quinta-feira, 30 de junho de 2016





impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

 

# 25 - BUD POWELL

 

 

 

Fotografia de Robert James

 
O jazz como genuína tragédia? Bud Powell é o exemplo perfeito. Para se apresentar em estúdio no dia 23 de Fevereiro de 1949, o pianista implorou ao hospital psiquiátrico onde há 15 meses fora internado contra-vontade, que lhe dessem um dia de soltura, com a promessa de estar de volta à hora do jantar. Semanas antes haviam-lhe concedido autorização para ensaiar no desafinado piano da enfermaria, na condição de dar um recital de beneficência.
O resultado da gravação – com Ray Brown no contrabaixo e Max Roach na bateria, melhores companheiros não poderia haver – é apropriadamente considerado de histórico. Sabendo das trevas emocionais donde aflorou, o tema “Celia”, por exemplo, nas suas oscilações entre melancolia e urgência, na inquieta e precária alegria que desprende, ganha uma doutro modo velada qualidade comovente.
          Duas vezes Bud Powell se envolvera, embriagado, em brigas, duas vezes fora atingido na cabeça e em ambas de tal modo estrebuchou contra a polícia, que esta achou melhor acalmá-lo com internamento psiquiátrico. Nos escassíssimos registos clínicos que se conhecem, os médicos não hesitaram em diagnosticar como mania da perseguição os protestos de Powell contra o racismo a que o sujeitavam. O álcool, isto sabia-se, endiabrava-lhe o juízo, mais do que o vulgar. Mas – e agora ver-se-á melhor dando dois passos atrás – singrava para o final a sofrida década de 40, Bud Powell era negro e insubmisso, uma conjunção alarmante para o siso da época, e a confraria do bebop, com a qual ele afinava, salientava-se como uma notória súcia de intoxicados. A terapia recomendada para o surto de instabilidades mentais nesse pós-guerra (faltariam umas décadas para se “descobrir” o stress traumático) era curta e grossa: uma descarga eléctrica aplicada nas têmporas operava milagres no comportamento dos pacientes. Deste tratamento Powell nunca recuperaria e degradou-lhe a existência até ao fim, resumida a 41 anos.
 
 

Jazz Giant
1956 (2004)
Verve - UCCV-9165
Bud Powell (piano), Ray Brown, Curley Russell (contrabaixo), Max Roach (bateria)
 
 
Quando Powell apareceu no Minton’s o banco do piano parecia já ocupado por Thelonious Monk. Mas a influência do Grande Taciturno era bem maior do que a sua efectiva participação no bebop e, em abono dos factos, refira-se ter sido ele mesmo quem convidou Powell a integrar-se no género. A intuição de Monk provou-o, mais uma vez, como genial, se ele rendilhava puzzles harmónicos que deixavam os músicos a coçar a cabeça de estupefacção, preferindo, por isso, isolar-se ao fim da noite, depois de terem terminado os sets, a experimentar umas linhas que só ele sabia que destino seguiam, já Bud Powell mostrava o condão de transitar, no espaço de um par de compassos, de umas trevas de lua nova para uma sucessão de acordes solares como alguém que se vê subitamente livre. Isto, e uma técnica formidável – um dos raros capazes de acelerar sobre a partitura de “Cherokee” dir-se-ia que até próximo da barreira do som – garantiram-lhe acolhimento e estatuto no selectoclube dos pioneiros do bebop.
A memória de Bud Powell é hoje quase tão precária como foi a sua vida. No início dos anos 90, no dealbar do CD, cada editora por onde ele passou (Verve, Blue Note e RCA) lançou caixas com as gravações completas. Encontrá-las agora, sobretudo na Europa, não é evidente. Imperecível continua “Jazz Giant”, obra que lhe deu vulto, precisamente a que proveio da sessão do dia 23 de Fevereiro de 1949. É pena que nela não conste o tema emblemático (inclusive pelo título) de Powell, “Un Poco Loco” – não se pode ter tudo...
 
 
 
José Navarro de Andrade
 

 

quarta-feira, 29 de junho de 2016

O Monstro entre os monstros.

 
 
Foi há exactamente dois séculos que, num verão que nunca chegou mesmo a comparecer, uma jovem de dezoito anos entreteve um dos mais famosos serões literários da história, onde estavam também Byron e Polidori, com a criação do monstro de Frankenstein.
 
Nepotismo & Monstros
Well, the first thing is that I love monsters, I identify with monsters.
Guillermo del Toro
 
 
Monstros existem muitos, mas apenas um é universalmente conhecido como O Monstro, a criatura a quem o génio desenfreado de Victor Frankenstein deu vida, a aberração criada pela imaginação de uma jovem que, com dezoito anos apenas, escreveu um dos romances mais influentes da literatura de horror e um dos antecedentes genéticos da ficção científica, publicado anonimamente dois anos depois, em 1818. Contudo, a imagem popular da grande criação de Mary Shelley é, em muitos aspectos, diferente da idealizada pela autora.
Quando pensamos no Monstro, a imagem que nos surge coincidirá muito mais provavelmente com uma das adaptações cinematográficas, principalmente com a versão de 1931 dos estúdios Universal, baseada na adaptação teatral que Peggy Webling fez do original de Mary Shelley, imagem essa indissociável da expressão corporal de Boris Karloff e do trabalho de caracterização de Jack Pierce. Esta adaptação cinematográfica, pela mão de James Whale, foi o segundo projecto de uma saga de filmes que, hoje em dia, goza de um estatuto quase lendário, e cuja história de origem não só merece ser contada, como é uma das mais curiosas do folclore hollywoodesco.
Embora poucas vezes aludida, a data de 1928 é fundamental na história do cinema de terror. Nesse ano, como presente pelo seu vigésimo primeiro aniversário, Carl Laemmle Jr. recebeu do pai a Universal Pictures, num gesto nada surpreendente num estúdio que em pouco menos de duas décadas de história já construíra uma sólida fama de nepotismo. Este nepotismo, contudo, tornar-se-ia em poucos anos numa das decisões capitais da história do cinema e, principalmente, daquela que é, argumentativamente, a mais revolucionária época do horror no cinema, juntamente com os anos de ouro da Hammer Horror, entre os cinquenta e os setentas.
Aproveitando o sucesso financeiro alcançado com filmes como O Fantasma da Ópera (1925)[1], com Lon Chaney Sr. no papel principal, ou O Legado Tenebroso (1927), Laemmle Jr. deu início à Universal Monsters ou Universal Horror, uma designação criado para aglutinar uma série mais ou menos sequencial de filmes de terror produzidos pela Universal Pictures nos anos 30 e 40 e, em particular, às suas sagas de monstros.
 
(A Universal Pictures foi o primeiro estúdio a desenvolver um catálogo de monstros, hoje clássico no cinema de terror)
 
Para além da enorme influência que estas obras tiveram na história do cinema, tanto em termos narrativos como tecnológicos – com soluções pioneiras na maquilhagem e na animação –, elas foram fundamentais para o desenvolvimento do cânone de alguns dos mais reconhecíveis monstros do cinema, como o vampiro, a múmia e o homem invisível. Basta pensarmos, por exemplo, em Drácula (1931) de Tod Browning e Karl Freund [responsável pela fotografia de Metrópolis (1921)], que deu ao vampiro do cinema a roupagem sedutora que a origem byronesca do vampiro moderno há muito merecia, substancialmente diferente do vampiro-praga de Max Schrek em Nosferatu (1922), este também um marco da história do cinema e um privilégio que a intolerável ganância dos herdeiros de Bram Stoker quase logrou vedar-nos.
Não obstante ter sido produzido no período pre-code, é ainda um Drácula sem sangue e mordeduras às claras, longe dos tempos que, trinta anos depois, tornarão possíveis os vermelhos vibrantes do magnético Drácula de Christopher Lee. Contudo, a carga distintamente sexual dos movimentos predatórios está já presente na forma como Lugosi envolve as vítimas na sua capa negra, um gesto que se tornaria canónico e repetido até à exaustão em todos os filmes nos quais o húngaro deu corpo a esta personagem. Também nas próprias vítimas se desenha já a estranha mescla entre horror e erotismo motivada ataque do vampiro. Foi Bela Lugosi quem, originalmente, inventou alguns dos trejeitos que hoje são lugares-comuns, umas vezes a sério, outras com saudável ironia, como aquela icónica imagem do vampiro de braços e capa abertos que perseguiria Lugosi até ao seu último filme, o desastroso Plan 9 from Outer Space (1959), de Ed Wood, cena que, aliás, encapsula só por si toda a espiral decadente que marcou o final da sua carreira e, também, de uma forma de retratar os monstros no cinema. Mas, mesmo com o final amargo e depauperado que a aventura norte-americana representou, Bela Lugosi é um ícone do cinema de terror e a composição do seu Drácula é, sem dúvida, uma das mais importantes e com um espectro de influência persistente, principalmente no que toca às versões do Conde em animação e em comédia.
Outro momento central na carreira de Lugosi, com tanto de memorável como de acidentado, é a perda de um papel, uma versão bem antiga mas não menos consequente de um erro clássico em que caíram actores como Tom Selleck – que rejeitou o papel de Indiana Jones – ou Will Smith – que preferiu a coboiada steampunk de Wild Wild West (1999) a ser Neo em Matrix (1999).
Após o sucesso de Drácula, Lugosi foi escolhido por Carl Laemmle Jr. para o papel do monstro no novo projecto da Universal, uma adaptação do Frankenstein de Mary Shelley. Contudo, face a um argumento que reduzia a personagem a uma mera máquina de matar e com um nítido desejo de ficar com o papel do criador Victor Frankenstein, a juntar a um casting absolutamente desastroso, cuja filmagem se transformou numa espécie de mito urbano de Hollywood, Lugosi acabou por perder aquele que seria um dos papéis mais emblemáticos da carreira de outro emblema do cinema de terror, Boris Karloff, dando início a uma dos primeiros grandes antagonismos entre actores.
 
 
(Os primeiros pósteres promocionais de Frankenstein chegaram a ter o nome do actor húngaro em destaque)
 
Não deixa de ser curioso, ainda assim, que anos mais tarde o nome de Bela Lugosi acabasse por ficar ligado à saga de Frankenstein quando é chamado para o papel de Ygor, o psicopata ajudante de Frankenstein em O Filho de Frankenstein (1939) e em A Sombra de Frankenstein (1941), e quando representa finalmente o próprio monstro em Frankenstein Contra o Homem Lobo (1943), onde prova que, de facto, não estava mesmo talhado para o papel.
Frankenstein (1931) de James Whale não foi a primeira versão cinematográfica da história de Mary Shelley, apesar de ter sido a primeira com som. O primeiro filme a transpor para o cinema a história de Frankenstein e o seu Monstro é uma curta de doze minutos, produzida em 1910 pelos Estúdios Edison, fundados pelo empresário e inventor Thomas Edison, e realizada por J. Searle Dawley.
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(Poster promocional da primeira adaptação cinematográfica de Frankenstein, com Charles Ogle no papel do Monstro)
 
A primeira longa-metragem chegaria cinco anos depois, com Life Without Soul (1915), um filme hoje perdido, cujo argumento explorava o tema do homem sem alma e que terminava com o espectador a descobrir que afinal tudo fora o sonho de um jovem que adormecera a ler a obra de Mary Shelley. A última versão anterior à da Universal é um filme mudo italiano, Il Mostro di Frankenstein (1920), de Eugenio Testa, um dos poucos filmes de terror produzidos em Itália antes dos anos cinquenta, altura em que o cinema transalpino começou a preparar aquilo que no final dos anos 60 e início dos 70 seria a sua melhor época, com Mario Bava, Dario Argento e Sergio Martino.
O enorme e algo inesperado sucesso de Drácula em 1931 levou Carl Laemmle Jr. a anunciar planos para um conjunto de filmes de terror e a oferecer o papel do Monstro de Frankenstein, o primeiro dessa sequência, a Lugosi. A relativa indecisão do húngaro e o lendário desastre dos primeiros testes de câmara ditaram o seu afastamento do projecto, passando directamente para a produção seguinte da Universal, uma adaptação dos Crimes da Rua Morgue, de Edgar Allan Poe, e deixando o papel livre para Karloff, que, acima de qualquer outro, o tornou um dos monstros mais reconhecíveis do cinema.
Esta versão cinematográfica apresenta alguns desvios significativos face ao original de Mary Shelley, sendo os mais relevantes o processo de criação do monstro e a sua aparência. O processo de criação que, na versão original, era essencialmente químico é substituído pela electricidade, cujos efeitos visuais foram desenhados por Kenneth Strickfaden, ao que parece com recurso a pelo menos uma das bobinas do pioneiro da electricidade Nicola Tesla. Também a aparência do monstro é particularmente diferente da imaginada por Shelley – e cujos traços gerais são os capturados pela ilustração de Theodor von Holst para o frontispício da edição de 1831. Assim, numa versão completamente diferente da caracterização de Charles Ogle e muito mais grotesca e artificial que a descrição original de Shelley, foi o lendário maquilhador da Universal, Jack Pierce, responsável também pela caracterização de outros monstros do estúdio, como o Homem Lobo e a Múmia – este último igualmente com Karloff – que estabeleceu os traços gerais que reconhecemos nesta personagem: a cor esverdeada, as suturas no rosto, o cabelo preto e ralo, os parafusos nas laterais do pescoço, tal como a sua roupa, com o blazer excessivamente curto nos braços e as botas de sola enorme. Estas alterações tornaram-se tão significativas na construção da mitologia do Monstro de Frankenstein que, sem qualquer exagero, é-nos possível dizer que o imaginário contemporâneo acerca do monstro tem tanto de Mary Shelley como de Whale, Strickfaden, Pierce e Karloff.
 
 

(A maquilhagem e técnica corporal de Karloff, da autoria de Jack Pierce, são hoje parte indissociável do imaginário popular relativamente ao Monstro)
 
 
O nascimento do Monstro
That is not dead which can eternal lie. And with strange aeons even death may die.
Citação do Necronomicon
 
        Uma das melhores versões cinematográficas de Frankenstein, senão mesmo a melhor, é a sequela ao filme da Universal, intitulada A Noiva de Frankenstein (1935), onde surge uma das personagens – e também um dos momentos – mais memoráveis de toda a saga: o Dr. Pretorius e as suas criações humanas minúsculas. Esta versão – que tem um dos slogans mais enganadores da história do cinema, “O Monstro exige uma companheira”[2], quando no filme a ideia de uma companheira é sugerida pelo Dr. Pretorius – inicia-se com um prólogo, passado no século XIX, numa sala onde estão o casal Shelley e Lord Byron, evocando o célebre serão em que a ideia do Monstro foi pela primeira vez formulada. No meio de uma conversa a propósito de Frankenstein, Byron questiona Mary Shelley sobre como foi possível uma jovem franzina e delicada ter conseguido criar um dos monstros mais aterradores da literatura.
         Mary Shelley nasceu a 30 de Agosto de 1797, filha de William Godwin, jornalista e um dos primeiros expoentes do utilitarismo em Inglaterra, e de Mary Wollstonecraft, a filósofa feminista e autora de Uma Reivindicação pelos Direitos da Mulher (1792). Órfã de mãe pouco depois de ter completado um mês de vida, foi maioritariamente educada sob a tutoria do pai, com acesso à vasta livraria familiar e ao círculo de intelectuais amigos do pai, onde conheceu Samuel Taylor Coleridge, cuja Rima do Velho Marinheiro (1798) é uma das principais influências na composição de Frankenstein, como, aliás, é implicitamente reconhecido no prefácio à edição de 1818 da obra de Mary Shelley, cuja autoria, como hoje se sabe, não coube a Mary, mas sim a Percey Shelley.
         É possível que se tenham conhecido antes, mas foi em 1814, recentemente regressada de uma estadia na Escócia, que Mary conheceu o homem que lhe emprestaria o apelido pelo qual ficou conhecida e, segundo alguns, parte da inspiração para a sua obra-prima. Percy Bysshe Shelley, de origens aristocráticas e abastadas – apesar de na altura estar afastado da família graças ao radicalismo das suas opiniões –, e quase cinco anos mais novo que Mary, estava casado como Harriet Westbrook quando conheceu Mary em casa de William Godwin. Cada vez mais afastado da mulher, Shelley passava grande parte do seu tempo em convívio com os seus pares intelectuais, acabando por conhecer Mary num desses encontros, em casa de William Godwin, que Shelley admirava particularmente pela sua obra Enquiry Concerning Political Justice and its Influence on Morals and Happiness (1793).
Num detalhe saído directamente de um romance gótico, Mary e Percy começaram a encontrar-se em segredo junto ao túmulo de Mary Wollstonecraft. Apesar da oposição de Godwin e das dúvidas motivadas pelo desejo de uma vida em comum com o homem que amava e a fidelidade aos ideiais liberais dos pais, que Percy Shelley representava também para Mary, o casal acabou por fugir para França em Julho de 1814, deixando em Inglaterra a mulher de Shelley, grávida do terceiro filho, o que Mary descreve muitos anos depois, após a morte de Shelley, da seguinte forma: “It was acting in a novel, being an incarnate romance”.
        Tendo regressado logo a seguir e Inglaterra, Mary enfrentou uma situação familiar problemática e piorada pela morte de um filho que nasceu prematuro e pelas hesitações de Percy relativamente à mulher legítima. Contudo, com a morte do avô de Shelley, pelo menos a saúde financeira do casal melhorou significativamente, sendo conhecidos poucos detalhes desta época na vida de Mary, já que os seus diários relativamente a este período se perderam. No ano seguinte, após o nascimento do segundo filho do casal, baptizado com o nome do avô materno, Percy e Mary viajam para a Suíça, tendo chegado a Genebra a 14 de Maio de 1816. Pouco mais de um mês depois, a 16 de Julho, no inverno vulcânico causado pela erupção do Monte, surge o primeiro esboço da ideia motora de Frankenstein, a de um cadáver trazido de novo à vida por outro homem, isto é, uma espécie de partogénese masculina. O livro estaria terminado cerca de um ano depois e a primeira edição foi publicada em 1818 por uma pequena editora londrina, sem qualquer menção ao nome do autor e com um prefácio também anónimo, da autoria de Percy B. Shelley, e com dedicatória a William Godwin. Só quatro anos depois, em 1822, sairia uma edição com a autoria devidamente identificada, numa altura em que a adaptação teatral da obra a tinha tornado popular e menorizado as críticas iniciais que a edição de 1818 inicialmente recebeu.
          Em pouco tempo Frankenstein ou o Prometeu Moderno ascendeu à categoria de clássico absoluto e a sua criatura um dos monstros mais copiados e reverenciados do terror. Mas o que tornou Frankenstein o Monstro da literatura e o que é que faz com que esta obra e as suas milhentas versões ainda nos interessem? Frankenstein é um romance particularmente atípico, não só por ser composto por uma jovem de 18 anos com um poderio narrativo surpreendente, mas porque contrasta significativamente com o típico romance inglês do século XIX e com a própria tendência literária em que comummente vem arrumado, o romance gótico. Por um lado, a ambição desmedida e as características espantosas de Victor Frankenstein, inspiradas tanto no Satã de Milton como no Marinheiro de Coleridge e até no próprio Percy B. Shelley, tornam-no um herói pouco assimilável ao típico protagonista do romance inglês do século XIX, o que acontece também com Melmoth ou os protagonistas de O Monte dos Vendavais. Contudo, o que de mais atípico esta obra tem é que não só não é verdadeiramente uma história sobrenatural, como foge de forma evidente dos típicos meandros do romance gótico, caminhando já para o realismo e, principalmente, para um conto de terror em que o medo do sobrenatural é substituído pelo medo da tecnologia. A grande revolução neste processo dar-se-á com H. P. Lovecraft, o pai do horror cósmico, onde o terror do sobrenatural dá lugar ao terror da descoberta, nomeadamente através da ciência, da verdade acerca do homem, das suas origens e da sua total indiferença no universo. Um dos primeiros contos de Lovecraft é, aliás, uma espécie de paródia a Frankenstein, o seu Herbert West, Reanimador, onde protagonista homónimo da obra, uma versão apoplética e sociopata de Victor Frankenstein, descobre um processo químico capaz de reanimar mortos, sendo os resultados, contudo, um total desastre já que o regresso à vida aparentemente produz no corpo reanimado uma loucura de horror inultrapassável.
A criatura de Frankenstein é também particularmente atípica enquanto personagem. A maioria dos monstros canónicos do terror acabam por ser versões pouco alteradas do medo primordial da morte. É o que acontece com os fantasmas, mas também com os zombies e os vampiros. Expressam não só o nosso medo da morte mas, principalmente, o medo dos que regressam de entre os mortos, a mais violenta e radical perversão da natureza. O lobisomem é uma excepção, uma vez que as suas características estão mais relacionadas com o medo da animalidade que, em potência, cada um de nós carrega dentro, sendo o lobo um elemento cultural comum para expressar a ideia da besta dentro de nós próprios, presente em diversos folclores europeus, principalmente no germânico, e parte fundamental da mitologia hobbesiana do estado de natureza.
O Monstro de Frankenstein, diferentemente, partilha elementos comuns a diversas mitologias do terror. Por um lado, a criatura é, como se sabe, um corpo regressado da morte. Contudo, o medo suscitado pela criatura tem muito mais a ver com o medo da artificialidade, das máquinas – aquilo que Isaac Asimov baptizará apropriadamente como o complexo Franskentein. Por outro lado, porque é uma figura cujo jogo dramático é absolutamente indissociável do seu criador. Um dos detalhes mais significativos do romance de Shelley é, exactamente, o anonimato em que Victor Frankenstein deixa a sua criatura. Este anonimato traduz brilhantemente a incapacidade que Frankenstein tem de assumir a sua própria criação, como Mary Shelley, aliás, fará com a própria obra num momento inicial, abrindo caminho para aquele que é o principal tema da obra, a decepção mútua e ambivalente entre a criatura e o criador.
Regressando a Lovecraft, este autor escreverá muitos anos mais tarde, no seu ensaio sobre o conto de terror, que o medo é a emoção mais poderosa e que entre os medos o mais poderoso é o medo do desconhecido. Frankenstein representa não propriamente o medo do desconhecido, mas a decepção ou o horror perante o desvendar do desconhecido, perante a entrada nos domínios dos deuses, neste caso, na capacidade de criar vida e conhecer os fundamentos da sua criação.
 
David Teles Pereira



(originalmente publicado no jornal «i», de 27/6/2016, reproduzido com permissão do autor: obrigado, David, um abraço!) 

 





[1] Os filmes são apresentados com o título em português sempre que exista versão oficial.


[2] No original, “The Monster Demands a Mate”.

terça-feira, 28 de junho de 2016

Fritz Bauer: um Procurador em tempos sombrios.


 
 
Tive a oportunidade de ver o filme O Estado contra Fritz Bauer de Lars Kraume que irá estrear esta semana em Portugal (sob a duvidosa titulação comercial de Fritz Bauer- Agenda Secreta).
Na linha de Hannah Arendt de Margarethe von Trotta (2013), de Labirinto do silêncio de Giulio Ricciarelli (2014) ou de Phoenix de Christian Petzold (2015- com a extraordinária Nina Hoss) trata-se de um excelente e premiado trabalho sobre os problemas judiciais da desnazificação e sobre o papel central de Fritz Bauer (1903-1968).
Será, assim, uma boa ocasião para dar alguma apressada/ sintética informação e prestar tributo a esta figura singular da justiça alemã.
De ascendência judaica, Bauer foi o juiz mais novo nomeado pela República de Weimar e um opositor, desde o início, da ascensão Nacional-Socialista. Foi preso pelas suas ideias pela Gestapo, em 1933, no campo de concentração de Heuberg durante oito meses. Compulsivamente afastado do trabalho como jurista, depois de libertado, emigrou, em 1935, para a Dinamarca e depois para a Suécia, em 1943. Aqui fundou, com Willy Brandt, o periódico Sozialistische Tribüne (Socialist Tribune).
Voltou para a República Federal da Alemanha, em 1949, entrando para o serviço público de justiça. Desempenhou os cargos de promotor distrital em Braunschweig, Hessen e Frankfurt.
Atingiu grande notoriedade em 1952 através do julgamento de Otto Remer (oficial que teve um papel fundamental, em 1944 ao impedir o Klaus von Stauffenberg, de concretizar o atentado à bomba para matar Hitler e que foi executado em 21 de Julho de 1944 por traição à pátria e quebra do juramento de oficial). 
 
 
          Bauer denunciou Remer (defensor de um partido extremista neo-nazi Socialist Reich Party, proibido em 1952) e tentou salvar a memória de Stauffenberg procurando demonstrar que o gesto de tiranicídio era patriótico, argumentando que o regime nazi era um estado de não-direito e que, neste contexto, trair o seu juramento de obediência era servir a causa da justiça.
Bauer esteve sempre muito isolado dentro do seu corpo profissional e, mais amplamente, na sociedade alemã. Aliás, logo no início do filme, um influente funcionário do Departamento de Informações comenta: "A questão é: por quanto tempo vamos poder dar-nos ao luxo de ter um procurador-geral desses” e pouco depois, vem a célebre frase de Bauer: " A minha própria corporação é território inimigo" (por exemplo, em 1949, na Baviera 752 dos 924 juízes e procuradores eram antigos nazis, ou seja, uma percentagem de 81 por cento).
         A presença de antigos nazis é retratada dentro do governo, na pessoa do controverso Hans Globke (1898-1973), o braço direito de Adenauer na Chancelaria em Bona e o apoio a Bauer centrado em George-August Zinn, o chefe de governo do Land de Hessen de 1950 a 1969 (a sua cumplicidade vem desde o seu compromisso social-democrata sob a República de Weimar e responde a Bauer que lhe assinala um quadro de Rosa Luxemburgo no seu gabinete que “não faz mal porque ninguém sabe quem é”…).
Com argumento escrito em parceria por Lars Kraume e pelo escritor e jornalista francês Olivier Guez, com uma notável interpretação de Burghart Klaussner no papel de Bauer, este filma trata basicamente da sua relação com o caso Eichmann.
Bauer recebeu uma carta de Lothar Hermann, um sobrevivente cego de Dachau que emigrou para a Argentina com a sua família e que afirma que a sua filha Sylvia se apaixonou por Klaus, o filho mais velho de Eichmann. No entanto, Bauer, não confia na capacidade do sistema judicial alemão em obter a extradição de Eichmann (aliás, em 1959, o pedido de extradição de Mengele à Argentina, através da embaixada alemã nesse país, caiu no ridículo com o desaparecimento e fuga imediata daquele para o Paraguai…). 
Assim, decide não fornecer essa informação e transmite-a secretamente à Mossad (ainda numa fase de desenvolvimento incipiente), numa opção polémica. Após muita desconfiança inicial e insistência premente de Bauer, os serviços secretos israelitas acabam por montar a conhecida operação de resgate e transporte de Eichmann para Israel (sob o efeito de drogas e disfarçado de comissário de bordo da El Al).
Elucidativamente, a Alemanha nunca solicitou a Israel a extradição de Eichmann, contrariando pedido expresso de Bauer, com o argumento formal da inexistência de tratado de extradição entre os dois países.
O filme também aborda com muita elegância a questão da homossexualidade, em geral, e de Bauer, em particular, a penalização e os constrangimentos daí decorrentes e as consequências disciplinares que a visibilidade ou publicitação dessa opção “desviante” tinha no serviço público.
 
 
 
 
Fritz Bauer é conhecido principalmente como o grande impulsionador do julgamento de Auschwitz. Embora não sendo objecto do filme, importa realçar o papel percursor que Bauer teve na defesa da doutrina jurídica de Roxin no campo dos tribunais alemães. Na verdade, o célebre penalista defendeu a pertinência jurídica da condenação de Eichmann como autor: para ele era linear a afirmação segundo a qual num quadro burocrático, a responsabilidade cresce à medida que nos afastamos do lugar do crime. Bauer perderia esta luta: as tentativas de importar a argumentação israelita, reforçada por Roxin, foram infrutíferas. Prevaleceram penas muito ligeiras, estruturadas na figura da cumplicidade, através de um enrodilhamento jurídico-ideológico esclarecedor do incómodo que os tribunais tinham num enfrentamento e sancionamento claro do passado nazi (Bauer considerou que as sentenças “estavam perto de fazer troça do sofrimento das vitimas”).
Asfixiado pela política de reconciliação de Adenauer e pelo medo de “agitar de novo todos os horrores”, Bauer é um defensor da necessidade de confronto com o passado e uma grande figura moral da justiça que importa divulgar.  
Nas palavras do realizador Lars Kraume, o seu filme “retrata a história de um combate arcaico de um marginal contra um sistema omnipotente e é uma fonte de inspiração a todos os opositores da injustiça na sociedade moderna”.
Todo o percurso de Bauer justificou a sua frase “na justiça vivo como no exílio” (a sua antinomia como representante do Estado e adversário dos seus valores perde-se completamente no título do filme da tradução portuguesa).
Fazendo parte de uma linha de excelentes filmes alemães recentes que mantem viva a memória e a transmissão da história O Estado contra Fritz Bauer é de saudar vivamente e, certamente, uma película a não perder.
 
Luís Eloy Azevedo

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Lisboa, 1954.

 
 
Mary McCarthy (1912-1989)

 
 
Em Janeiro de 1954, de passagem por Lisboa na companhia do seu terceiro marido, Bowden Broadwater, a jornalista e escritora Mary McCarthy (1912-1989) escreveu à sua grande amiga Hannah Arendt. A carta, publicada no livro Between Friends: The Correspondence of Hannah Arendt and Mary McCarthy, 1949-1975, Nova Iorque, 1995, pode ser consultada aqui, na versão original. Espera-se publicar em breve um outro texto de Mary McCarthy escrito em Lisboa, também numa tradução algo «livre» e sem especiais pretensões de rigor.  
 
 
Lisboa, Rua Castilho, o nevão de 1954, aqui
 
 
Pensão Bela Vista
9 Rua Ataíde
Lisboa, Portugal Janeiro (?) 1954
 
Querida Hannah,
 
Por aqui neva em catadupa, dizem que pela primeira vez em dez ou cem anos, não consegui perceber bem. Eis então uma tarde que pode ser passada a escrever cartas; os outros dias, depois de almoço, foram dedicados a palmilhar a cidade. Visitámos a maioria das igrejas, Alfama, o Jardim Botânico – que é encantador e julgo ser uma das glórias nacionais –, a biblioteca americana, a biblioteca inglesa, lojas, hotéis, cafés. Na primeira noite fomos ao Rossio e tentámos descobrir o café em que tu e o Heinrich [Blücher] estiveram, mas não creio que o tenhamos encontrado.
Estamos alojados numa pensão onde, ao que parece, somos os únicos hóspedes, ainda que refiram existirem mais clientes. A antiga proprietária, cujo nome nos foi recomendado por Leonid [Berman], o pintor, enlouqueceu há alguns anos, e a pensão tem nova gerência. Receio ser um navio prestes a afundar-se, mas temos dois quartos, um dos quais muito amplo, com uma varanda e uma vista maravilhosa sobre o porto. A nova gerente é Mlle. Carole, de trinta e muitos anos, com um eterno cigarro nos lábios, vestida com um bolero vermelho e uma camisa inglesa com os botões apertados até ao pescoço. Aparenta uma certa graça melancólica de Marlene Dietrich, pelo que, segundo me parece, deve estar à beira da ruína. É meio francesa, meio sueca, com uma maman francesa gorda, vestida de preto, com um ar de decadência resignada. Continuam a ouvir a rádio de França e falam quatro línguas: alemão, francês, inglês e português. Desprezam os portugueses, isto é, todo e qualquer auxílio vindo de fora. Quando a cozinheira portuguesa cozinha, a comida é medíocre, quanto a Madame cozinha, é boa; quando é a Maman a cozinhar, é soberba. Como todas as pessoas quando se encontram desesperadas, parece elas que conseguem ler-nos os pensamentos. Sabem exactamente quando vamos querer experimentar um novo prato. Aí, a Maman vai para a cozinha e, nessa noite, o jantar é digno de La Pérouse. Mas o ambiente geral é de credores a rondarem, fim de festa, confusão, fusíveis a estourar. Em suma, acho o sítio muito simpático e consegui aplacar o Bowden na sua ideia de dar uma volta por outras pensões. A localização é óptima, no alto da cidade, acima e a oeste do Chiado. Como é óbvio, pelos padrões portugueses estamos a ser explorados, mas consolamo-nos com o facto de nos bastar exprimir um desejo e toda a casa entrar de imediato em acção. Isto acontece, bem sei, porque somos americanos. E, para esta gente, os americanos são uma espécie de divindades primitivas, gente com desejos imprevistos e bizarros mas que têm de ser satisfeitos e, se possível, antecipados. Nutrem as mais estranhas ideias – receosas, esperançosas – daquilo que desejamos, como ofertas ou suplementos de conforto. De momento, temos um aquecedor a gás no quarto, mas o rapaz continua a trazer-nos também um aquecedor eléctrico, mesmo sendo o único que existe na casa inteira e de não precisarmos dele.
 
Lisboa com neve. A Baixa, 1954
 
 
 
Ainda não sei quanto tempo aqui vamos ficar. Dizem que o Algarve, no Sul, onde eventualmente planeamos ir, encontra-se coberto de neve por completo, ainda que as mimosas supostamente estejam floridas. Disse-te que a New Yorker me pediu que escrevesse uma carta sobre Portugal? Ontem encontrei-me com o nosso adido de imprensa, que me pareceu muito competente, e até falava de Platão. Para mim, o fenómeno mais marcante que aqui encontrei foi a americanização. Interesses comerciais americanos, a Ford, a Buick, a International Telephone, a TWA estão em grande actividade; há milhares de carros novinhos na rua e as montras exibem rádios, frigoríficos, panelas de pressão, berços de bebés, muitos deles fabricados na América. Aquilo que de mais estranho podemos ver na Rua Garrett, a principal rua de compras, são caixas de bolachas Ritz nas montras, envoltas em veludo vermelho como se fossem objectos sagrados; uma outra montra ostenta rebuçados Tootsie Rolls. Há uma espécie de pathos infantil ou primitivo em tudo isto, uma vez que os doces e os bolos portugueses são maravilhosos, como te deves lembrar. Por todo o lado, nos subúrbios, e até no centro da cidade, florescem projectos habitacionais que, devo dizê-lo, são melhores do que os nossos.
Ainda nada sei sobre a situação política, Economicamente, é um país singular, com uma estranha mistura de prosperidade e de pobreza. As classes médias da cidade parecem ter alguma riqueza, mas não consigo perceber de onde ela vem. As casas de chá e os cafés estão cheios de mulheres e de homens bem vestidos, que na América tomaríamos por gente de negócios, secretárias ou vendedores. Todos os jovens da classe média parecem americanos, como se copiassem os gestos e as expressões que vêem nos filmes – apenas a aristocracia e os pobres aparentam ser aquilo que eu chamaria portugueses, algo muito diferente do que acontece em Itália ou em França. Em contrapartida, os produtos cá fabricados que se vêem nas montras, mesmo nas melhores lojas, são de péssima qualidade – refiro-me a sapatos, malas, vestidos, camisas para homem. Tudo tem um aspecto igual ao que encontramos nos fundos dos armazéns Gimbels ou nos saldos de terceira categoria. Parece não existir verdadeiro artesanato, só aquela tralha típica das festas dos agricultores, tudo muito inautêntico, o tipo de coisas que se compram nas lojas de estrada para levar como recordações. Nas ruas secundárias ou em Alfama vê-se uma pobreza medieval, como em África, dirias tu, ou como a que encontramos nas páginas de Os Miseráveis ou de Nossa Senhora de Paris.
Bem, tenho de terminar. Está a ficar escuro e a única coisa que não consigo encontrar nesta pensão é uma boa luz para ler e escrever. Em breve mando-te um relatório mais detalhado. Se tiveres um minuto, envia-me umas linhas para aqui, Falamos ambos de ti a toda a hora. Pergunto-me onde ficaste em Lisboa; em que zona?
Amanhã irei encontrar-me com o número dois do Ministério da Propaganda. O outro português que conheci é um dançarino de ballet, também recomendado pelo Leonid, e que amanhã nos vai levar a Alfama para ouvirmos o fado.
 
Com muito, muito carinho para ambos,
Mary

 


 Tradução de António Araújo