meno. Dizer que o preço se deve aos salários miseráveis da Coreia do Norte é algo que certamente não interessará recordar aos alemães que contrataram a Mansudae. Como se refere aqui, na Coreia do Norte o salário médio é de 50 cêntimos por mês. O salário mensal dá para comprar dois quilos de arroz, nada mais. Nas imediações do Banco Central Europeu, o baluarte da moeda única e das suas promessas de prosperidade, encontramos uma estátua feita por pessoas que nem uma moeda de euro ganham num mês inteiro de trabalho. Provavelmente, os cerca de 1.000 artistas profissionais que trabalham na Mansudae ganham mais do que isso. Mas essa desigualdade não favorece a atitude dos alemães; pelo contrário, torna-a ainda mais abjecta e vil.   
         Há uma coisa, porém, em que temos de concordar com os alemães de Frankfurt: os Estúdios Mansudae são únicos no mundo. A este propósito, recomendo muito a leitura de um livro, Art Under Control in North Korea, da autoria de Jane Portal. Obra profusamente ilustrada, de leitura fácil e, para mais, não excessivamente volumosa (não chega às 200 páginas, entre texto e abundantes imagens). A Mansudae é frequentemente mencionada, quase em todas as páginas. Pela leitura do livro, percebemos a dimensão do seu poder. A estátua monumental de Kim Il Sung, que se ergue nos arredores de Pyongyang, com vinte metros de altura – e perante a qual os norte-coreanos são «aconselhados» a fazer uma vénia e dobrar a espinha –, foi feita pela Mansudae. E, já que falamos nela, foi feita com pouco profissionalismo: datada de 1982, era de bronze, posteriormente substituído quando começou a acusar as marcas da corrosão do tempo, algo inconcebível para a representação de um Padre Eterno. Também de 1982, e pelas mãos da Mansudae, a Torre Juche, na capital norte-coreana. Com 170 metros, é a maior torre de pedra do mundo. No cimo, uma chama ou tocha que acende pela luz eléctrica, simbolizando o poder incandescente do pensamento juche, também ele bastante electrizante. Mais antiga, mas também em grande, a Estátua de Cholima. 46 metros de altura, bronze, datada de 1961.
 
Monumento a Kim Il Sung, Pyongyang.
Oficinas Mansudae 
 
Torre Juche, Pyongyang.
Oficinas Mansudae
 
O Líder, em visita à Mansudae



 
         Existem outras oficinas artísticas na Coreia do Norte, todas sob apertado controlo estatal, mas a maior de todas – de longe – é a Mansudae, de seu nome completo Mansudae Changjaska. Fundada em 1959, esteve sempre sob controlo directo dos sucessivos membros do clã Kim, que acompanham pessoalmente, repete-se, o que por ali se faz. Os campos de acção são vários e divididos em dez departamentos: pintura a tinta, pintura a óleo, escultura, impressão e cartazes, pintura mural, cerâmica, manufactura, desenho e design. Além disso, uma especialidade local: pintura com pó de pedra. Cerca de 100 membros da Mansudae receberam o título de «Artista de Mérito». Na Coreia, essa distinção foi atribuída a 200 artistas, o que significa, portanto, que a Mansudae arrecada 50% dos títulos. Existem cerca de 50 a 60 «Artistas do Povo», dos quais 30 integram os quadros de pessoal da Mansudae. Por ano, a Mansudae produz aproximadamente 4.000 obras, das quais cerca de metade resultam de encomendas oficiais. Algumas são vendidas para o exterior, através do Mansudae Overseas Project, com clientela no Japão, na Coreia do Sul e na China. A Alemanha juntou-se ao clube em 2005, mas também há africanos – muitos. Já vamos falar deles. Antes disso, só um breve apontamento sobre Chung Young-man. Considerado um dos maiores calígrafos e pintores a tinta da Coreia do Norte, foi secretário-geral do comité central da Federação dos Artistas Coreanos. Recebeu o título de «Artista de Mérito» em 1974 e o Prémio Kim Il Sung em 1989, sendo elevado à categoria de Herói em 1991 e, como se não bastasse, de Duplo Herói, em 1997. Faleceu em 1999. E era vice-presidente da Mansudae, claro está. Agora vamos a África.   
         Em Dacar, no Senegal, ergue-se o piramidal Monumento da Renascença Africana. Comecemos por este fantástico vídeo:
 
 
 

 
 
 
Inaugurado em 2010 e com 49 metros de altura, é mais alto do que a Estátua da Liberdade ou que o Cristo Redentor. Aliás, é a mais alta estátua do mundo fora da Ásia e da ex-URSS. A sua monumentalidade decorre não apenas da dimensão do objecto; para ela contribui ainda o facto de estar pousada numa colina de 100 metros de altura, no subúrbio de Ouakam. Representa em bronze uma família africana ao melhor estilo do realismo socialista. A criança ergue a mão na direcção do Atlântico. O desenho é do escultor romeno Virgil Magherusan, que começou a carreira a trabalhar para os artistas que estavam ao serviço de Ceaucescu e mais tarde se celebrizou pelas suas esculturas de cavalos e soldados, bem como por incursões ousadas em temáticas eróticas. O projecto de obra coube ao arquitecto senegalês Pierre Goudiaby Atepa, autor da horrenda Porte du Troisième millénaire, em Dacar, que por pudor nos abstemos de exibir ao público. Pierre Atepa dirigiu a Ordem dos Arquitectos do Senegal, foi designado conselheiro especial do Presidente Abdoulaye Wade em matéria de arquitectura. Convém referir que em matéria de arquitectura Pierre Atepa é um artista a valer: proclamou arquitecto da sede da Banque centrale des États de l’Afrique de l’Ouest, mas na barra dos tribunais o seu colega Cheik Ngom conseguiu provar ter sido o verdadeiro autor do projecto. Nada disso impediu Pierre Atepa de abrir ateliers na Gâmbia, na Guiné Bissau, no Mali, no Togo, na Mauritânia, no Chade, no Burkina Faso, como não o impediu de ser eleito presidente da União dos Arquitectos de África. Aliás, é membro da Academia Internacional de Arquitectura. Em 2006, abriu um centro com o seu nome («Espace Atepa»), nos Campos Elísios, Paris. E, em 2010, uma sucursal em Pequim. Na sua terra natal, nos tempos do Presidente Abdoulaye Wade, os colegas chamavam-lhe «artista oficial do Rei Sol». Invejosos.
 
O arquitecto: Pierre Atepa.
 
 
Como se disse, a monumental estátua de Dacar foi construída pela Mansudae. Trabalharam nela cerca de 150 artistas norte-coreanos, sendo uma obra pessoal do antigo Presidente senegalês, Abdoulaye Wade, cuja biografia é riquíssima de pormenores sórdidos e escabrosos, envolvendo até acusações de homicídio do vice-presidente do Conselho Constitucional. Na versão francesa da Wikipedia, afirma-se que, após concluir estudos superiores, entre 1952 e 1953 obteve «diversos certificados em várias faculdades da Universidade de Besançon» (aqui). 
 
O Presidente: Abdoulaye Wade.
 
Oficialmente, diz-se que o Monumento da Renascença Africana custou cerca de 25 a 27 milhões de dólares. Fontes credíveis apontam, todavia, para um custo total de 70 milhões. Os trabalhos começaram em 2002, a construção em 2008, prevendo-se terminar em 2009. Atrasou-se. Só esteve pronta em 2010, sendo inaugurada a 4 de Abril desse ano, em comemoração do 50º aniversário da independência do Senegal, numa cerimónia que contou com a presença de 19 chefes de Estado africanos. Além deles, altos funcionários da Coreia do Norte e uma delegação afro-americana chefiada pelo reverendo Jesse Jackson. Enquanto isso, nas ruas de Dacar eclodiam manifestações exibindo «estátuas», em protesto contra a realização de uma obra desta envergadura num país pobre, flagelado pelo desemprego e pela miséria. Nos tempos de Wade, que abandonou a Presidência em 2012, a percentagem de senegaleses em situação de pobreza atingiu os 54%, com uma inflação galopante. A ajuda internacional representava 10% do PIB senegalês. Terá servido essa ajuda internacional para financiar as dezenas de milhões de dólares que custou o Monumento da Renascença Africana? Perguntas sem resposta. Mas não se pode pôr em causa que tudo isto é muitíssimo ilustrativo da corrupção e nepotismo que grassam em vários Estados africanos. E da rapina neocolonial a que são sujeitos por potências estrangeiras, muitas vindas da Ásia. Tudo ocorre com a cumplicidade das elites locais, que encontraram uma nova forma de colonialismo: colonializaram os seus próprios países, capturando-os, e aos seus recursos, em benefício pessoal e das cliques que alimentam. Veja-se o caso do monumento que, por ironia, se chama da «renascença africana». Edificado por um Presidente que quis chamar a si uma parcela dos lucros de exploração, projectado por um arquitecto que era seu apaniguado. Contratado aos norte-coreanos, custando milhões num país em que a população vive miseravelmente. Diz-se que a Coreia do Norte, em vez de dinheiro, recebeu terras em troca, hectares a perder de vista.
 

 


 
A figura feminina, vista a partir da cabeça da figura masculina. O inconfundível estilo Mansudae.
 
Dacar, Senegal, Monumento da Renascença Africana
 
 
Reivindicando ter sido uma ideia sua, o Presidente Wade reclamou para si uma percentagem de 35% do valor total da obra (outras fontes referem que reclamou, isso sim, uma percentagem do preço dos bilhetes de entrada). A obra provocou controvérsia desde o início. Apresentada como uma evocação da ideia de renascença africana, conceito com um longo historial, despertou o repúdio dos sindicatos senegaleses, que se queixaram de uma empreitada destas proporções estar a ser feita por estrangeiros numa época em que a taxa de desemprego no país era de 50%. Abdoulaye Wade defendeu-se: «Só os norte-coreanos seriam capazes de fazer a minha estátua. Eu não tinha dinheiro» (itálico acrescentado). Usou, no fundo, os mesmíssimos argumentos utilizados pelo director do Museu de Artes Aplicadas de Frankfurt para justificar um facto inédito: a Alemanha é o único país democrático do mundo a ter contratado os serviços da Mansudae. Para reconstruir uma estátua perto da sede do Banco Central Europeu. Sempre a lógica do think big: nova sede do BCE com custo de mil milhões de euros, estátuas com mais de cem metros de altura, uma fábrica norte-coreana cujas instalações ocupam uma área equivalente a 22 estádios de futebol. Já agora, outros números grandes: segundo as Nações Unidas, 30% das crianças norte-coreanas sofrem de malnutrição; no ano em que se celebrou o 100º aniversário do nascimento de Kim Il Sung, 44,8% de todo o Orçamento do Estado foi destinado a erigir monumentos à sua memória. Também há think small: o salário médio de um norte-coreano são 50 cêntimos/mês, como vimos. 
         A clientela da Mansudae inclui países como a Argélia, Angola, o Benim, o Camboja, o Chade, a República Democrática do Congo, o Egipto, a Guiné Equatorial, a Etiópia, a Malásia, Moçambique, Madagáscar, Namíbia, Senegal, Síria, Togo e Zimbabwe. Por ano, a Mansudae International movimenta algo como 160 milhões de dólares, de acordo com uma estimativa de 2011 (aqui). O trabalho feito resume-se numa palavra: horrível. A fábrica ostenta nas suas paredes os dizeres: «Quando o Partido dá ordens, nós executamos!». É verdade. Os artistas da Mansudae, petrificados há décadas no realismo socialista em versão baratucha e made in China, são incapazes de fugir das normas e das convenções. Quando os alemães que contrataram a Mansudae viram os primeiros esboços ficaram horrorizados com o aspecto anguloso e sem vida da estatuária, tendo de explicar que o realismo socialista não estava muito em voga em Frankfurt e que era necessário suavizar um pouco a rigidez das linhas. «Foram muito compreensivos» − diz, justificando-se, Philipp Sturm, o homem que em 2005 acompanhou Klaus Klemp na fatídica viagem a Pyongyang.
         Também o Presidente senegalês ficou horrorizado quando viu as primeiras versões da «sua» estátua monumental, com uma família africana de aparência oriental (que ainda mantém, aliás). No país, os muçulmanos reprovaram a nudez dos corpos musculados. Nas mesquitas, os imãs emitiram uma fatwa implorando a Alá que o país não fosse castigado por ter construído uma estátua tão obscena, contrária aos mandamentos do Profeta. Por sua vez, o Presidente Wade (que aos 83 anos anunciara candidatar-se a um novo mandato…) teve de pedir desculpas à minoria cristã, por, numa entrevista, ter comparado a estátua a Jesus Cristo. O arcebispo de Dacar disse sentir-se «humilhado» pelas palavras presidenciais. Os movimentos feministas senegaleses protestaram pela aparência submissa da mulher. Mas, como disse à Reuters um senador senegalês, a arte, a grande arte, é sempre polémica: «Todos os grandes trabalhos arquitectónicos suscitaram controvérsia – vejam a Torre Eiffel, em Paris». Por seu turno, o Ministro da Cultura senegalês, Mamadou  Bousso Léye, iria mais longe. Asseverou que o Monumento estava tão bem edificado (no cimo de uma colina vulcânica…) que se esperava vir a ter uma duração de 1200 anos. Nem mais, nem menos.
 
         Construída para honrar a Renascença Africana, a soviética Sagrada Família de Dacar é bem uma síntese da África do nosso tempo, em que a pobreza de milhões convive com os milhões de muito poucos. Dos muito poucos que, para sua glória, encomendam trabalhos e projectos à Mansudae:   
 
 

 
        
 
A presença da Mansudae tem sido alvo de polémica em vários países africanos. No Botswana, os artistas locais protestaram quando em 2004 foi celebrado um contrato de um milhão de dólares com os norte-coreanos. Mas a obra já está feita, o Monumento dos Três Chefes (ou Monumento dos Três Dikgosi), homenageando, como o próprio nome indica, três históricos chefes tribais.
 
 
Botswana, Monumento dos Três Chefes
 
 
Em Angola, na capital, o Memorial Agostinho Neto, um grotesco míssil de betão armado, parece que teve a mão da Mansudae, segundo se diz aqui. Mas julgo que se está a falar do Centro Cultural Dr. Agostinho Neto em Catete, no Bengo, onde a marca da Mansiudae é inconfundível. Também o Monumento à Paz, na Praça Lenine, em Luena, parece ter dedo norte-coreano. Foi inaugurado por José Eduardo dos Santos em Abril de 2012 (aqui). De igual modo, o Monumento aos Heróis do 4 de Fevereiro, em Luanda, revela sinais do estilo do realismo socialista, mas não encontro registo de que tenha sido feito pela Mansudae.
 
Angola, Luanda, Memorial Agostinho Neto
 
Angola, Bengo, Centro Cultural Dr. António Agostinho Neto
 
Angola, Bengo, Centro Cultural Dr. António Agostinho Neto
 
 
Angola, Luena, Monumento à Paz
 
Angola, Luena,  Monumento à Paz
 
 
Por terras de África, poderíamos ainda falar da estátua a Kabila ou do palácio presidencial na Namíbia. Mencionemos por ora a estátua a Samora Machel, em Maputo, inaugurada em 2011, no 25º aniversário da sua morte.
 
 
 

Moçambique, Maputo, Monumento a Samora Machel
 
 
O Zimbabwe contratou a Mansudae para fazer duas estátuas de Joshua Nkomo. A família deste, quando viu a obra, nem queria acreditar (a estátua teve de ser refeita, o que, como vimos, acontece muito com os trabalhos da Mansudae). Erguer monumentos a Nkomo foi considerado uma afronta para quem se recorda que, nos anos 80, milhares de cidadãos do Zimbabwe foram massacrados e houve violações em massa de mulheres por parte das tropas governamentais treinadas… na Coreia do Norte.
         A Mansudae continua a operar no mundo, em parte graças à intermediação de Pier Luigi Cecioni, um antigo chefe de orquestra que agora se move à larga nos meandros da indústria artística internacional. Naveguei um pouco na página da Mansudae, não sendo difícil descobrir maravilhas. Neste ano de 2014, foi publicado um catálogo, penso que de uma exposição, com o título propagandístico North Korea: a Unique History. Publicado em inglês, coreano e italiano, recolhe o trabalho de 210 artistas da Coreia do Norte. O curador da mostra foi, naturalmente, Pier Luigi Cecioni. E quem foi o director do projecto? Luciano Benetton. Exactamente, o criador da companhia que fabrica as camisolas que, possivelmente, alguns dos que lerem este texto estarão a vestir neste momento. Os textos do livro são da autoria de Pier Luigi Cecioni, de Eugenio Cecioni (coincidência de apelidos?) e de Luciano Benetton. Ah, também de Yang Byong Su, da Mansudae. Luciano Benetton. Como disse no início, esta história entala muita gente.  
 

Luciano Benetton
 
A Mansudae não actua apenas na órbita do realismo socialista. É também líder na contrafacção e no pastiche. Paisagens holandesas, vistas de Montmartre, pinturas venezianas, tudo se produz em Pyongyang. É o próprio Klemp que o diz: «se comprar um quadro nas margens do Sena, é muito possível que tenha sido pintado na Coreia do Norte». Palavras do director do Museu de Artes Aplicadas de Frankfurt, do homem que contratou os serviços da Mansudae.
 
Uma amostra da produção clássica Mansudae
 
 
         Para evitar excessos de orientalismo, os alemães apresentaram aos artistas da Mansudae modelos e fotografias de crianças com aparência caucasiana, talvez mesmo ariana. «Para que o produto não fosse demasiado coreano», diz Klemp. Terminada a obra, foi transportada para a China, da China para Hamburgo e daí levada para Frankfurt. «Ficámos muito satisfeitos com o trabalho», diz Klemp. «Tudo foi feito dentro dos prazos e todas as pessoas com quem trabalhámos eram excepcionalmente profissionais. Para mim, o mais interessante foi a normalidade com que tudo foi feito». A normalidade com que tudo foi feito. Isso é, de facto, o mais interessante de toda esta história. Uma história que entala muita gente.  Daqui ninguém sai vivo.  
 
António Araújo    




Protestos em Dacar contra a construção
do Monumento à Renascença Africana

Märchenbrunnen, Frankfurt,
anos 1910-20