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sexta-feira, 8 de novembro de 2024

‘Grand Tour’, ou a sua impossibilidade intrínseca.


 

 

Há um momento completamente inesperado no início da segunda parte do filme ‘Grand Tour’, de Miguel Gomes, em que se faz luz sobre a sua cuidadosa e aparente falta de sentido: é quando uma das duas personagens principais, Molly, desatando a rir - de lábios franzidos, qual criança traquinas - emite um som cómico totalmente inesperado e irreverente, de puro gozo. Trata-se de um som difícil de reproduzir graficamente (brrr, brrr, brrr?) que julgo todos já ouvimos – e que alguns de nós já emitimos, quando quisemos dizer “Deixa-me rir!”

Este ‘ruído’ feito por Molly é um ruído que podemos considerar brechtiano – e não só – sobretudo porque que nos acorda de vez da lengalenga narrativa temporalmente situada em 1918, de lógica ainda tão fim de siècle - embora já disruptivamente mesclada com imagens contemporâneas de várias regiões asiáticas como pano de fundo. Essa narrativa apresenta-nos um estereótipo plausível, à época: uma rapariga noiva há sete anos (Molly), cansada de esperar pelo casamento, decide ‘perseguir’ o noivo (Edward), mas – e aqui reconhecemos mais uma insidiosa estranheza subtilmente inoculada – completamente sozinha por longínquas terras da Ásia, desenvolta, desembaraçada, como um torpedo perfeitamente direcionado (em gritante contraste com a contínua desorientação e indecisão do noivo, que se limita a uma contínua fuga reativa). Este paradoxo mudo e simultaneamente gritante instala cuidadosamente a primeira dúvida mais óbvia sobre a construção da personagem da menina casadoira e tradicional que vê no casamento o seu único objetivo e saída. A segunda dúvida – que, como dito, se nos apresenta como um sinal (talvez o mais importante, entre muitos) – surge quando esta jovem da alta burguesia inglesa, com a respetiva educação e etiqueta, decide sem mais, num espaço público, emitir o som em causa, à época seguramente ‘inestético’ e de ‘mau tom’.  (O ruído de gozo dos lábios franzidos de Molly repetir-se-á, de resto, várias vezes ao longo do filme, ficando-nos na memória como um alerta e uma ‘marca’ - cómicos e altamente disruptivos - que conhecemos de outros filmes inesquecíveis, como p. ex. as gargalhadas estridentemente cómicas do Mozart de Milos Forman.)

Mas voltemos ao momento em que o estranho ‘ruído’ é emitido por Molly pela primeira vez. Longe de despontar sozinho e do nada, ganha especial significado no contexto e exato minuto em que surge. Temporalmente, esse momento localiza-se imediatamente depois de Molly: a) ter viajado milhares de quilómetros até Rangum, na Birmânia, para finalmente se casar com o noivo Edward, e de constatar que este fugiu; b) ter verbalizado a vontade de o seguir para Singapura sem que este o tenha solicitado; c) ouvir ‘a’ pergunta porventura mais óbvia e lógica de todas, que o primo lhe coloca: não será que o noivo perdeu a intenção de casar com ela?

É, pois, em resposta a esta pergunta, que Molly emite súbita e inesperadamente o cómico ruído em questão, rindo a bandeiras despregadas e acrescentando, em exclamação, a palavra (que completa a) chave: “Absurdo!!!” E é esse o momento que, subitamente, nos confirma a lógica de ‘inversão’ já semi adivinhada do filme, até porque, como já ficou dito, ao longo de ‘Grand Tour’ Molly repete o dito ‘som’ e a respetiva exclamação da palavra “Absurdo” várias vezes. Através deste ‘mecanismo’ de Molly, os raciocínios da lógica mais comum, prosaica e tida como ‘normal’, passam a ‘absurdos’, e os que habitualmente se consideram ‘absurdos’ passam a apresentar-se não só como perfeitamente plausíveis, como também – e consequentemente - destruidores da suposta ‘normalidade’ vigente e de todos os seus inquestionados estereótipos.

E este absurdo que nos pretende desinstalar do conforto dos nossos estereótipos abarca, insidiosamente, todo o filme, por várias vias, e sobretudo pela via inesperada e subterrânea da língua falada, ‘normalmente’ tida como um simples ‘canal’. Vejamos: no universo totalmente britânico e/ou de colonialismo britânico que ‘Grand Tour’ nos apresenta, as personagens - todas britânicas ou de (ex) colónias britânicas - insistem, pasme-se, em falar umas com as outras – apenas, sempre e contra toda a lógica - em português. Este facto não é naturalmente de somenos importância (quem consegue aqui não lembrar o aforismo de Mac Luhan “the message is the medium”?) e leva-nos a várias (muitas!) perguntas encadeadas, porque é isso que ‘Grand Tour’ faz, leva-nos a colocar muitas perguntas:

- Porque consideramos tão absurdo o português falado por britânicos entre si no seu dia a dia, se assistimos todos os dias a filmes de todas as culturas e regiões do globo falados em inglês sem um pestanejar?

- Porque é que num filme português, em que toda a ação se passa em cenário colonial (territórios asiáticos quase todos seguramente pisados por portugueses antes dos ingleses) não há uma única referência explícita a Portugal nem aos portugueses - com exceção da referida língua/canal, ironicamente sempre presente, do género ‘gato escondido com o rabo de fora’?

- Porque fica assim o ónus do colonialismo tão convenientemente evacuado do universo português?

- Porque continuamos assim a ‘tirar a água da capota’ tomando os outros por tolos – e sobretudo a nós próprios?

Não abusando da paciência do leitor, passemos das perguntas (longe de esgotadas) ao tópico seguinte de ‘Grand Tour’, na senda da sua inversão do conceito de absurdo:

O escamoteamento considerado ‘normal’, na época, da diferença abissal entre classes sociais e respetivas condições laborais - infelizmente ainda hoje presente em tantos cenários, óbvios ou insuspeitos, pois convém lembrar que os estereótipos são como as nódoas: atingem todos os panos… Julgo que aqui será suficiente referir um único instante do filme pois, pelo seu peso, dispensa quaisquer outros. Trata-se do momento em que Molly, contra todos os elementos, correntes, conselhos e razoabilidades possíveis, faz finca-pé e opta por um meio de transporte fluvial inviável e sinistro: a subida do rio (impraticável naquela época do ano) em barco puxado por cordas, a partir de terra, por seres humanos, num esforço desmesurado e desumano. A imagem destes homens e mulheres em esforço total, nus, sob a chuva torrencial e a inclemência dos elementos, dura talvez uns segundos. O seu impacto, esse, fica-nos gravado a fogo na retina, talvez para sempre. Por isso, quando no instante seguinte um padre (!), não por acaso com um jumento (!), aceita – com elegante retórica - o convite de Molly para se fazer transportar no mesmo barco, o absurdo e o terror confundem-se. Mais uma vez, em ‘Grand Tour’, uma questão absolutamente determinante (desta vez a insensibilidade total perante o sofrimento humano na base da pirâmide social) - é passada num ápice (percebemos a alergia a sentimentalismos), para quem puder ou quiser ver: gritante e insuportável para uns, invisível ou completamente irrelevante para outros.

Para fechar o ciclo, voltemos ao início - ao título do filme – tomando por base a primeira definição que a net nos disponibiliza:Grand Tour servia como um rito de passagem educacional. Associado inicialmente com a Grã-Bretanha, especialmente com a gentry e a nobreza britânica, posteriormente viagens semelhantes também seriam feitas por jovens endinheirados de nações do Norte da Europa e do restante do Continente.” Trata-se assim, relembremos, de uma das últimas versões da mítica ‘Viagem’ primordial, aquela que deverá conduzir ao ‘autoconhecimento’. No caso de Edward e de Molly, porém, este ‘Grand Tour’ é feito aparentemente de modo involuntário, impelido por razões externas, de modo apenas físico, geográfico e não assumido. Também por isso, o ‘autoconhecimento’ que cada um à sua maneira persegue, de modo encapotado e provavelmente inconsciente, escapa-lhes sempre, etapa após etapa, num percurso de milhares de quilómetros. Como todos (?), estes noivos desgarrados procuram – porventura sem o saber - o significado inerente à vida, não sendo já capazes de encontrá-lo num mar (literal e metafórico) de incertezas, um universo que se mostra cada vez mais sem propósito entendível, na lógica tradicional, e porventura noutras lógicas também. Daí que a inversão da lógica da ‘normalidade’, no filme, seja tão importante, assim como a tentativa de encontrar outras lógicas. Porque ‘Grand Tour’ está muito empenhado em mostrar que não há certezas, incluindo a certeza de existirem só incertezas. Daí o absurdo, usado não só para desmascarar a lógica ‘natural’ instalada, mas também – e quem sabe sobretudo – para apontar que nem tudo estará, eventualmente, perdido.

Não chegando a pontos tão extremados como realizadores que conhecemos do cinema absurdo – começando p. ex. com Buñuel e terminando com Yorgos Lanthimos - e talvez mais próximo do teatro do absurdo que o antecedeu – Beckett, Ionesco, até certo ponto Pinter e por aí fora – Miguel Gomes não apresenta aqui uma lógica (totalmente) niilista. Fazendo uso de elementos e lógicas oníricas (p. ex. selvas ameaçadoras em claro escuro, como já em ‘Tabu’), não abdica totalmente, como veremos, de um lado potencialmente utópico (Edward?) e alegre (Molly), nem de uma réstia de esperança no sentido da vida e do mundo, contra tudo e contra todos, incluindo a morte.

De facto, no final do filme Edward não encontra saída e Molly adoece e morre, mas depois desse ‘unhappy end’, num volte face inesperado, antes do genérico – num momento em que o espetador, supostamente, já não tem possibilidade de ver o que se passa em cena, - a atriz (ou a personagem Molly?), abre hesitantemente os olhos e ergue-se, qual Lázaro ressuscitado e, embora titubeante, continua a sua marcha numa direção desconhecida.

‘Grand Tour’ mostra-nos, assim, a sua impossibilidade intrínseca, num mundo contemporâneo ‘fluido’, sem inocência possível (como p. ex. ‘La La Land’ nos mostrou a impossibilidade de um musical clássico de Hollywood), mas faz questão de não fechar definitivamente a porta e, na estreita frincha da sua abertura, quem quiser - ou puder - vislumbrará um espaço por explorar, aberto.

                                                                                    Leonor Sá

 

 

 

 

 

 

 


quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Scorsese em estado de graça e para quem qualquer rosto humano tem um direito sobre nós.




Tudo terá começado em 3 de março de 2016, em Nova Iorque, um jesuíta e teólogo, Padre Antonio Spadaro, encontrou-se com Martin Scorsese em sua casa para discutir Silêncio, filme que o realizador italo-americano dedicou à perseguição aos jesuítas no Japão, e a relação do cineasta com a fé. Este livro compendia um conjunto de conversas sobre as motivações do cineasta, ele é questionado sobre a fé e a graça que, mais ou menos subtilmente, emergem das suas obras. O mínimo que se pode dizer do todo desta obra é que ficamos com o retrato de uma das principais figuras contemporâneas da sétima arte, Conversas Sobre a Fé, Casa das Letras, 2024.

Nesse primeiro encontro de 2016, Scorsese fala da sua juventude, era acólito e por vezes ao sair para a rua no fim da missa perguntava a si próprio: “Como é possível que a vida continue como se nada tivesse acontecido? Porque é que o mundo não é abalado pelo corpo e pelo sangue de Cristo?” Questão que o realizador tratou no cinema em filmes como O Touro Enraivecido, A Última Tentação de Cristo e o Silêncio. Padre e realizador irão encontrar-se durante o período da pandemia, falarão de pessoas e livros que influenciaram o realizador que continua obcecado em filmar sobre Jesus.

Fala-se inicialmente de Silêncio, dos jesuítas perseguidos no Japão. Scorsese é assumidamente católico, inquieta-o a questão da graça, algo acontece ao longo da vida e comenta: “Não se consegue ver através da experiência de outra pessoa, apenas da nossa. Por isso, pode parecer paradoxal, mas relacionei-me com o romance de Shūsaku Endō.” Contará ao entrevistador o que pensa das fascinantes e intrigantes personagens do romance, padres que perderam a sua fé, padres que descobriram o rosto de Cristo. Questionado se a compaixão é instinto ou humor, responde que a chave é a negação de nós mesmos, ele dá-se como obcecado pelo espiritual. “Estou obcecado com a questão do que somos. E isso significa olhar para nós de perto, para o bom e para o mau. Será que podemos cultivar o bem para que, num momento futuro da evolução da humanidade, a violência possa, possivelmente, deixar de existir? Mas, neste momento, a violência está cá. É importante mostrar isso. Para que não se cometa o erro de pensar que a violência é algo que os outros fazem.” Reflete demoradamente sobre o tempo da pandemia, os livros que releu, os filmes que viu e fala do que ressoou em si a mensagem do Papa Francisco:

“Durante muitos anos, tentei compreender como Jesus vive no mundo que o rodeia e como a sua presença pode viver em mim e ser expressa por mim. Durante muito tempo cometi o erro de pensar que estava a exprimir Jesus quando, na verdade, estava a estragar as coisas – era uma questão de orgulho e de ego, de me deixar levar pelo papel de grande realizador de cinema e pelo poder de fazer arte. Lendo o texto do Papa Francisco, fiquei entusiasmado.” E fala do seu passado e da sua juventude, em Little Italy¸ Nova Iorque, zona de crime organizado, frequentou uma escola católica, conheceu o padre Francisco Príncipe, influenciou-o muito. “Ele representava uma forma de pensar e uma forma de lidar com a vida que era muito, muito diferente do mundo cruel, duro e julgador que me rodeava. Olhava para nós e dizia: ‘Não têm de viver assim’.” Era uma época de movimentos de direitos civis e o padre Príncipe dera-lhe uma abertura para o mundo, teve um efeito poderoso sobre Scorsese. Pensou que estava destinado a seguir a vida sacerdotal, cedo descobriu que estava a tentar esconder-se da vida e do medo, apercebeu-se que queria estar com os outros, e então apareceu a paixão pelo cinema.

Há um outro momento decisivo na sua vida quando, em 1964, viu o filme Evangelho Segundo Mateus, de Pasolini, o filme era para ele num planeta diferente, o rosto de Jesus aparecia nada que tinha visto antes. “Os outros filmes sobre Jesus que tinha sido feitos até essa altura eram muito, muito piedosos, e sempre que Jesus aparece é o centro das atenções em todos os sentidos. É destacado do resto da humanidade na sua maneira de falar, na sua maneira de se mover, na sua perfeição física e no enquadramento, na encenação, na encenação, na iluminação. Mantém uma longa tradição de representar Jesus na pintura de forma absolutamente idealizada. Mas o que Pasolini fez foi tornar Jesus um ser humano, uma pessoa, alguém que se pudesse conhecer e com quem se pudesse falar.”

Respondendo a comentários sobre os seus filmes lembra que A Última Tentação de Cristo toca em toda a iconografia da igreja. “Apercebi-me que tinha de ir mais longe na história de Jesus quando fiz este filme. Havia uma parte de mim que se sentia compelida a lidar com a iconografia – tinha de criar a crucificação, tinha de criar a ressurreição de Lázaro, tinha de criar o sermão da montanha, mas acho que essa não é realmente a história de Jesus.” E, mais adiante: “Jesus abraça toda a humanidade, e Jesus é realmente toda a humanidade. Mostra-nos a todos o caminho, a forma de viver, de lidar com a raiva, a vingança e a retribuição, com o amor, o perdão, a redenção e tudo o mais que existe em nós e entre nós.”

E conta-nos o que o acicatou a filmar Assassinos da Lua das Flores. “Por volta do início do século XX, os Osage descobriram petróleo na sua reserva. Rapidamente, tornaram-se o povo mais rico do mundo. Depois, como é óbvio, os brancos especuladores e vigaristas e oportunistas e ladrões e assassinos desceram. Sentiram o cheiro do dinheiro fácil. Houve um esforço concentrado para matar praticamente toda a comunidade Osage em troca do dinheiro do petróleo, por todos os meios imagináveis: tiroteios, atentados à bomba, a bebidas alcoólicas e envenenamento lento.” Confessa que procura compreender e aceitar a violência que existe em nós, procura aprender sobre a vida interior dos outros observando o seu comportamento exterior. Volta a falar sobre a hecatombe que caiu sobre os Osage: “O reinado de terror dos Osage foi uma questão de poder e ganância. Foi muito fácil para Bill Hale e todos os outros assassinos desumanizarem os Osage, mas estes homens e mulheres não foram assassinados por serem Osage, foram assassinados pelo seu dinheiro. No final, os assassinos não escaparam com nada a não ser dinheiro. Os Osage têm a sua cultura extraordinária, agora em processo de renascimento e reconstrução.

E Scorsese despede-se deixando um argumento para um possível filme sobre Jesus, belíssimo texto a coroar esta longa conversa sobre a fé, medos e inspirações, sempre presentes no cinema de um dos maiores realizadores do nosso tempo. 


                                                                        Mário Beja Santos



 

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Cartas de Bruxelas (3).

 






                                                                             Cruor et sanguis




Tell her everything’s all right. And there aren’t any more guns is the valley. As palavras de Shane perto do final do filme homónimo de 1953, realizado por George Stevens, deixam um gosto de boca utópico. A violência de Shane preludia uma ordem pacífica, doméstica e civilizada. O pistoleiro impõe o rule of law contra o poder o pessoal e arbitrário de um barão do gado; os homesteaders avançam, e o Estado avança com eles. A marca de água do sedentarismo e da lei são os ranchos e a agricultura. No fim dos combates, o último acto de violência suprime-se a si mesmo; à imagem e semelhança de Moisés, Shane não entrará na Terra da Promissão. Quem se tornou culpado de matar, o homicida com as mãos sujas de sangue – cruor era a designação que os romanos davam ao sangue derramado – não pode transpor o limes sagrado da vida. O mal não deixa de ser mal por estar ao serviço do bem; não há lugar para nenhuma transfiguração compensatória. A morte pertence à morte, o sítio onde não vive ninguém. Um vento esgarrão que sopra do inferno afasta Shane da felicidade humana. A promessa cumpre-se apenas para o outro, Joe Starrett, marido e pai, que, corajoso, alicerça a casa na solidão dos espaços vazios e selvagens. Quando o medo se apodera dos restantes homesteaders, dispostos a abandonar o vale, Starrett decide ficar por saber que tem por si o direito. É um homem da vida –– não teme a morte. O princípio que vivifica, que dá alento e alma ao seu corpo e à sua actividade – os romanos chamavam a um tal princípio sanguis – é o seu direito. Mas precisamente por isso está em desvantagem diante dos profissionais da morte – os pistoleiros. Shane será a virtude defensiva sob uma forma autonomizada, virtude essa que só se exerce na prática de um mal. Mas no sacrifício voluntariamente aceite confirma-se e supera-se a lógica do bode expiatório. É Shane que enuncia a fórmula mágica que reduz a nada o sacrifício: A man has to be what he is, Joey. Can't break the mould. I tried it and it didn't work for me. Exigido por outra instância, o sacrifício de si seria a forma suprema da heteronomia, ao brotar da consciência inaugura a história pelo advento da irreversibilidade do tempo em oposição à imanência mítica da repetição: a história, porém, que será a história dos outros. Prevalece assim a lógica sacrificial, violenta, fascinada, no seu optimismo desesperado e desvairado, pelo acto final, pelo equilíbrio adquirido à custa da reificação do bem e do mal, da segregação eterna entre os eleitos e os réprobos.

John Ford anula esta perspectiva em O Homem que matou Liberty Valance, de 1962, cujo guião consiste na adaptação de um texto de Dorothy M. Johnson escrito, paradoxalmente, em 1953. Contrariamente a Shane, no filme de John Ford há, desde o início, um olhar desencantado. O progresso não se liga apenas à lei, vem pelo meio técnico dos caminhos de ferro: Hallie – Churches, high school, shops. Link Appelyard – Well, the railroad done that, desert still the same. O deserto resiste à casa do homem violento, o homem que matou Liberty Valance, que, como Shane, fica excluído da cidade; na sua casa ardida e inacabada crescem cactos, ainda que floresçam. Este é o elemento que o distingue de Liberty Valance. O mal alastra-se até aparecer como a verdade das coisas, lançando o seu manto sobre o mundo. Liberty Valance despedaça o livro da lei, espanca o advogado, Ransom Stoddard, e exerce a violência como se esta fosse a lei: I will teach you law, western law; a tal ponto o faz, que são os cúmplices que travam a sua violência. Stoddard, o instaurador do direito, renuncia à violência I’am staying and I’am not buying a gun either e fala em nome do que lhe é anterior, a statehood. No final, já senador, o olhar para trás de Stoddard parece reencontrar o mal, o excluído, no deserto, Tom Doniphon, o homem que realmente matou Liberty Valance no confronto com Stoddard, permitindo que o homem das leis guardasse desse modo as mãos limpas de sangue – ainda que não aos olhos dos outros. Essa é a razão que origina a ambiguidade que encerra o filme. It was once a wilderness, now it's a garden. Aren't you proud?pergunta Hallie. Talvez a a história tivesse acabado se a wilderness tivesse sido eliminada. Mas a derradeira fala do filme, sintomaticamente do funcionário dos caminhos de ferro, Nothing's too good for the man who shot Liberty Valance, pode suscitar a interpretação que vê na afirmação da mentira um desmentido da vida de Stoddard. Mas pode ser também a ratificação de que o gesto homicida que defende a ordem civilizada continua nela como uma memória querida, com a possibilidade de irromper de novo – ao contrário do que sucede em Shane, o mal está no meio de nós. Na melancolia de Stoddard há, porém, uma consolação. O direito serve para cruor não se transformar em sanguis.


                                                                                                João Tiago Proença






terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Teremos sempre o Natal.

 



Tempos estranhos estes que nos querem fazer pensar duas vezes antes de desejar “Feliz Natal!”. É o politicamente correto que confunde tolerância com intolerância, derramando um fel corrosivo na empatia espontânea. São os amigos que perderam os que lhes são mais queridos. São os próximos e menos próximos que sabemos, tantas vezes sem se queixarem, que estão a passar por dificuldades. São os vizinhos, os rostos, as pessoas com que nos cruzamos, que sentimos que não estão bem. É o consumismo que nos divide. Que nos divide por fora. Os que podem. Os que não podem. Mais ou menos. Que nos divide por dentro. Generosamente culpados. Culpadamente generosos.

E o futuro próximo que é imprevisível, “disseram nas notícias”.

Esta semana vi um filme que é um murro no estômago. Um retrato impressivo de vidas amargas, que sabemos que são vividas, com que nos cruzamos, com que vivemos. “Nunca Nada Aconteceu” de Gonçalo Galvão Teles é um olhar penetrante sobre o que acontece e não podemos ou não queremos falar. Não se fala de suicídio nas notícias. Não se fala de desemprego, a não ser nas estatísticas. Não se fala de infidelidade, a não ser na vida dos outros. Não há jovens, e menos jovens, infelizes nas famílias. E muito menos nas redes sociais.

O paradoxo é este receio. Esta autocensura que se vai formatando. O medo em dizer: Feliz Natal! Desejar um feliz Natal não é uma obrigação. É uma liberdade. E das maiores. A liberdade que temos de, por muito que o ano tenha desgastante, de desejar bem aos outros. E a nós. A liberdade que temos de ter esperança no futuro, por mais imprevisível que seja.

No final de uma relação amorosa, teremos sempre Paris. No final de um ano, por mais difícil que seja, por mais incerto que seja o que está para vir, podemos sempre dizer aos que mais gostamos, aos amigos, aos que nos ajudaram, aos que ajudamos, aos que com quem nos cruzamos, aos que estão longe, o quanto lhes queremos bem. Podemos sempre dizer, a todos: Feliz Natal!

Teremos sempre o Natal.

 

Nuno Sampaio 21.12.21





domingo, 17 de outubro de 2021

O tema de Lara, semente de melancolia.



 

O tema de Lara, semente de melancolia 

 

Sonolento, preguiçando,

No meu sofá recostado,

Estava eu procurando

Matar o tempo evocando

Lembranças do meu passado,

 

Quando musical momento

Fez a sua aparição.

De ouvido um pouco atento,

Quis descobrir o intento

Dessa mágica visão.

 

Por que a canção de Lara

Veio inopinadamente?

É que ela me é tão cara

Por sua beleza rara,

Que me invade inteiramente.

 

No serão anterior,

Após uma frugal ceia,

Em ambiente sonhador,

Vi o filme encantador

À luz ténue da candeia.

 

De tal modo se apossou

Do meu subconsciente,

Que a defesa lhe anulou

E no seio me plantou

A sua letal semente.

 

Como posso esconjurar

Este sestro malfadado?

Nisso tenho que apostar

E nos Fados confiar

Que serei exorcizado.

 

Manchester, 3 de Outubro de 2021

António Cirurgião

 



quinta-feira, 30 de setembro de 2021

O estendal.

 




Já aqui foi caso da importância da mola da roupa.

Agora, mais precisamente no dia de hoje, é a vez do estendal.

Uma das principais cenas que Jean Cocteau quis filmar nesse filme de culto que é La Belle et La Bête foi a “cena dos lençóis no estendal”, cena essa que era, para ele, uma obsessão.

Antes de mais mobilizou tudo e todos e mandou a equipa em expedição em demanda dos lençóis mais-que-perfeitos para estender no mais-que-perfeito estendal. O diário de filmagem do realizador mostra-o constantemente inquieto e meticulosamente preocupado com a localização do conjunto, a disposição, a orientação do estendal. Mais: com cada fio do estendal, cada centímetro do fio do estendal, cada centímetro quadrado de cada lençol no estendal.

Um extrato do diário dá conta do feitiço que o tomou: “Tenho de tratar de tudo, pendurar a roupa, amarrar os mastros (…), construir as ruelas de lençóis e preencher os espaços a descoberto. É difícil imaginar o que é tentar alugar doze lençóis suplementares em 1945…  Eu só tinha seis. As ruelas e os bastidores foram sendo construídos à medida que se ia avançando, o que me impedia de ter à partida uma visão de conjunto. Mas na verdade até prefiro assim. Se tivesse de descrever esse labirinto de lençóis, havia de arranjar maneira de o leitor se perder nele”




Dedicado à Tânia Cunha.


Manuela Ivone Cunha





 

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Pele escura, de Graça Castanheira.

 




O breve documentário de Graça Castanheira conta a história da visita de um pequeno grupo de pele escura que mora na Trafaria, ao Centro Cultural de Belém. Ironicamente e como se se tratasse de um espelho, a visita tinha por fim fazer com que o grupo assistisse ao próprio documentário acerca dessa mesma visita. Esta narrativa coloca um problema principal: o de saber como é que um grupo com origens africanas – que vive na periferia de uma cidade, sofre o estigma da discriminação racial e social e ao qual se pretende dar voz – se relaciona com o centro, sobretudo com as suas instituições culturais.

Trata-se de uma relação ou de um conjunto de relações que se encaixam, em parte, numa ideia bastante essencializada do contacto de culturas. Resta saber qual a margem que o próprio documentário cria para conceber relações que escapem ao previsível, sobretudo, a representações geradoras de tantos estereótipos.

Ao grupo periférico são atribuídas várias características externas, em parte baseadas, em atributos corporais: a pele escura como consta do título, uma linguagem própria, uma forma de andar e de dançar que funcionam também como um estereótipo identitário, o vibrar com a música cuja letra contém em si uma alusão ao giro africano, os inevitáveis cabelos afro, vestuário e calçado de marca e o recurso ao telemóvel e aos phones, enquanto apropriação dos atributos do centro, por parte de um grupo considerado periférico.

Aos marcadores corporais acabados de enunciar somam-se três diferentes tipo de denúncias. A primeira diz respeito à queixa acerca dos meios de transporte. São os horários dos barcos e dos comboios ou a própria precariedade do automóvel que parecem impor-se como uma barreira, difícil de transpor, entre o centro e a periferia, explicando também os atrasos com os quais o próprio grupo brinca no final do documentário. Uma barreira, claro está, que não afecta apenas o grupo de pele escura, mas todos aqueles que vivem na outra banda (o que constitui um modo de atenuar uma perspectiva essencialista, abrindo para outros posicionamentos sociais). As barreiras são tais que melhor seria, como é dito por José a um dos mais jovens actores, bastava vir a nado e atravessar em linha recta o Tejo.

A segunda das denúncias, que divide os protagonistas, diz respeito à necessidade de o grupo periférico ter de se deslocar a Lisboa, para assistir a um espectáculo cultural. Isto é, à projecção de um filme. Não teria sido melhor, pergunta Amara, que tudo se passasse ali, na Trafaria, no centro cultural ou no espaço da biblioteca? Pergunta a que ela própria responde, considerando que os outros – os “pulas”, ou “tugas” – não conseguiriam sequer lá chegar.

Uma terceira denúncia envolve uma queixa mais funda em relação ao modo como os outros, os “tugas”, se continuam a fazer representar pelo chamado Padrão dos Descobrimentos e continuam a ter uma visão celebrativa ou comemorativa do Império. Pior: se foram capazes, como afirma Amara, de mudar o nome da Ponte de Salazar para Sobre o Tejo, por que razão têm tanta dificuldade em apagar os nomes dos locais de celebração imperial? Ou, como sugere o Tio Joaquim, o cota, por que não passar a chamar, ao Padrão dos Descobrimentos, Museu da Kizomba? Nas palavras de uma das protagonistas, este é um “problema que estamos com ele” e, segundo o “cota”, está para durar e não se resolverá tão cedo.

Até aqui, os principais aspectos tendem a alinhar-se em termos de uma série de dicotomias, opondo nós – os periféricos de pele escura, da periferia – aos tugas que estão no centro, com os seus monumentos, memórias celebrativas do império e espectáculos, em centros com vocação para monopolizar as iniciativas culturais. Em face desta oposição entre duas culturas, a qual revela uma clara opressão e exclusão, porque não se revoltam os periféricos e de pele escura? A questão é retórica, porque é evidente não existirem, em nenhum momento do documentário, indícios de comportamentos de ruptura emancipadora. Nem sequer se coloca essa mesma questão.

Pelo contrário, o documentário parece conter em si uma série de propostas pedagógicas, mais conformistas, que quebram qualquer tipo de apelo à violência, procurando fazer valer uma visão mais eufemística do contacto entre culturas. Sem seguir a sequência da sua aparição no documentário, será possível argumentar que a obrigação da pequena actriz cumprir com os seus deveres escolares, antes de participar na visita, surge como um apelo directo à educação e à escola, enquanto instrumentos principais na criação de melhores condições de vida.

Depois, qual o significado da bandeira portuguesa, na casa de uma das mulheres que surge inicialmente com um vistoso cabelo afro? Mera cortina ou símbolo de uma luta pela inclusão com direitos plenos à cidadania portuguesa? Imagino que a sua utilização seja intencional, logo, o que está em causa é essa luta pelos direitos de cidadania, da qual fazem, constitucionalmente, parte os direitos à educação, saúde, justiça, salário digno, habitação, representação política plena, etc.

Há também que reflectir sobre o significado da primeira cena. Nela, um pescador branco, vindo de barco, entrega a dois jovens de origem africana um saco de peixe fresco. O pescador representa o valor do trabalho, mas também o gesto solidário com os jovens impecavelmente vestidos. Depois, todos os outros protagonistas de pele escura alinham as suas vozes, em relação à visita, com manifestações de lazer e iniciativas culturais, excluindo da sua representação as lutas quotidianas e as práticas laborais. Qual a intenção que se encontra por detrás desta exclusão tão marcada? A pretexto de querer intencionalmente dar voz ao grupo periférico de pele escura, fazendo com que todos se façam ouvir na chamada área da cultura, a sua representação acaba por ser amputada de uma ligação ao quotidiano e ao trabalho. Trata-se, reconheço, de uma crítica fácil, mas não significará esta mesma operação de exclusão um convite a uma visão estetizada de um grupo que é, à partida, considerado subalterno?

Para responder à última pergunta e perceber como pode uma representação pela imagem escapar ou não aos riscos de estetizar bairros pobres e grupos subalternos, vale a pena analisar toda uma série de diálogos que insinuam a ironia resignada, a alegria risonha e a solidariedade sentida na falta de dinheiro, e que não passa pela representação do modelo da família monoparental. Por outras palavras, o documentário reporta a uma economia moral dos subalternos, fundada no riso, na ironia e em sentimentos solidários de colaboração e entreajuda, bem como na representação de lindos corpos e caras. Onde fica, então, o sofrimento, a violência e a resistência em resposta às inúmeras formas de controlo e discriminação sofridas pelos subalternos?

Uma última palavra diz respeito ao tema da viagem, da periferia ou de fora para o centro. Trata-se de um velho tema da cultura ocidental. As Cartas Persas (1721) de Montesquieu são talvez uma das obras mais conhecidas deste tipo de procedimento da razão iluminista europeia. De facto, este documentário parece tributário desta linha crítica do pensamento ocidental que procura encontrar, na visão do outro, um espelho que nos permita ganhar distância e pormo-nos em causa a nós próprios?

Sem pôr em causa esta preocupação pelo espelho, sobretudo, quando este nos ajuda a ganhar distância e a conhecermo-nos melhor, não haverá outras formas – porventura mais eficazes e descentradas de nós próprios – de dar voz àqueles que não têm voz? Sem a pretensão de responder a uma questão que só quem domina a linguagem dos documentários poderá alcançar, não resisto – por saber que Graça Castanheira vem da Huíla – a citar aqui o testemunho exemplar de Pereira do Nascimento, um médico português de finais do século XIX, em Da Huilla às Terras do Humbe (Huíla, 1891). Eis o que pensavam os habitantes do Humbe acerca dos portugueses brancos, segundo o registo que publicou:

 Os brancos, na sua opinião, não passam de uns pobres diabos sem beira, nem eira, que não tendo gado nem plantações nas suas terras emigram para a África, onde passam vida errante (ova-kankala); vêm ao Humbe carregados de bugigangas, que lhes vendem a troco de gado, que enviam para as suas terras afim de sustentar os parentes, que não têm que comer, nem onde cair mortos. Dizem que nós temos habilidade para fazer coisas bonitas e boas, mas não sabemos criar gado nem plantar mantimentos, por isso que as nossas terras são áridas e secas, não têm pasto nem se prestam a ser cultivadas e para não morrermos à fome somos forçados a emigrar, onde, com o engodo nos artefactos que os seduzem, vamos vivendo à sua custa!

 

Diogo Ramada Curto 


(originalmente publicado aqui)

 





terça-feira, 24 de novembro de 2020

are you talkin' to me?

 

Ilustração de Vítor Higgs


Are you talkin’ to me? – segunda e última parte de uma longa digressão pelo filme Taxi Driver. Em Péssima Companhia, no Diário de Notícias, aqui

 





domingo, 15 de novembro de 2020

Are you talkin' to me?




Ilustração de Vítor Higgs
 


Are you talkin’ to me?, a primeira parte de uma looonga crónica dedicada a Taxi Driver, de Martin Scorsese. Em «Péssima Companhia», no Diário de Notícias, aqui